É da natureza humana a narrativa e a interpretação. Serve tanto aos fatos como às pessoas. Os fatos viram histórias, as pessoas personagens. O viés de interpretação é prerrogativa do autor. E até certo ponto, todos somos autores. Belchior: cenas do último capítulo, de Dogival Duarte, publicado pelo Selo Bel Prazer segue exatamente essa fórmula. É um livro intenso, memorial, interpretativo.
Como o próprio autor deixou claro no ato festivo de lançamento, são memórias de sua relação que ultrapassou a convenção do fã e do ídolo, formulando laços de amizade. Estive no lançamento, acompanhado de bons amigos e amigas, batizando meu exemplar com a descontração da noite, as histórias compartilhadas e os respingos de sorrisos trocados.
São 382 páginas divididas em pequenos capítulos de leitura leve. Seguramente vai encantar alguns e incomodar outros tantos. A história, afinal, é uma interpretação dos que a contam. Dogival tece seu relato memorial – em certos momentos até mesmo confessional ─ a partir de lembranças e do seu ângulo pessoal de interpretação. Não receia o ato interpretativo e constrói no livro um Belchior que até certo ponto é só seu. Desenhado sob seu olhar, traduzido sob suas palavras. Abrir o livro é como abrir as portas da casa do autor e conviver com essa personagem ímpar, junto com ele. E aí está o mérito!

Belchior de Dorgival não é mais do mesmo. Não explora as polêmicas vazias que a mídia hegemônica fez sangrar da personagem nos seus dias de autoexílio e até mesmo além. Belchior de Dorgival traz algo de novo para essa história feita de tantas estórias. Apesar do volume ser extenso e as letras miúdas, o leitor não vai demorar mais do que dois dias de leitura dedicada para folhear de cabo a rabo a publicação. E tirar suas próprias conclusões.
Nas páginas finais um brinde à saudade: em fotos do arquivo pessoal, autor e personagem comprovam a relação de cumplicidade escrita em encontros, autógrafos, bilhetes e ─ claro ─ lembranças. As imagens chegam na hora certa, conformando a leitura que pode ter finalizado de forma carinhosa ou incomodada. Acariciam as lembranças que o leitor ─ e não resta dúvida que os leitores deste livro em diferentes níveis são fãs de Belchior ─ despertando o desejo utópico de encontrá-lo nas esquinas da cidade para dizer olhando em seus olhos: “Volta Belchior”.

Quando lemos Belchior: cenas do último capítulo e lembramos que ainda há tantas histórias a serem contadas por quem esteve com Belchior, é como se chegasse à resposta deste encontro hipotético: “De onde você quer eu volte, se eu nunca saí daqui?”.
Encerrei a leitura e na playlist a voz inconfundível cantava: “Você pode até dizer que eu tô por fora ou então que eu tô inventando… / Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”. E deixo a pergunta: Quem vai contar as próximas histórias? Ou mesmo recontar algumas destas?
Livro: Belchior: Cenas do Último Capítulo
Autor: Dogival Duarte
Editora: Selo Bel Prazer
Quanto? R$ 80,00
Contato: @dogivalduarte
Duas saudações necessárias
O lançamento do livro ocorreu da melhor forma possível, com festa, música, em um espaço alternativo, libertário. O Barbudas Bar, de Santa Cruz do Sul (RS), recebeu diversidade na noite de 30 de abril de 2025.
Sabe aqueles lugares em que mesmo estando entre estranhos, você tem a impressão de que está em meio a velhos conhecidos? Contribuiu para esse clima de despojamento e integração as canções de Belchior reinterpretadas com total entrega pela levada jazzística, blueseira e visceral da banda Ramal 314. Vale a pena conhecer o espaço e ouvir a banda!
*Marcos Antonio Corbari é jornalista
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
