Por trás de cada batida de 150 BPM, há uma cidade que pulsa e sangra. A prisão de MC Poze do Rodo, no Rio de Janeiro, sob a acusação de “apologia ao crime e associação ao tráfico”, é mais um capítulo de um enredo antigo: o da criminalização da cultura das favelas. Em pleno 2025, o Brasil repete a fórmula do racismo estrutural que marca corpos, silencia vozes e transforma artistas em alvos preferenciais de um Estado que se recusa a ouvi-los.
Do funk proibidão ao estigma institucionalizado
O que o funk e seus artistas sofrem não é apenas a censura do conteúdo, mas um processo sistemático de marcação social. Certos grupos são transformados em alvos preferenciais de vigilância, suspeição e punição, não por aquilo que fazem, mas por quem são, de onde vêm e o que representam. Quando MCs favelados cantam seus becos, suas perdas e suas revoltas, não estão promovendo o crime — estão traduzindo em música a ausência de políticas públicas, o excesso de violência policial e a crueza de uma realidade socialmente negligenciada. Mas o sistema não quer escutar vozes dissidentes. Quer obediência. E quando não há obediência, há repressão.
A perseguição institucional ao funk tem longa data. Em 2019, DJ Rennan da Penha foi condenado em segunda instância e preso, sem provas concretas, por “associação ao tráfico”. Sua absolvição pelo STJ, em 2020, foi tardia — mas escancarou o caráter seletivo do sistema penal. Em dezembro 2010, MCs dos Complexos do Alemão e da Penha foram presos sob acusação de fazer apologia e se associarem ao tráfico. Foram soltos na véspera do Natal, por decisão do STJ, que considerou frágeis as provas e arbitrárias as prisões.
Na década de 90, MCs já eram intimados e criminalizados. Os clubes que faziam bailes funk no asfalto foram ameaçados de perder seus alvarás de funcionamento, o que acabou com os bailes no asfalto, jogando o funk para dentro das favelas novamente. Desde o seu surgimento, o funk sofre perseguição. Antes dele, muitos outros artistas populares identificados com os batuques negros também tiveram que passar pelo crivo da justiça criminal.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro, ao divulgar vídeo oficial após a prisão de MC Poze, recorreu ao termo “narcocultura” para qualificar a estética, a linguagem e o modo de vida retratados em suas músicas e shows. Trata-se de uma tentativa institucional de deslegitimar toda uma expressão artística ao associá-la diretamente ao crime organizado, operando um atalho discursivo que transforma artistas em suspeitos, e realidades narradas em apologias criminosas. Esse enquadramento não é neutro — ele é profundamente ideológico e racista.
Determinadas identidades sociais são historicamente tratadas como “desviantes” não por suas ações em si, mas pelos atributos que lhes são impostos e recusados pelo olhar dominante — como a cor da pele, o território de origem, o modo de falar, vestir e existir. O que está em jogo, quando se criminaliza o funk, não é a presença de um conteúdo propriamente criminoso nas letras, mas sim a antecipação da culpa baseada no lugar social, racial e geográfico de quem canta. É por isso que expressões como “narcocultura” não são aplicadas, por exemplo, à música Lança-perfume, de Rita Lee, nem aos roqueiros marcados pelo lema “sexo, drogas e rock’n roll”. O que varia não é o conteúdo, mas a origem social e a permissividade seletiva. No Brasil, o que se pune não é a menção à droga, mas quem fala dela, de onde fala, e com que corpo.
A noção de “narcocultura”, usada de forma genérica pela polícia, desconsidera que o funk não é um instrumento de propaganda do tráfico, mas sim uma linguagem orgânica em territórios onde o Estado só chega com fuzil. Ao estigmatizar o funk como extensão da facção, o discurso institucional confunde arte e crime deliberadamente, reforçando a função do estigma como tecnologia de contenção social: “não é permitido falar da favela, a não ser que seja para criminalizá-la ou para ter pena dela”, como disse MC Leonardo. MCs não são propagandistas de facções — são cronistas de ausências e potências, inventores de mundos possíveis em meio ao boicote político Confundir denúncia com apologia, arte com delito, é uma escolha política de quem recusa escutar as vozes das pessoas que vivem a realidade sobre a qual estão falando.
Dois pesos, duas medidas: o Bope também canta
Em vídeos amplamente difundidos nas redes, unidades do Batalhão de Operações Especiais (Bope) entoam, com fúria e orgulho, versos como:
“Homem de preto, qual é sua missão?
É invadir favela e deixar corpo no chão!”
Aqui, a violência não é só cantada — é celebrada. E não é só celebrada, é praticada com dinheiro público, cobertura política e propaganda oficial. Contudo, nenhuma acusação de apologia ao crime recai sobre essas manifestações. O que nos remete ao ponto-chave: não se trata do que se canta, mas de quem canta. Quando a violência é narrada pelo Estado para o morro, ela é “legítima defesa da ordem”; quando é cantada do morro para o mundo, ela vira “apologia ao crime”.
Essa discrepância revela um mecanismo perverso de julgamento social: o artista da favela não é reconhecido por quem é, mas por aquilo que se presume que ele representa. O funkeiro não é visto apenas como um músico ou cronista de seu tempo — ele é previamente rotulado como suspeito, como ameaça moral, como alguém cuja simples presença pública já incomoda. Sua arte não é interpretada como expressão, mas como indício. Sua estética é tratada como evidência de um crime, ainda que não cometido. E assim, antes mesmo de cantar, já está condenado ao enquadramento.
A cultura da favela como ameaça ao poder
Em 2007, o então deputado Álvaro Lins propôs uma lei que, na prática, proibia a realização de bailes funk no Rio de Janeiro. A justificativa era “combater a criminalidade e a degradação moral”, mas o alvo real era claro: impedir que a favela tivesse voz, corpo e ritmo, a não ser que pagassem os famosos “arregos” aos batalhões e delegacias de polícia locais. A lei foi aprovada, mas a reação veio das ruas. A APAFUNK — Associação dos Profissionais e Amigos do Funk — articulou protestos, audiências públicas e mobilizações que levaram à revogação da norma em 2009.
Álvaro Lins, anos depois, foi preso e condenado por corrupção e formação de quadrilha quando chefiava a Polícia Civil. O paradoxo é trágico: o legislador que queria silenciar o funk por sua suposta ligação com o crime, era ele próprio parte ativa da engrenagem criminosa do Estado. Enquanto isso, os artistas que ele tentou calar seguem resistindo.
Como disse MC Leonardo em entrevista à Ponte Jornalismo em 2017:
“Quando as pessoas falam que o funk é uma cultura pobre, que é um lixo cultural, problema delas. Eu só não posso admitir que não seja cultura. Porque cultura é toda forma de viver de um determinado povo e o Rio de Janeiro hoje tem o funk como sua principal cultura.”
Estigma não é sentença — é estratégia de poder
O estigma não é uma falha individual, mas um mecanismo social de controle que opera para deslegitimar certos grupos como portadores válidos de linguagem, cultura e opinião. No caso dos MCs, essa marcação recai sobre três vetores principais: a raça, o território e a estética. Não importa o conteúdo da fala — importa quem fala, de onde fala e como fala. O resultado é um cerco simbólico que busca reduzir o artista favelado à condição de ameaça, impedindo que sua voz circule com liberdade e seja reconhecida como expressão legítima de um país que insiste em negar sua própria periferia.
É por isso que, mesmo sem provas, as acusações se sustentam: o funkeiro já é lido como culpado antes mesmo que sua música seja escutada. Ele precisa o tempo todo “atestar normalidade”, “provar que é do bem”, “explicar que é artista”. O simples fato de cantar o que viveu se transforma, aos olhos da sociedade, em sinal de perigo. O estigma, nesse contexto, funciona como uma condenação prévia e culturalmente aceita.
Desconstruir o estigma é, portanto, um projeto político de transformação: exige desnaturalizar as lentes com que o sistema penal, a mídia e parte da opinião pública enxergam a favela, o funk e seus artistas.
Criminalizar o funk é criminalizar a existência da favela
A prisão de MC Poze não é apenas um erro jurídico — é um projeto político. Um projeto que se repete toda vez que a cultura da favela emerge com força, beleza e autonomia. O que se busca silenciar não é apenas uma letra, uma rima ou um show. É o direito da periferia de narrar a si mesma, com sua língua, sua dor, seu riso e sua fúria.
As tentativas legislativas como o PL Anti-Oruam, os inquéritos vagos por “apologia”, as prisões arbitrárias de artistas são peças de uma engrenagem mais ampla: a que transforma a cultura da favela em inimiga do Estado. Mas como canta o próprio Poze:
“Deixa o meu cavalo andar
Não vou parar, vou prosperar
Vou avançar, pra sempre continuar
O-olha o que eu me tornei sem precisar de vocês A mente é de um sábio e a coroa é de rei
Tudo que eu quero, eu tenho, mas é disso que eu preciso A saúde dos meus pais, felicidade dos meus filhos”
O que chamamos de criminalização do funk é, na verdade, a criminalização da favela e da população negra, pobre e periférica. O funk é tocado nas festas de final de ano dos governantes e políticos, grandes empresários e artistas globais. Lá não há polícia, não há algemas e muito menos discursos de narcocultura. A criminalização do MC Poze é, portanto, a atualização de um capítulo lamentável de nossa história, onde as manifestações culturais negras são silenciadas pelas velhas práticas de violência de estado, tal qual aconteceu com o samba, a capoeira e os batuques em geral. Mas sempre nos territórios periféricos, nunca nos salões das casas grandes. Faz parte da nossa história vermos as elites desfrutando o gostinho de curtir um tamborzão, extraído como uma riqueza dos territórios colonizados, para servir de deleite para as elites colonizadoras que, mesmo não conseguindo ficar paradas quando o funk toca, no fundo odeiam o povo brasileiro e temem a sua capacidade de criar novos horizontes.
*Guilherme Pimentel é advogado de Direitos Humanos e ex-ouvidor Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
**Jackson Anastácio é assessor parlamentar e estudante de Ciências Jurídicas e Sociais.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
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