O Brasil tem 27.974 sítios arqueológicos oficialmente cadastrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a maioria deles de origem indígena. Um cruzamento de dados inédito, realizado pela plataforma MapBiomas, permite analisar a paisagem ao redor dessas áreas, e revela que muitas delas estão ameaçadas por atividades agropecuárias e empreendimentos como estradas, instalação de hidrelétricas e ferrovias.
“Apesar da ocupação humana histórica desses sítios, agora podemos analisar as mudanças e os impactos da ocupação recente sobre essas áreas”, Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Embora grande parte dos sítios arqueológicos brasileiros tenha origem indígena, somente sete foram tombados como patrimônio histórico, de acordo com o relatório Política Patrimonial e Política Indigenista: A proteção jurídica dos lugares sagrados e sepultamentos indígenas, publicado pelo projeto Amazônia Revelada. Para se ter uma comparação, em 2024 o patrimônio brasileiro contava com 428 edificações, como prédios e casas, tombados pelo Iphan.

O tombamento é um ato administrativo que estabelece regras para a preservação de bens culturais, garantindo a salvaguarda do patrimônio histórico. Para Bruna Cigaran da Rocha, arqueóloga e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), esse instrumento é a melhor forma de garantir a proteção dos patrimônios.
Ela menciona o caso do sítio arqueológico Santarenzinho (PA), onde há um cemitério do povo Munduruku ameaçado pela construção de uma Estação de Transbordo de Cargas (ETC).
Diante de pareceres do Iphan que orientavam pela remoção das ossadas encontradas na área, Rocha e a pesquisadora e também professora da Ufopa, Camila Jácome, procuraram o Ministério Público Federal do Pará (MP-PA) para incluir os indígenas na tomada de decisão sobre o destino daquele espaço de imensa relevância para a cultura e a memória dos Munduruku.
“A arqueologia é história indígena, a história dos povos quilombolas, história dos povos e comunidades tradicionais nos lugares em que elas viveram. E, muitas vezes, é uma forma de provar essa presença, quando documentos escritos podem estar dizendo ao contrário”, ressalta a arqueóloga.
Na avaliação de Thiago B. Trindade, arqueólogo e chefe do Serviço de Registro e Cadastro de Dados (SREC/CNA) do Iphan, a delimitação de um sítio arqueológico já prevê a preservação do local.
No entanto, a dificuldade de acesso a algumas dessas áreas, somada ao interesse de empresas na exploração desses espaços, expõe os sítios a riscos interferência humana e até de desaparecimento.
Segundo os dados do MapBiomas, em 1985, pouco mais da metade (53,5%) da área no entorno dos sítios estava em região de vegetação nativa, como florestas, savanas e campos naturais, e 41,7% em áreas antrópicas. Em 2023, esse cenário se inverteu: apenas 41,5% permanecem envoltos por áreas de vegetação nativa, enquanto 49,6% já se encontram em terrenos desmatados e ocupados por pastagens, agricultura, áreas urbanas e outras atividades humanas.
Santarenzinho, um cemitério ameaçado
A Amazônia é o bioma com a maior concentração de sítios arqueológicos, com 10.197 áreas onde há resquícios das comunidades que ali habitaram, o que representa mais de um terço do total nacional. Uma delas, o sítio arqueológico de Santarenzinho, em Rurópolis (PA), está na rota das empresas de transporte de soja que dominam a região.
Identificado na década de 70 pelo arqueólogo Celso Perota, uma parte do sítio é habitada por ribeirinhos e, atualmente, está ameaçado pela construção de uma ETC, estrutura de carga e descarga de grãos escoados pelo rio Tapajós.
Bruna Rocha conta que, em 2022, durante o processo de estudo do local, a equipe de arqueológica encontrou ossadas que indicavam diversos sepultamentos naquela área. Um pajé foi levado até o lugar e, após tapar os ouvidos e falar sozinho, em voz baixa, apontou para o ponto exato onde estava um crânio.
Os sepultamentos ligam o sítio diretamente aos antepassados do povo Munduruku, que até então não havia sido consultados sobre o empreendimento. O licenciamento foi suspenso para que os indígenas pudessem ser ouvidos e participar do processo de tomada de decisão sobre a área.
“Santarenzinho era uma grande aldeia”, ressalta Alessandra Korap Munduruku. “Por mais que as pessoas não vejam, mas os pajés veem e sentem. Então, a gente tem que proteger o lugar, mesmo que não seja dentro do território. Todo rio é um território indígena, em todo canto tinha aldeias. Onde existe terra preta, existiram aldeias bem antigas”, diz.
O sítio arqueológico de Santarenzinho fica entre os municípios de Santarém e Itaituba, conectados pela rodovia BR-163, utilizada no escoamento de grãos. A área é dominada por um complexo logístico a serviço de empresas do agronegócio. Além da rodovia, há ETCs e portos destinados o escoamento, principalmente, de soja, destinada ao mercado externo.
“O crescimento de atividades antrópicas ao redor dos sítios reforça a importância de políticas de conservação e gestão do patrimônio arqueológico brasileiro, especialmente frente às crescentes pressões sobre os biomas” comenta Marina Hirota, cientista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do BrazilLAB/Princeton, que colaborou com esses dados.
Assim como Santarenzinho, outros sítios arqueológicos ficam em áreas ameaçadas por empreendimentos. Muitos deles, em regiões remotas, de difícil acesso.
Na avaliação de Trindade, o monitoramento viabilizado pelo MapBiomas pode auxiliar no direcionamento das ações para a preservação dos sítios. “Dali a gente pode começar a concentrar alguns esforços em termos de fiscalização”, diz.
Sítios arqueológicos indígenas
Embora o Iphan não disponibilize um levantamento da quantidade de sítios arqueológicos de origem indígena, estima-se que a maior parte dos quase 28 mil sítios guardem histórias e elementos desses povos, conforme explica Trindade.
“Eu estimo que a grande maioria dos sítios arqueológicos são pré-coloniais. Então, a grande maioria dos sítios arqueológicos ainda hoje são sítios indígenas”, diz.
A conclusão vem das classificações usadas pelo Iphan com relação à data de origem dos sítios arqueológicos. O instituto utiliza duas tipologias básicas para sítios arqueológicos: pré-coloniais, de antes de 1500; e pós-coloniais ou históricos, com origem após a colonização.
“Tudo que está antes de 1500, obviamente, é indígena. Eram as únicas populações que habitavam aqui antes da chegada aí dos europeus em no século XVI”, explica o arqueólogo.
E mesmo entre os sítios arqueológicos do período pós-colonial, há muitos de origem indígena. “Em tese, todos os sítios que a gente tem como pré-coloniais são considerados indígenas, mas não só esses. Tem muitos sítios que são pós-coloniais, ou que são do período histórico, que também são indígenas”, diz Trindade.