Não são apenas os palestinos que lutam por independência frente a um poder opressor. A República Árabe Saaraui Democrática (Rasd), conhecida como a última colônia africana, há décadas tenta libertar do controle marroquino sua população de mais de meio milhão de pessoas.
O embate do povo saarauí contra o colonialismo começou quando o território ainda era chamado “Saara Espanhol”. Em 1975, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu que a região disputada ente Madri e a população local não era “terra de ninguém” e sim habitada por “indígenas saarianos” ou “saarauís ocidentais” e que a eles pertenceria o poder soberano no local. Imediatamente após a saída espanhola, o Marrocos (além de, brevemente, a Mauritânia), invadiu a região e começou o conflito que buscava anexar seu território de cerca de 266 mil km², no norte da África, rico em fosfato e com uma vasta costa marítima voltada para o Atlântico.
As hostilidades foram interrompidas por um cessar-fogo em 1991, mas retomadas em 2020, quando o Marrocos voltou a bombardear a nação. Apesar de contar com apoio da União Africana, da Corte Europeia de Justiça e de mais de 80 países do mundo, a Frente Polisário – o movimento revolucionário do Saara Ocidental que instituiu a Rasd em 1976 , luta na frente diplomática por um reconhecimento mais amplo. E para isso, o Brasil – um dos únicos três países sul-americanos que ainda não o fizeram – é fundamental.
O Brasil de Fato conversou com o representante diplomático da Rasd no Brasil, Ahamed Mulay Ali Hamadi, que fala das dificuldades do processo. No país há três anos, após ser embaixador saarauí no México, ele afirma que, embora conte com o apoio de toda a esquerda e setores progressistas no Brasil, a resposta ouvida é que a decisão cabe apenas ao presidente da República, a quem faz o apelo.
Leia abaixo a entrevista:
Brasil de Fato: Este ano, movimentos populares do Brasil pediram ao governo do Brasil reconhecer a República Saaraui, da mesma forma que reconhece a Palestina. O governo Lula deu algum sinal até agora de que vai fazer isso?
Ahamed Mulay Ali Hamadi: Sim, estamos tentando que sua excelência, o presidente Lula, que reconheceu a Palestina, faça o mesmo com a República Árabe Saaraui Democrática, que teve reconhecimento de 84 países no mundo. A República é membro fundador da União Africana, ou seja, temos muitas embaixadas já.
Nós acreditamos que a história da Palestina e a história do povo saharaui é a mesma, os palestinos enfrentando uma invasão, rodeados por muros, com pessoas desaparecidas, prisioneiros de israelenses.
A República Árabe Saaraui Democrática também vive o mesmo, nosso país está dividido por um muro de 2,7 mil quilômetros, com 8 milhões de minas. O Tribunal de Justiça Europeia, o BRICS, os não-alinhados, toda a organização africana e muitos outros estão com a República Saaraui.
Lula primeiro reconheceu a OLP, o Movimento de Libertação da Palestina e, anos depois, deram o passo histórico e reconheceram a República Palestina. Seu governo já reconheceu a Frente Polisário, que é o movimento da Revolução Sagrada e eu sou seu representante no Brasil. Agora, queremos que ele reconheça o país e nos deixe abrir uma embaixada. Venho do México, que reconhece a República Saaraui desde 1979. Até agora, estamos tentando chegar ao Lula, mas ainda não temos nenhuma luz.
Existe diálogo com o Itamaraty?
Sim, estamos em diálogo, temos encontros com o Departamento de África do Itamaraty, eles nos explicam, mas parecem não ter poder de decisão. Todos dizem que Lula é quem decide.
Nenhum sinal vindo de Lula, da Presidência?
Nada.
O senhor é o representante saaraui no Brasil há três anos. Há avanços rumo ao reconhecimento da causa do Sahara Ocidental?
Todos os partidos de esquerda estão conosco. O PT apoia a causa saaraui, PSOL, e inclusive alguns amigos do PDT e do PSDB. Temos defensores da causa saaraui como o MST e outros movimentos populares. Recebemos muita solidariedade de associações em Brasília, no Maranhão, na Bahia.
Estamos trabalhando para criar ações em São Paulo e estamos a ponto de criar uma em Porto Alegre. Além disso, também convidamos todos para nossas caravanas, para irem lá conhecer, viverem uma experiência africana, saaraui africana.
Este ano, teremos a terceira caravana. A primeira foi em 2023 e foram comigo 36 brasileiros. No ano passado, 20 brasileiros. E todos voltam com muita experiência, muita informação. Convido a todos que nos leiam. Saímos com a terceira caravana em 20 de novembro e retornamos no 3 de dezembro. Ficaremos uma semana na República Árabe Saaraui Democrática e passaremos três dias na República da Argélia.
As pessoas assim visitam duas culturas, duas revoluções, porque Argélia lutou contra a França e nós contra a Espanha primeiro e agora contra a Marrocos.
Nesta semana, no dia 15 de maio, foi dia do Nakba palestino. Assim como os palestinos enfrentam o lobby sionista, vocês enfrentam uma situação parecida com o Marrocos? Existe algo parecido ocorrendo no Brasil?
A União Africana já reconheceu, o Tribunal da Haia, as cortes africanas já falaram a nosso favor. E o mais importante foi a grande vitória que nós ganhamos agora no Tribunal da Justiça Europeia. Uma síntese jurídica extraordinária contra o Marrocos. E então você pergunta, o que o Marrocos pode usar contra o povo saaraui?
Corrupção, comprar pessoas, levar gente em viagens grátis para passear no Marrocos. Sabemos de casos em que tentaram pagar para que falassem mal de nós. O Marrocos utiliza isso. O Moroccogate [escândalo de corrupção que veio à tona em 2023, quando se descobriu deputados italianos recebiam para promover interesses marroquinos no Parlamento Europeu] foi uma vergonha, a polícia encontrou malas de dinheiro nas suas residências.
A região está em disputa entre o Marrocos e a República Saaraui. Mas, em termos jurídicos, a ONU reconhece a Espanha como administradora. Qual a posição da Espanha?
Infelizmente, a Espanha estava desde o começo até há três anos a favor da autodeterminação e respeita o que a ONU diz, que o Marrocos é um país invasor, ocupante, e que a administração do Sahara Ocidental segue e seguirá em mãos da Espanha até que se cumpra o referendo.
Mas, de repente, o premiê espanhol, Pedro Sanchéz, mudou de posição e em 2024 passou a defender que a República Saaraui permanecesse sob o regime marroquino, com autonomia. Mas o povo espanhol está ao nosso lado, anualmente cerca de quatro a seis mil espanhóis nos visitam.
Segundo a imprensa espanhola, Sanchéz pode estar sendo chantageado pelo rei do Marrocos. Segundo eles, a segurança marroquina teria roubado 12 gigas de seu celular por meio do sistema Pegasus [tecnologia espiã israelense]. As suspeitas surgiram porque a mudança foi repentina, sem avisar o Congresso, o Parlamento Europeu, o seu próprio partido. A imprensa passou a crer que o rei do Marrocos teria algum poder sobre Sánchez. Chantagem.
O mês de maio é o mês da revolução saaraui. Como estão as celebrações?
Em 10 de maio de 1973 decidimos pegar em armas contra o colonialismo espanhol e em 20 de maio ocorreu a primeira operação militar. Estamos, portanto, celebrando 52 anos destas datas. O país festeja de duas formas: com canções e danças nas ruas e, por outro lado, a graduação de dois batalhões de soldados.
Porque estamos em guerra. A Espanha bloqueou o acordo que firmamos, a França e Israel apoiam o Marrocos, e a ONU não tem força para nada. Quando vemos que não há força capaz de os fazer voltar à mesa de negociações, retornamos às armas em 13 de novembro de 2020.