‘Neste país, ainda é a cor da pele que decide se devemos viver ou não’, diz makota de MG

No dia 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que aboliu a escravidão negra no Brasil, último país do continente a findar o regime exploratório. Essa data emblemática segue em disputa e gera até hoje diversas interpretações e apropriações, uma vez que, 137 anos depois, o movimento negro brasileiro considera a abolição um processo ainda inconcluso. 

Na época, a população negra ex-escravizada e seus descendentes foram abandonados pelo Estado e excluídos da sociedade. Homens e mulheres libertos continuaram estigmatizados por meio da negligência, da segregação, do preconceito, da violência e do extermínio, que seguem sendo uma realidade enfrentada pelo povo preto. 

A fim de refletir sobre a data, o Brasil de Fato MG entrevistou Makota Célia Gonçalves Souza, conhecida como Makota Celinha. Nascida em Belo Horizonte, ela é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka, coordenadora geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab) e Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual de Alagoas (Uneal). 

“É preciso entender que a Lei Áurea foi uma lei inacabada, incompleta. Porque não assegurou àqueles ‘libertos’ o acesso à terra, ao trabalho e à educação. Não lhes assegurou nada, ao contrário, jogou essas pessoas no limbo social. É preciso entender que essas pessoas, historicamente, vêm resistindo e são resiliência pura”, destaca.

Confira entrevista completa: 

Brasil de Fato MG –  O que foi o 13 de maio e o que a abolição significou, na prática, para o povo negro no Brasil?

Makota Celinha – Na verdade, a abolição da escravatura foi abolição inacabada. Porque temos um país que viveu 388 anos sob a égide da escravidão e, ao aboli-la, não reconheceu os ex-escravizados enquanto cidadãos de direito. Os escravos foram libertos quando a escravidão já não era mais financeiramente compensadora para o sistema capitalista.

E, ainda assim, aos escravos nada foi dado. Nenhum direito, sem moradia, sem assistência, sem trabalho, e totalmente abandonados pelo sistema colonialista. Então, por isso, nós costumamos dizer que é uma abolição inacabada. 

Qual foi o papel do movimento abolicionista no processo que culminou na assinatura da Lei Áurea?

O movimento abolicionista teve um papel fundamental nesse processo de abolição da escravatura. Porque ele não só questionava o sistema da época, como também organizava os grupos e coletivos abolicionistas, garantindo aos escravizados em fuga o direito de se reconstruir em outros espaços.

Então, o papel do movimento abolicionista, na verdade, traz  a possibilidade de esperançar para esses escravizados, que lutavam por sua liberdade, por sua dignidade, por sua cidadania.

50 anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1833, teve início a maior revolta de escravizados da história da região Sudeste, que aconteceu no município de Carrancas, no sul de Minas Gerais, e ficou conhecida como a Revolta de Carrancas. É possível ressignificar o 13 de maio a partir do resgate de  movimentos de resistência?

O movimento negro, há muitos anos, já tem como data comemorativa da vida dos pretos e das pretas neste país o 20 de novembro, que é o Dia Nacional da Consciência Negra. Este é o dia em que se celebra Zumbi dos Palmares e toda a sua trajetória. E sim, nós temos outros marcos que ressignificam a resistência, mas sem a ideia de um ‘pseudo’ presente colonialista, que foi a Lei Áurea. 

Para nós, negras e negros, é fundamental ressignificar essas datas, trazendo para o cotidiano social a importância de outro calendário. Um calendário que remonta à história de luta, de resistência e de resiliência do povo preto no Brasil.

De que forma é possível resgatar a memória desses movimentos e incorporá-la à nossa identidade enquanto povo?

A melhor forma que nós temos de garantir a memória dessa história popular, contra a opressão do sistema escravista, é trazer para a educação a lembrança desses momentos. É reeducar a nossa sociedade para compreender que essas datas populares significam muito mais para nós, pretas e pretos, do que as datas colocadas por uma sociedade racista, preconceituosa, por um Estado que sempre negou a nossa existência.

Então, eu acredito que a melhor forma de incorporar à nossa identidade essas datas, esse calendário popular, é por meio da educação, da formação e da celebração dessas datas. 

Nós precisamos incorporar esse calendário nas lutas populares. Assim como nós já temos o 20 de novembro, nós precisamos trazer a Revolta da Chibata e outras rebeliões pretas, precisamos trazer um calendário que seja mais a nossa cara.

É essa história que é a nossa história, que não é a história que os livros didáticos contam. 

Qual é o cenário atual do Brasil em relação à equidade social e racial? Quais caminhos você vê para uma mudança efetiva em nossa sociedade?

Nosso país ainda é um país extremamente racista, preconceituoso, homofóbico e machista. Nós precisamos entender esse cenário para produzirmos formas de resistência organizada por meio da luta popular e social. 

Para mudarmos esse cenário, é necessário mobilização popular. Você faz essa mobilização chegando até os recôncavos, os cantos, os recantos desse país, chegando à periferia, reproduzindo essa história. 

Nós precisamos entender que este país ainda é um país onde a cor da pele decide se devemos ou não devemos viver. Em que nós somos a maioria dos mais pobres, dos desempregados, dos encarcerados. 

As mudanças só acontecerão de fato a partir da mobilização social, a partir do enfrentamento ao racismo de forma contundente, de colocar na cara do racista que não há mais lugar para o preconceito, para o ódio, para a violência. Mas nós precisamos trazer a população para esse enfrentamento.

É preciso que as pessoas não pretas, as pessoas brancas, solidárias às nossas lutas, também busquem formar esse enfrentamento, junto com o movimento social negro. A solidariedade deve ultrapassar o espaço da mera compreensão da importância do povo preto. É preciso que a denúncia, a luta, a resistência, não sejam só nossas, mas sejam incorporadas pelo conjunto da sociedade. 

Aí nós poderemos ver possibilidades de mudança efetiva na sociedade brasileira. Do contrário, seremos nós pretas e pretos falando do racismo, da opressão, da desigualdade social e racial, sem ter eco na sociedade. Porque nós já sabemos muito bem o que nós passamos.

Eu acredito que olhar a sociedade brasileira hoje é percebê-la alicerçada historicamente na opressão dos corpos pretos. Precisamos pensar a partir dessa complexidade, a partir do entendimento de uma sociedade que historicamente foi construída às custas do suor preto, do som da chibata e da opressão. Se eu entender isso, eu vou entender que eu preciso reparar,  transformar e incluir.

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Se eu quiser de fato incluir a população preta de forma equânime no contexto social, eu preciso compreender que nós cometemos um crime no passado contra esse povo, que a sociedade brasileira cometeu um crime. 

Você repara o crime com pessoas pagando pelo crime. E o pagamento é a inclusão, a garantia da equidade, por meio da reparação histórica, que passa pelo orçamento. É discutir acesso aos serviços públicos, discutir cotas e a manutenção desse cotista nos espaços educacionais, no espaço de trabalho, etc.

O Estado de Minas Gerais e o Brasil precisam se reconhecer como criminosos na opressão dos corpos pretos e, portanto, precisam pagar por todo esse sofrimento feito contra essa grande parcela da população.

Como avalia as posturas e políticas do governo Lula no combate ao racismo e promoção da igualdade étnico racial?

Eu acredito que o governo poderia fazer mais. Há um silêncio. Infelizmente, nós não vemos uma atuação mais contundente por parte do Ministério da Igualdade Racial no enfrentamento ao racismo. O governo Lula não avança na busca por uma sociedade de fato antirracista e é preciso muito mais do que dizer que é um governo antirracista. É preciso ser um governo que proponha políticas de Estado antirracistas. 

É preciso certificar as áreas quilombolas e ter um enfrentamento mais real e concreto ao racismo religioso, o que nós não vemos por parte do governo, dos ministérios, ou mesmo na postura dos agentes públicos.  

É preciso que o Ministério da Igualdade Racial seja um ministério mais atuante no combate ao racismo, que denuncie e que fortaleça a sociedade no sentido de fazer com que essas denúncias sejam contundentes e alcancem seus objetivos, que é o da punição. 

O ministério poderia estar mais ativo, mais próximo da população. Há uma ausência na base.

Como o estado de Minas Gerais pauta hoje a questão da reparação histórica e das políticas afirmativas voltadas à população negra?

Na verdade, em Minas Gerais, sofremos um grande retrocesso no que diz respeito a uma sociedade mais plural, mais acolhedora, que de fato combata o racismo e as desigualdades. O governo de Romeu Zema (Novo) é uma negação total. Nós não temos uma política antirracista. Há uma ausência total no atual governo estadual de políticas antirracistas.

É um governo que não se importa com as questões sociais, que reproduz o pensamento de sua liderança maior. Um governo totalmente acéfalo do ponto de vista da reconstrução do Estado e da proposição de políticas que de fato sejam políticas progressistas. O governo Zema é um governo de direita, todos nós sabemos, que não tem propostas sociais. 

Minas Gerais é um dos estados mais conservadores deste país, um dos mais prejudicados. E nós temos um governo que não pensa em mudar isso. 

Que caminhos políticos e sociais você enxerga como possíveis, frente a uma questão tão complexa? 

Eu acredito que o caminho político que nós temos é o de eleger governantes que de fato se comprometam com bem-estar social, com a construção de um de um país não racista, não homofóbico e não machista. Com a eleição de governos progressistas, de um congresso progressista, de câmaras municipais progressistas, de assembleia legislativas progressistas, o que não tem acontecido.

As últimas eleições foram um claro recado para qualquer um do campo progressista de que a sociedade está contaminada com a ideia de um governo de direita e a direita nega a existência dos diferentes. A direita nega a existência da pluralidade. O caminho político que eu vejo é eleger pessoas comprometidas com a vida, com a sociedade e com a democracia. 

Como é que você faz isso? A partir das mobilizações sociais. A partir do enfrentamento cotidiano a todas as formas de racismo, machismo e homofobia. Nós precisamos nos aproximar da população. Nós precisamos atingir as comunidades, atingir o povo, atingir as pessoas que de fato sofrem, que muitas vezes estão também anestesiadas e nem percebem o que estão vivendo.

É fundamental a participação popular no enfrentamento cotidiano das incoerências sociais.  Eu costumo dizer que nem todo preto é meu amigo, e nem todo branco é meu inimigo, mas eu quero que as pessoas brancas que são minhas amigas sejam pessoas comprometidas com a denúncia constante do racismo. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. 

Eu quero que as pessoas brancas compreendam que elas precisam ter consciência de que são a consequência das políticas pró-brancos sempre existentes no país. Se tiverem essa consciência, com certeza vão ser antirracistas. 

A reparação é necessária. A sociedade precisa compreender que você não trata como igual quem historicamente foi tratado de forma desigual. Então, é preciso reparar, para garantir uma certa equidade e possibilidade de mudanças. 

Eu não consigo compreender uma sociedade que quer ser antirracista sem pensar em reparação, sem pensar que política de cotas é essencial, que nós precisamos garantir aos pobres e pretos o direito de acessar aquilo que historicamente não tiveram acesso. 

Você repara criando possibilidades de ascensão social, de ascensão financeira. Não se discute política antirracista sem discutir o orçamento. Nós precisamos estar no orçamento da União, do estado e dos municípios. Do contrário, nós vamos brincar de falar de reparação.

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