A presença de mulheres negras em cargos políticos no Brasil tem crescido, mas ainda é pequena. Em 2024, das 79 mil (34%) mulheres negras candidatas para todos os cargos, apenas 5.006 (6%) foram eleitas, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nas eleições municipais, as mulheres negras representam menos de 1% das vereadoras.
Em Curitiba, capital do Paraná, a vereadora Giorgia Prates (PT) tem enfrentado não apenas o desafio de representar agendas progressistas em um Legislativo conservador, mas também ataques diretos. Ela já apresentou três representações contra o vereador Éder Borges (PL), por episódios que envolvem racismo, transfobia e nepotismo. Uma dessas denúncias levou à abertura de sindicância após Borges justificar, em plenário, a existência da Ku Klux Klan.
Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, Prates denuncia o ambiente hostil na Câmara Municipal de Curitiba (CMC), fala sobre as ameaças que sofreu, sobre o impacto das ofensas e a importância da ocupação de espaços por mulheres negras, lésbicas e periféricas. “A resistência não é confortável, mas é urgente”, afirma.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato Paraná: O que motivou sua entrada na política institucional e como sua trajetória influencia seu mandato?
Giorgia Prates: Minha entrada na política nasceu de um cansaço com a exclusão histórica. Sou mulher preta, periférica, lésbica, do axé, e nossas pautas sempre foram as últimas a serem ouvidas — quando eram. Venho da militância de base, do movimento negro, da cultura, da fotografia e do jornalismo como denúncia. É essa vivência que me guia no mandato.
Eu entendo o que é trabalhar quase todas as horas do seu dia, às vezes até em mais de um emprego, e no final do mês mal conseguir pagar a água e a luz e ainda ter o que comer e olhar ao seu redor e não ver nenhuma política pública que traga alguma dignidade pra vida das pessoas. A experiência dos dias difíceis me levou até a política institucional com o projeto de mudar tudo o que me fosse possível dessas realidades.
Como tem sido ocupar esse espaço como uma mulher negra em um ambiente político marcado por estruturas conservadoras e, muitas vezes, hostis a pautas de direitos humanos?
É como estar sempre em um campo de batalha de uma guerra criada por quem teme perder espaços herdados, por quem se acostumou com o poder e tem medo de perder para aqueles que eles sabem que farão diferente quando chegam lá.
A Câmara tem estruturas muito conservadoras e ser uma mulher preta que não se curva, que segura a voz com firmeza e que tem posicionamento, incomoda. Minha existência é questionada o tempo todo porque não me baseio na vontade deles, porque levo o conteúdo da minha vivência e de tantas outras histórias reais. Porque não sou aquilo que eles esperam e desejam que eu seja.
Normalmente, as pautas que eu levo são tratadas com desdém. Mas não qualquer tipo de desdém. É o desdém advindo do receio da mudança. Do receio de que as coisas justas sejam colocadas em seus devidos lugares e que quem passe a ganhar sejam as pessoas que eles usam, mas não ousam de fato defender muitas vezes. Porque para muitos ocupar aquele espaço significa projeto de ganho pessoal e não coletivo.
A resistência não é confortável, mas passei a minha vida inteira tendo que resistir e ser resiliente. E a mudança é urgente. Cada vez que eu falo ali dentro, estou falando por milhares. Por todas as pessoas LGBT, periféricas, negras, jovens, mulheres e tantas outras que eles chamam de minorias mas que são em número e força a maioria.
Você apresentou três denúncias contra o vereador Éder Borges. Como interpreta essa recorrência de condutas?
Isso mostra que não são episódios pontuais — é algo estrutural. Borges representa um projeto político que não suporta a diversidade e que usa o mandato para reforçar violências. O que me preocupa é testemunhar o silêncio e a passividade dos demais representantes do povo na Câmara, muitas falas graves ocorreram sem que a casa tomasse alguma providência e tenho receio que isso se torne conivência institucional. Por isso, seguir denunciando é um ato de coragem e de compromisso com a verdade.
Após a declaração de Borges sobre a Ku Klux Klan, você afirmou que foi diretamente ofendida. Como foi receber esse tipo de discurso dentro da casa legislativa, e qual foi o impacto emocional e político disso para você?
Meu pai, um homem negro retinto e trabalhador, tinha um sonho de ser cantor. Por ser negro, ele não pode se apresentar com a banda que ele integrava como cantor. Foi obrigado a descer do palco em um festival na frente de uma multidão e, mesmo sendo um grande artista, nunca mais teve coragem de voltar a viver seu sonho. Trabalhou por anos em lugares que ele não era ele em toda a sua totalidade e expressão e muitas das nossas histórias são assim. Então se aquela fala me toca de um jeito pessoal, sim. Muito. As pessoas negras morrem de câncer muitas vezes por viver tristezas e impedimentos que outras pessoas nos causam, do corpo somatizar anos e anos de sofrimento. E quando você fala sobre uma organização criada para exterminar de forma cruel e violenta pessoas como o meu pai, minha irmã e como eu, não tem como não sentir o peso da revolta. Toda a minha ancestralidade sentiu comigo ali.
Milhares dos nossos foram queimados, enforcados e mortos da pior maneira possível. Eu pedi respeito por toda a história de crueldade que ele relativizou e acabei sendo chamada de louca, mau caráter, sem neurônios… e ninguém mais abriu a boca. O que fez com que ele parasse de me ofender foi a caixa de som do plenário que simplesmente veio ao chão do “nada”.
Ouvir uma figura pública justificar a existência da Ku Klux Klan dizendo que era para “desarmar negros que estavam se empoderando” e usar esse argumento num debate público, dentro da Câmara, é inaceitável.
É um ataque direto à minha existência como mulher preta. Politicamente, reafirmou o que já sabíamos: o racismo está presente nas instituições. Mas também me deu a certeza de que temos que cada vez mais ocupar esses espaços e me deu ainda mais força para seguir denunciando. Silêncio nunca será uma opção.
Você foi chamada de “mau-caráter” e alvo de outras ofensas pessoais. Esses episódios têm gerado um ambiente de intimidação? De que forma isso afeta sua atuação e a de outras mulheres parlamentares?
Sim, há um ambiente de intimidação constante. Esse não foi o único episódio que aconteceu no que se refere a tentativas de me intimidar. Tem sessões que dois, três vereadores se inscrevem para ficar falando sobre a minha pessoa depois de perder a discussão com argumentos falhos. Então eles abandonam o debate e eu viro o tema. Começam a criticar a minha maneira de falar, alegando que minha “fala é mansa e agressiva”. Usam temas pejorativos que são comumente usados contra as mulheres negras. Como tentar fazer parecer que eu sou uma mulher agressiva porque debato, trago dados e não aceito a intimidação que fazem. Sou mesmo insubmissa a eles. Isso gera neles ainda mais indignação.
Ameaças diretas também são meios que eles usam. Pouco tempo atrás um vereador subiu na tribuna para dizer que ele e mais outros vereadores estavam se juntando para apresentar uma ação na justiça contra mim por ter feito a representação do vereador Éder Borges pela fala da KKK. São táticas e tentativas de me intimidar e me silenciar.
Mas também vejo momentos em que isso acontece comigo e com outras vereadoras. Interrompem as falas, dão risadas enquanto uma mulher está falando, falam junto e tentas deslegitimar as vereadoras mulheres da oposição o tempo todo.
A resposta é seguir resistindo, articulando com outras mulheres, fortalecendo redes. Não vão nos parar. Eu tenho consciência de que não estou sozinha. No caso da KKK, por exemplo, recebi dezenas de mensagens e notas de apoio, isso foi fundamental. A sociedade está olhando para isso com a mesma indignação e cobrando respostas concretas.
Diante da arquivação de denúncias anteriores, você sente que existe um pacto de silêncio ou proteção em torno de parlamentares de extrema direita? Como a Câmara tem lidado institucionalmente com episódios de racismo e desinformação?
As próximas ações da Corregedoria da Câmara serão muito importantes. A Casa arquivou diversas representações de uma vez só, igualando ocorrências com pesos muito diferentes. Fica parecendo que esses ataques são opiniões pessoais, quando na verdade são expressões de projetos políticos violentos que não estão acima das leis.
Racismo não é opinião — é crime. E desinformação mata. Por isso, fiquei muito aliviada com a notícia de que a Câmara vai abrir sindicância de duas representações que enviei: uma sobre um possível caso de transfobia, outro sobre o caso da KKK. Estou aguardando retorno sobre a representação por nepotismo.
Seu mandato atua de forma interseccional, reunindo as pautas antirracista, feminista, LGBT+ e de moradia. Como você tem articulado essas agendas em meio às tensões da Câmara?
O dia a dia tem sido bem puxado e essas tensões têm exigido mais, mas sei bem porque estou ocupando esse espaço e o esforço é não deixar o trabalho parar. Sou uma mulher de periferia e a gente sempre precisa saber se dividir entre várias temáticas da vida e sabemos que o que não podemos nunca é parar ou deixar que o capricho dos outros nos parem. Temos muito a fazer. E tem muita gente precisando que eu faça.
A Mandata é feita com muita escuta e manter a presença nos territórios é fundamental. A interseccionalidade não pode ser só um discurso bonito — ela precisa estar na nossa prática. Fazemos isso com projetos de lei, emendas, ações de rua, audiências públicas. E também com firmeza nos debates, mesmo quando sou atacada.
A violência política de gênero e raça tem crescido no Brasil. O que precisa mudar, em termos legislativos e sociais, para garantir a permanência e segurança de mulheres negras na política?
Precisamos de legislação com aplicação real. A Lei de Violência Política de Gênero já existe, mas ainda é pouco acionada, até pela dificuldade em materializar as provas dessa violência que muita vezes é sutil, mas não menos dolorosa. Precisamos de medidas protetivas, responsabilização efetiva dos agressores e estruturas que garantam suporte físico e emocional. E, mais que tudo, precisamos de representatividade. Quanto mais mulheres negras houver nos espaços de decisão, mais difícil será nos calar.
Após todos os episódios recentes e as tentativas de intimidação, o que te mantém firme? E qual legado você deseja deixar ao final do seu mandato?
Minha mãe sempre dizia que a verdadeira religião é o coração da gente. Então avaliar meus passos, saber que tô correndo pelo certo me ajuda a manter a fé de que eu sempre vou ser orientada a cumprir a minha jornada da melhor maneira possível e que quem me proteje não dorme.
Sou filha de xangô, orixá da justiça. A minha ancestralidade lutou pra sobreviver, para libertar os nossos. Não tô sozinha. Eu não ando só e essa certeza é o que me conduz mas principalmente é o que guia e segura firme os meus passos.
Cada vez que piso naquele plenário, estou rompendo com séculos de exclusão. Quero deixar o legado de que é possível fazer política com verdade, com o povo e para o povo. Que a Câmara nunca mais será um espaço sem a cara da periferia, da luta, da ancestralidade. E que quem venha depois encontre portas escancaradas para mudar a vida das pessoas para melhor. Sem medo e sem cair no jogo baixo das intimidações. Nós não estamos sós.