
EMEF Espaço de Bitita, no Canindé, leva o apelido da escritora Carolina Maria de Jesus e é referência na inclusão de imigrantes, pessoas com deficiências e crianças em vulnerabilidade social. Familiares temem fim do projeto. Diretor afastado tem até pós-doutorado em Portugal, mas vai passar por reciclagem. Conheça a EMEF Espaço de Bitita, credenciada da Unesco para os objetivos de paz da ONU
Certificada pela Unesco e vencedora de prêmios nacionais de valorização e inclusão educacionais, a Escola Municipal Espaço de Bitita, no Canindé, Centro de São Paulo, tem vivido dias de apreensão desde que a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) decidiu afastar do cargo 25 diretores de escolas da cidade, na semana passada.
Com cerca de 800 alunos matriculados – a maioria filhos de imigrantes, crianças com deficiência e oriundas de famílias em situação de vulnerabilidade social – a unidade se tornou referência para o Brasil e o mundo pelo trabalho que desenvolve de acolhimento infanto-juvenil de imigrantes e crianças carentes.
Recebe todos os anos estudiosos e pedagogos de vários países, que tentam entender como é possível melhorar o ensino público e o acolhimento de imigrantes, diante de tantas adversidades.
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Mesmo assim, o diretor da unidade, Claudio Marques da Silva Neto, é um dos 25 que tiveram o número funcional publicado em Diário Oficial, pedindo comparecimento na Delegacia de Ensino da região central.
Embora sem data específica para ir ao local e sem motivo do comparecimento definido, a comunidade escolar já sabe que Claudio Marques está na lista dos que deverão passar por uma reciclagem definida pelo secretário municipal da Educação, Fernando Padula.
Apesar de a gestão municipal não falar oficialmente em remoção desses diretores de suas unidades de ensino, a comunidade escolar teme o fim do ciclo virtuoso da escola com a retirada, mesmo que temporária, do diretor do cargo.
Os pais têm se organizado para pedir apoio de deputados, vereadores e figuras públicas da educação para o que chamam de “salvar um projeto bem-sucedido de escola pública do naufrágio”.
Uma das articuladoras do movimento é a comunicadora Tatiana Oliveira. Moradora da Zona Norte de São Paulo, ela tem duas filhas matriculadas na escola, mesmo morando a 9 km de distância da escola, no Tucuruvi.
“Uma das minhas filhas tem deficiência e depois de experiências ruins em outras escolas, a gente encontrou na Bitita um espaço realmente inclusivo. Lá tem crianças com síndrome de down, autismo e com várias deficiências que são tratadas com respeito e acolhidas, de uma forma que é difícil encontrar até em escolas particulares. A gente está com muito medo que esse projeto acabe”, contou Tatiana.
Claudio Marques, diretor da EMEF Espaço de Bitita, no Canindé, Centro de São Paulo, durante debate na USP.
Reprodução/Youtube
Na última segunda (26), o grupo de pais da escola reunidos em um grupo chamado “Todos Juntos” levou uma série de parlamentares e educadores para um ato de defesa do espaço.
Com a participação dos alunos, a comunidade está reunindo assinaturas da comunidade para encaminhar à delegacia de ensino da região Penha e pedir a manutenção no cargo do diretor Claudio Marques, que trabalha na escola desde 2011.
“A Batita é uma escola onde as famílias são muito atuantes e participativas. Eu mesma fui parte do Corpo Diretivo por dois anos. Nós pais nos revezamos nesse trabalho. E o nosso medo é que esse processo de afastamento seja o início de uma privatização que vai acabar com o corpo de funcionários, que também fazem dessa inclusão que nós e os alunos amamos. Lá, todos os funcionários sabem tratar uma criança deficiente, incluem, são atenciosos. E a gente sabe que uma mudança de direção pode acabar com tudo”, contou.
Crianças imigrantes e carentes
O principal argumento da comunidade é que o afastamento do diretor apenas baseado nas notas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) não leva em conta a realidade local da escola e o trabalho que é desenvolvido.
No caso do Espaço Bitita, a forte presença de crianças imigrantes de várias nacionalidades pode ter pesado na derrubada na nota do Ideb da escola, que caiu para 4,8 na avaliação de 2023, segundo a contou o próprio diretor Claudio Marques.
“Nós temos 40% de estudantes que tem o português como segunda língua. São crianças vindas da Venezuela, Bolívia, Afeganistão, Paquistão e até Bangladesh. Elas chegam em várias idades e precisam se alfabetizar no português desde o início. No que pese o nosso método de aprendizagem e inclusão aqui, essas crianças demorarão mais para ter o mesmo nível de outros estudantes da rede”, avalia o diretor.
Outra questão destacada por ele é a realidade social dos estudantes. Por estar numa região central de muitos abrigos públicos, a escola recebe diversos alunos de acentuada vulnerabilidade social.
Segundo a própria direção, a EMEF Bitita tem mais de 50% das crianças de famílias que recebem bolsa família e outros benefícios sociais governamentais.
Ao menos 20% delas são oriundas de abrigos familiares provisórios ou das chamadas “Vilas Reencontro”, criadas pela atual gestão para amparar famílias que viviam em situação de rua na cidade.
“Temos um contingente de estudantes de extrema vulnerabilidade social e que, por vezes, tem a Bitita como escola de transição, porque as famílias estão em abrigos provisórios da prefeitura. Recebemos crianças de 8 a 11 anos que moravam na rua e estavam completamente fora da escola. São alunos que precisam ser alfabetizadas do zero. E mesmo assim estamos sem vagas, sendo acionados semanalmente pelo Ministério Público para conseguir incluir novas famílias de abrigos na nossa escola, em razão da excelência do nosso trabalho”, destacou.
Coral da EMEF Espaço de Bitita, no Canindé, vence prêmio da Câmara Municipal de SP
“O Ideb é uma fórmula matemática que diz pouquíssimo do trabalho de cada escola, da realidade social diária dos estudantes e da comunidade. Um dos critérios é a evasão escolar. Mas é óbvio que uma escola de transição como a nossa teria a nota rebaixada também nesse quesito”, completou.
Doutor e Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), além de Pós-Doutorado pela Universidade de Évora, em Portugal, Claudio Marques afirma que foi prego de surpresa com a inclusão de seu número funcional na lista.
Ele ainda não se apresentou na Delegacia de Ensino da região porque está esperando a convocação nominal ser publicada no Diário Oficial da cidade, com dia e horário.
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O secretário municipal de Educação da gestão Nunes, Fernando Padula, em foto na EMEF Perimetral, em Paraisópolis, em 20-04-2023. Foto:
Rovena Rosa/Agência Brasil
O g1 procurou o secretário Fernando Padula para comentar a questão da EMEF Espaço de Bitita, mas recebeu uma nota da Secretaria Municipal de Educação (SME) informando que os “25 diretores de escolas municipais em tempo integral foram convocados para participar, entre maio e dezembro, de uma requalificação intensiva do Programa Juntos pela Aprendizagem”.
“Esses profissionais atuam há pelo menos 4 anos em unidades prioritárias, selecionadas devido ao desempenho obtido no Ideb e Idep de 2023. A capacitação, inédita, inclui vivência em outras unidades educacionais e tem como objetivo o aprimoramento da gestão pedagógica para melhorar a aprendizagem de todos os estudantes. As unidades contarão com o reforço de mais um profissional na equipe gestora. A remuneração dos diretores será mantida”, declarou a secretaria.
Em entrevista ao g1, a atual secretária-executiva pedagógica da pasta, a educadora Maria Silvia Bacila, disse que o curso de requalificação com 25 diretores de escolas afastados pelos resultados abaixo do esperado começa na próxima segunda-feira (2).
Segundo a pasta, os profissionais foram convocados para a requalificação em período integral e isso os impedirá de atuar nas unidades. A secretaria, então, enviará outros profissionais para atuar nas unidades neste período.
A direção dessas escolas ficará a cargo dos atuais números 2 da direção e não será diretamente feita por este reforço enviado pela secretaria.
“Nós não estamos colocando nenhuma culpa no diretor, em hipótese alguma. Nós estamos trazendo esse diretor para um processo formativo coletivo em que nós queremos caminhar junto com esses diretores para podermos, sim, superar resultados que são altamente desafiados para todos nós e não para eles, mas para todos nós”, afirmou Bacila.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) ao lado do secretário de educação, Fernando Padula
Divulgação/PMSP
A secretaria define a decisão de fazer a requalificação como uma “oportunidade “desenvolvimento profissional dos gestores” e rebate o uso do termo “afastamento” para tratar do tema.
“Os diretores foram convocados para um processo de desenvolvimento profissional, não há afastamento. Afastamento é uma outra coisa, nós não estamos trabalhando com essa perspectiva”, diz.
A secretária afirmou que os diretores serão “devolvidos” depois do processo de requalificação. No processo de devolução, haverá uma intervenção pedagógica qualificada, afirmou ao g1 (leia mais aqui).
Prêmios do Espaço Bitita
A escritora Carolina Maria de Jesus, que morou na antiga favela do Canindé, no Centro de SP, e hoje seu diário pessoal leva o nome da escola municipal do bairro.
Montagem/g1/Reprodução/Instituto Moreira Salles
Fundada em 1960 com o nome de Infante Dom Henrique, em homenagem a um navegador português morto em 1.460 e quinto filho do rei Dom João I de Portugal, a escola do Canindé descobriu que teria que ter um nome que revelasse mais as suas origens.
Por meio de um trabalho de pais e professores, a escola iniciou um movimento em 2015 para mudar de nome e adotar o apelido carinhoso de “Bitita” da escritora negra Carolina Maria de Jesus, que já era homenageada com o nome de outras escolas de São Paulo.
Moradora da antiga favela do Canindé, a escritora escreveu enquanto vivia no bairro, há poucos metros da escola, aquele que é um hoje dos livros mais aclamados atualmente pela academia: “Quarto de Despejo”.
“Diário de Bitita” é outro livro autobiográfico que foi publicado apenas em 1986, após a morte da escritora, e conta as agruras vividas por ela durante a vida no bairro.
A mudança de nome proposto pela comunidade chegou a ser aprovada na Câmara Municipal de São Paulo em 2017, mas foi vetada pelo então prefeito João Doria (ex-PSDB). O novo nome só foi sancionado pelo atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), em junho de 2023.
Desde 2015 para cá, a vocação da escola para o diálogo comunitário e a inclusão racial e social ultrapassou os muros e as salas de aula, e foi reconhecida nacionalmente.
O diretor escolar Claudio Marques recebe o Prêmio Faz Diferença, do jornal ‘O Globo’, em março de 2018, no Rio de Janeiro.
Pablo Jacob/Agência O Globo
Ainda como EMEF Infante Dom Henrique, a escola venceu em 2017 o Prêmio Faz Diferença, do jornal “O Globo”, na categoria Educação.
Ao receber o prêmio no Rio de Janeiro, no ano seguinte, o diretor Cláudio Marques destacou o fato de o prêmio ter sido dado a uma escola pública. Para ele, era uma prova de que o sistema público de educação também pode fazer a diferença ao acolher alunos de diversas origens étnicas e socioeconômicas.
“Como disse Simone de Beauvoir, é do ponto de vista das oportunidades concretas dadas aos indivíduos que julgamos as instituições. Num mundo em que a intolerância impera, conseguimos provar que é possível fazer a diferença pelo respeito, e assim a tolerância é o que prevalece”, disse ele no discurso registrado pelo jornal.
Naquele mesmo ano, a escola foi finalista do Prêmio Educador Nota 10, da Fundação Victor Civita, com o projeto “O migrante mora em minha casa”, tocado pela professora de história Rosely Marchetti Honório.
A EMEF também foi uma das premiadas pelo Instituto Tomie Ohtake com outro projeto chamado “Roteiros de Aprendizagem”, que abordava com os alunos assuntos como violência contra a mulher, racismo e homofobia (veja víde acima).
Foi o passo que faltava para que a escola ingressasse de vez num hall seleto de escolas certificadas pelo programa internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
Também em 2017, a escola passou a integrar uma rede de 10 mil escolas de 180 diferentes países, que estão conectadas ao programa UNESCO Associated Schools Network (ASPnet), da ONU.
ONU certifica a escola municipal do Canindé como parte da UNESCO Associated Schools Network (ASPnet), em 2017.
Acervo pessoal
O objetivo do programa é construir uma rede de difusão de objetivos da Organização das Nações Unidas para a paz e a cidade global, com educação para o desenvolvimento sustentável do planeta.
Em novembro de 2023, foi a vez de a Câmara Municipal de São Paulo também dar à escola o 1° Lugar do prêmio Heitor Villa-Lobos da Educação Municipal, pelo projeto de “Canto, Coral e Literatura – a diversidade canta aqui”, onde alunos do ensino fundamental tem aulas de música e instrumentos, inclusive as crianças com deficiência.
No ano de 2021, a própria prefeitura de SP concedeu à escola o Prêmio Municipal de Educação em Direitos Humanos, pelo projeto da Rádio Bitita, uma série de podcasts feitos pelos próprios alunos.
“A Batita é um projeto educacional raro, que precisa ser mantido, valorizado e ampliado. Pra você ter uma ideia, a minha filha faz parte do grupo de crianças do SESC chamado Curumim, onde estudantes de várias escolas públicas e privadas se encontram. Um dia uma colega viu ela de uniforme da prefeitura e disse: ‘a minha mãe falou que escola pública não presta’. E na hora a minha filha respondeu: ‘acho que a sua mãe não conhece a minha escola. Porque ela é muito boa e eu adoro’”, lembrou Tatiana Oliveira.
Além dos 800 alunos do 1° ao 9° ano do ensino fundamental, a escola ainda tem 150 alunos no período noturno do Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
No curso, imigrantes aprendem aulas de português gratuitamente e famílias em situação de rua volta a estudar, depois de conseguirem estabilidade de moradia em projetos sociais da prefeitura.
Câmara Municipal de SP homenageia o coral da EMEF Espaço de Bitita, no Canindé, Centro de SP, em razão do projeto de coral inclusivo da escola.
Reprodução/Instagram
“Nós passamos por quatro escolas diferentes com o meu filho, que tem Síndrome de Down. O que nos apavora é o fato de o Cláudio ser tirado e a gente perder o olhar funcional para a comunidade, que ele fez todos entenderem que também faz parte do processo de aprendizagem. Eu tenho uma escola mais perto da minha casa, onde a sala multifuncional para não funciona. O projeto da Bitita é um plano bem sucedido de educação que precisa ser mantido”, disse Maria Eliete Alves, mãe de um aluno do 8° ano.
“O trabalho que é desenvolvido na Bitita é de olhar e acolhimento para a comunidade. As crianças aprendem a pensar como cidadãos, com suas diferenças múltiplas. E a gente não acha justo a prefeitura mexer com uma escola que deveria ser modelo para todas as outras na inclusão”, declarou.
Mãe de uma menina do 9° ano, a dona de casa Silvana Neres Vieira faz parte da Associação de Pais e Mestres (APM) da escola do Canindé e destaca o diálogo da Espaço de Bitita com outras instituições do entorno.
“Minha filha tá no 9° ano e desde a sétima ela faz um curso preparatório na escola para fazer vestibulinho e tentar entrar no Instituto Federal, que também fica aqui no bairro. Ela adora essas aulas extras e tá muito empolgada pra prova no final do ano”, contou.
“Acho que, em vez de mudar uma coisa que tá dando certo, a Prefeitura precisa pensar em melhorar a escola, ampliar pra mais gente. A reforma da Bitita, por exemplo, já dura quase dois anos e não foi terminada. Há anos a gente pede um terreno pra ampliar a escola para novos alunos, e não somos atendidos. Hoje os estudantes estão tendo aula no meio da poeira e do quebra-quebra. Um monte de criança e professor com problema respiratório. Será que eles não acham que isso também prejudica o aprendizado?”, argumentou Silvana.
Em nota, a Prefeitura informou que a “EMEF Espaço Bitita está recebendo uma ampla obra de manutenção que inclui serviços de adequações nos sistemas elétrico e hidráulico, pintura geral, melhorias nas condições de acessibilidade, troca de revestimentos, recuperação dos telhados e revitalização das áreas externas. O objetivo é garantir mais segurança e conforto à comunidade escolar. A intervenção está sendo executada pela empresa Maróstica Engenharia e Participações Ltda, com valor contratual de R$ 2,7 milhões e previsão de conclusão para fim de julho de 2025.”
MP pede esclarecimentos
Claudio Marques faz parte de um grupo de diretores que serão ouvidos pela promotora Fernanda Peixoto Cassiano, do Ministério Público de São Paulo. Além dele, alguns diretores de escolas onde há muitos alunos indígenas e autistas, por exemplo, também serão ouvidos pela promotoria.
Na última sexta (23), ela enviou um ofício para a prefeitura pedindo esclarecimentos sobre o afastamento dos 25 diretores e da situação de cada uma das escolas atingidas pela nova medida.
A promotora deu um prazo de cinco dias para que a gestão do secretário Padula esclareça os seguintes pontos:
Quais os fundamentos para os afastamentos;
Qual o período desses afastamentos;
Informar se houve espaço para defesa dos diretores afastados;
Como se dará a substituição desses profissionais.
A partir dos depoimentos dos diretores e das respostas da prefeitura, a promotora deve decidir se vai procurar a Justiça ou não para intervir nas ações da Secretaria Municipal da Educação.