Quase ao mesmo tempo em que a representante especial da ONU para o Haiti, María Isabel Salvador, alertava o Conselho de Segurança das Nações Unidas que a situação dramática no país estava chegando a um ponto sem retorno, o governo da vizinha República Dominicana anunciava mais um endurecimento de suas políticas contra a população haitiana.
Desde que assumiu seu segundo mandato em agosto de 2024, o governo do presidente dominicano, Luis Abinader vem adotando uma série de medidas que reforçam seu perfil como uma administração nacionalista, excludente e de ultradireita.
Suas políticas — alegadas como necessárias para “proteger” os serviços públicos e a “soberania nacional” — têm como alvo principal a população haitiana, com quem a República Dominicana divide a ilha de Hispaniola. Entre as medidas, estão deportações em massa, uma militarização sem precedentes da fronteira e a construção de um muro de 165 quilômetros.
Essas ações têm levado organizações internacionais e defensores de direitos humanos a denunciar repetidamente violações de princípios humanitários básicos e o agravamento da discriminação racial.
Nesse cenário, entrou em vigor na segunda-feira, 21 de abril, o polêmico “Procedimento para Gestão de Serviços de Saúde a Pacientes Estrangeiros”, que exige que imigrantes apresentem documento de identidade, contrato de trabalho e comprovante de residência. Caso não tenham a documentação, as pessoas que precisarem de atendimento médico podem ser deportadas.
No mesmo dia, agentes de imigração fizeram operações em hospitais. Segundo a Direção Geral de Migração (DGM), 135 haitianos foram detidos, incluindo 48 grávidas e 39 mulheres que haviam acabado de dar à luz.
O controverso protocolo tinha sido anunciado em 6 de abril como parte das “15 medidas firmes” do governo para conter a imigração. Entre elas estão um projeto de lei para reformar as leis de imigração — a ser tratado como prioridade —, o aumento do contingente militar na fronteira e a expansão da construção do muro entre os dois países.
As medidas foram divulgadas em vídeo nas redes sociais no qual Abinader se gaba de “nunca ter cedido às pressões de organizações internacionais e governos para parar as deportações” e de ser “o único presidente que não assinou o acordo migratório proposto na Cúpula das Américas de 2022”.
O governo defende as medidas alegando uma “sobrecarga” no sistema de saúde. A Associação Médica Dominicana, porém, advertiu que o protocolo põe vidas em risco ao dificultar o acesso a atendimento médico para grupos vulneráveis.
A Anistia Internacional, que já havia criticado as políticas de Abinader em outras ocasiões, classificou as medidas como “desumanizadoras” e afirmou que o regulamento “institucionaliza a discriminação contra migrantes”, reforçando suas denúncias de violações de direitos humanos pelo governo.
A reação do governo foi imediata. Em visita à província fronteiriça de Dajabón no dia 24, Abinader rebateu as críticas de forma contundente: “Digo à Anistia Internacional para ir trabalhar no Haiti”. No mesmo evento, anunciou a licitação para ampliar a cerca fronteiriça em 13 quilômetros. Diante das tropas na região, Abinader ordenou postura implacável, declarando “inaceitável” permitir a passagem de “qualquer pessoa sem documentos”.
Entre o terror e a perseguição
Embora em novembro de 2022 o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) tenha pedido aos países que suspendessem as deportações forçadas para o Haiti, a expulsão em massa de haitianos pela República Dominicana tem se intensificado. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), em 2023 foram deportados 208.166 haitianos – incluindo mais de 20 mil crianças e adolescentes. Com o agravamento da crise no Haiti, os dados oficiais de 2024 indicam 276.215 deportações, um aumento significativo em relação ao ano anterior.
O endurecimento das políticas migratórias foi um dos pilares da campanha de reeleição de Abinader. Em 2 de outubro de 2024, o presidente anunciou que reforçaria ainda mais as medidas contra a migração irregular, com um plano para deportar mais de 10 mil pessoas por semana em situação migratória irregular.
Desde então, apenas nos últimos seis meses, enquanto o Haiti mergulha em uma crise humanitária sem precedentes, o governo dominicano já expulsou mais de 180 mil haitianos – um número que bate todos os recordes históricos do país. São milhares de pessoas que, tentando escapar da violência e da crise em seu país, buscam refúgio onde possam trabalhar e sustentar suas famílias. Muitas fogem, literalmente, da morte e da devastação que arrasaram seus bairros e comunidades.
As deportações em massa acontecem em um clima de xenofobia crescente, alimentado e explorado pelo próprio governo, que capitaliza o racismo que ele mesmo promove.
Há anos a política migratória dominicana trata a população negra com brutalidade, mas, nos últimos meses, as ruas se transformaram em um verdadeiro inferno para os haitianos. A polícia iniciou uma verdadeira “caça aos migrantes”, perseguindo abertamente pessoas em espaços públicos.
O medo tomou conta do cotidiano já frágil desses migrantes. Centenas de famílias de origem haitiana foram forçadas a se esconder para evitar a deportação. Muitas crianças tiveram que abandonar a escola ou ficaram vagando pelas ruas sem rumo.
As denúncias são graves: há relatos de operações em que agentes de imigração detêm menores e os separam de suas famílias. Enquanto isso, organizações como os Cañeros Organizados – grupo formado por trabalhadores haitianos da cana-de-açúcar, muitos submetidos a condições análogas à escravidão – denunciam deportações em massa até mesmo de pessoas com documentos válidos, que têm seus papéis retidos pelas autoridades. Além disso, eles apontam que as apreensões são sistematicamente realizadas contra a população negra do país.
Essa situação já dramática é agravada pela demonstração de crueldade, forma como é colocada em prática. As chocantes imagens de caminhões enormes, cheios de grades – parecidos com os que transportam gado – levando centenas de haitianos para a fronteira todas as manhãs viralizaram no mundo todo, provocando a condenação generalizada de organizações internacionais de direitos humanos.
As expulsões em massa – quando pessoas são deportadas sem uma análise individual de cada caso – são proibidas pelo direito internacional. Isso inclui a Convenção de Genebra de 1951, a Convenção contra a Tortura e até regras consuetudinárias, que barram explicitamente a expulsão de pessoas para países onde elas podem sofrer perseguição, tortura ou tratamento desumano. No entanto, nada disso parece ter importância na aplicação das políticas do governo Abinader.
A dramática situação no Haiti
Segundo relatórios da ONU, em 2024, gangues armadas mataram pelo menos 5.601 pessoas, deixaram mais de 2.214 feridas e sequestraram 1.494. Além disso, mais de um milhão de haitianos foram forçados a deixar suas casas no mesmo ano – um número três vezes maior que os 315 mil deslocados em 2023.
A violência só piorou: entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025, a ONU registrou 2.660 assassinatos – um aumento de 41,3% em relação aos três meses anteriores.
E a crise humanitária não para por aí. Conforme o último relatório da Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC), até junho de 2025, um recorde de 5,7 milhões de haitianos (mais da metade da população) vão enfrentar fome severa. Para piorar, mais de 500 mil crianças estão sem acesso à educação neste momento.
A ascensão de grupos de extrema direita
Essas práticas discriminatórias e desumanas, no entanto, vêm sendo amplamente aceitas por boa parte da população. Há décadas, o Haiti encarna os medos e frustrações de muitos dominicanos.
A prova disso veio em 2013, quando o Tribunal Constitucional dominicano tomou uma decisão polêmica: reinterpretou a constituição do país de forma retroativa, criando a maior crise de apátridas das Américas no século 21. A decisão determinou que filhos de imigrantes indocumentados (a maioria haitianos) nascidos na República Dominicana entre 1929 e 2010 nunca deveriam ter sido considerados cidadãos – mesmo que tivessem sido registrados legalmente ao nascer.
O resultado? Certidões de nascimento e documentos de identidade emitidos ao longo de 80 anos foram anulados, afetando cerca de 250 mil pessoas – a maioria, descendentes de haitianos com gerações inteiras vivendo no país.
Nos últimos meses, os discursos que pedem deportações em massa e o fim da suposta (e imaginária) “haitianização” do país ganharam ainda mais força. Organizações como a Antiga Ordem Dominicana, de perfil quase fascista, surgiram como protagonistas, incitando violência contra haitianos, promovendo protestos por mais repressão à imigração e atacando ONGs de direitos humanos.
Liderada por Angelo Vasquez, de 28 anos – que cultiva uma imagem paramilitar –, o grupo afirma ter 30 mil membros e se diz defensora da “soberania, identidade e valores patrióticos”. Mas, na prática, seus métodos escancaram uma xenofobia violenta. O grupo ficou famoso em março de 2024, quando organizou uma marcha em Santo Domingo contra a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e a ONU, acusando-as de querer “criar campos de refugiados haitianos em solo dominicano”.
Desde então, a organização tem agido com violência contra entidades que denunciam as políticas do governo. Com essas ações, conquistou o apoio público de figuras influentes, como Santiago Matías (CEO do Alofoke Media Group) e o ex-juiz da Suprema Corte Jottin Cury – que também comanda um dos mais importantes escritórios de advocacia do país.