As botas, os óculos e outros equipamentos da agricultora Vera Lúcia Batista estão sempre preparados, guardados em uma sacola. Quando aparece um foco de incêndio, é preciso agir rápido. E, em Corumbá (MS), o município com a maior área incendiada nos últimos 40 anos no Brasil, o risco é grande.
“A brigada tem que saber como é o preparo, o que você pega para ir para o combate”, diz Batista, que é chefe líder da brigada do assentamento São Gabriel do Pantanal, em Corumbá, grupo formado por 15 pessoas, entre homens e mulheres.
Entre 1985 e 2024, as chamas consumiram um total acumulado mais de 3,8 milhões de hectares no município, uma área quase do tamanho de Guiné-Bissau – ou maior que o estado do Alagoas. Os dados estão na primeira edição do Relatório Anual do Fogo (RAF), do MapBiomas, publicado nesta terça-feira (24).
“O fogo… Ele não tem fronteira. Então, nós temos que cuidar do nosso território, do nosso bioma, que é o nosso Pantanal”, diz a brigadista. O levantamento do MapBiomas aponta que o Pantanal foi o bioma que proporcionalmente mais sofreu com as chamas, com 62% do território queimado pelo menos uma vez em 40 anos.

Corumbá, município brasileiro líder de incêndios, tem 97% do seu território no Pantanal e 3% no Cerrado. Embora o fogo faça parte dos ciclos desses ecossistemas, os incêndios por lá estão mais frequentes e mais devastadores.
Em setembro de 2024, um único incêndio destruiu uma área de 339 mil hectares – duas vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Nessa ocorrência, o fogo começou em uma fazenda e atingiu outras 135 propriedades rurais, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), que aplicou duas multas no valor de R$ 50 milhões cada, para dois fazendeiros apontados como responsáveis pela catástrofe.
Lidando com o fogo
Naquele ano, o produtor rural Josué Cristaldo quase perdeu um pulmão. “Ficou bem afetado devido às fumaças (…) Eu não conseguia respirar direito, andar, faltava ar”, diz. Ele recebeu cuidados médicos e precisou reduzir o trabalho por algum período. “Não conseguia nem andar muito”, lembra.
Hoje, Cristaldo está bem e segue trabalhando nos roçados do assentamento 72, em Ladário, município vizinho de Corumbá, onde vive com a família. Ele espera que os incêndios deste ano sejam menores que aqueles presenciados em 2024. “Era impossível você trabalhar depois das 8 horas, era a umidade baixa. E devido ao calor também… Muita fumaça, muita fumaça”, lembra.
Um relatório do Instituto SOS Pantanal indica que a temporada de incêndios no bioma em 2024 foi uma das mais severas já registradas. “Apenas no mês de junho, mais de 411 mil hectares foram consumidos pelo fogo – o maior volume da série histórica para esse período, superando até mesmo a média de setembro, tradicionalmente o mês mais crítico. Até o início de julho, mais de 760 mil hectares haviam sido afetados, representando cerca de 4% do bioma”, informa o documento.

Na análise do MapBiomas, o ano passado fica atrás somente de 2020 e 1999 com relação à devastação provocada pelos incêndios no Pantanal. “Dava pra ver os morro queimando, é muito triste”, lembra a agricultora Yris Cusirimay Apuri, companheira de Cristaldo.
Há três anos, ela entrou para a brigada voluntária do assentamento 72. O grupo ainda não precisou ir ao combate do incêndio, mas a agricultora está preparada. “Me chamando, eu vou”, diz. O pai de Cristaldo também faz parte da brigada.
Já o produtor prefere concentrar os esforços nas roças de orgânicos cultivados no assentamento. “Chega essa época do ano, a gente já se prepara, né? Já prepara a terra, prepara o solo, prepara mais racionamento de água”, conta.
Ele e a companheira cultivam frutas, hortaliças e produzem queijo, alimentos que são entregues em Ladário e Corumbá. “A gente prepara tudo e espera passar o tempo dessas queimadas, passar o tempo da seca, para voltar. Até a produção a gente diminui um pouco”, conta o produtor.
Fogo e água
O fogo faz parte dos ciclos do Pantanal que, por passar parte do ano alagado, acumula no solo uma grande quantidade de matéria orgânica. E isso serve de combustível para os incêndios. Assim, o bioma queima e alaga em ciclos complementares.
“Sempre houve queimada no Pantanal”, diz Cristaldo, que mora na região desde que nasceu, há 26 anos. Mas, nos últimos anos, algo mudou. “De 2020 para cá aumentou grandemente [os incêndios]. O Pantanal tem sofrido com queimada”, afirma.
Embora seja um bioma conhecido pelos períodos de alagamento, esse cenário está mudando. Corumbá lidera o ranking dos municípios que mais perderam superfície de água nos últimos 40 anos. “O Pantanal tem ficado cada vez mais seco, e o fogo está saindo de controle”, alerta Gustavo Figueiroa, biólogo e diretor de comunicação do SOS Pantanal. Além disso, o território está cada vez mais povoado, como explica o biólogo. “Tem muito mais gente morando lá, muito mais gente usando a terra”, diz. Com mais gente, o risco de incêndios aumenta.
“Na escala que está, não é mais natural. Água e fogo são elementos parte do Pantanal. Só que o Pantanal está secando por ações humanas (…) E os incêndios estão maiores agora, isso a gente consegue perceber por área queimada”, diz Figueiroa.

Eduardo Rosa, pesquisador do MapBiomas especializado no Pantanal, afirma que os períodos de seca têm ficados mais extensos por lá desde 2018. “O período que talvez se concentrasse em agosto, setembro e outubro tem aumentado. E aí, sim, tem aumentado a temperatura e tem diminuído a quantidade de chuva. Esse conjunto de fatores faz com que o bioma fique mais suscetível ao fogo”, explica.
Alterações climáticas em outros biomas também resultam em seca e, consequentemente, nos incêndios no Pantanal. “O bioma Pantanal depende da chuvas que caem no entorno dele, em áreas do Cerrado, em áreas da Amazônia. E essa dinâmica das chuvas tem mudado também”, explica Rosa.
Segundo o MapBiomas, nos últimos 40 anos, 91% das bacias hidrográficas do Cerrado perderam água, com destaque para as áreas de atividade agropecuária, conforme noticiou o Brasil de Fato. “Então, isso interfere o bioma e tem refletido na incidência de fogo”, afirma o pesquisador.
Guardiões do Pantanal
Conhecedora do seu território, Batista sabia da necessidade de formar uma brigada. Em 2022, ela e outros moradores do assentamento receberam treinamento em parceria com a ONG Ecoa e formalizaram o grupo de combate e prevenção de incêndios.
O trabalho começa antes da chegada das chamas. “A gente vai começar a fazer os aceiros, neste mês, até agosto, já pra ficar tudo pronto, pra, se vier o fogo, ele não pegar forte”, conta a brigadista. Aceiros são faixas de terra em que a vegetação é retirada, feitos para conter o alastramento das chamas.

Mão na enxada e olho no celular. É assim a rotina da chefe da brigada, porque os alertas de incêndio chegam na tela do aparelho, por um aplicativo. E, quando chegam, é preciso agir rápido. “A vida do brigadista é assim, dia e noite você tem que estar aguardando, para ver se vai ter algum incêndio”.
“Aí eu já ligo para todos os brigadistas e enquanto isso eu já vou enchendo as máquinas, já vou preparando, e a gente vai para o combate”, conta. As máquinas são as bombas d’água, que vão nas costas dos brigadistas. “A gente tá aqui de prontidão. Nós somos guardiões do nosso território e do nosso bioma”, diz a agricultora.
Em novembro de 2024, o grupo trabalhou junto pela primeira vez no combate a um incêndio. “E eu tinha ido lá numa venda que tem aqui no assentamento, eu e o meu esposo. Quando nós fomos, eu vi aquele fogo que brotou”, lembra. Batista reuniu o grupo e deu as instruções. Alguns seguiam na frente, fazendo o aceiro. “Fomos colocando brigadista para uma parte, brigadista para o outro lado. Eu conversei com eles e a gente, sempre assim, observando. Cada um com apito para a gente poder estar comunicando”, conta. Mesmo desfalcado – naquela ocasião, a brigada do assentamento São Gabriel do Pantanal estava só com seis combatentes – o grupo conseguiu conter as chamas.
“Aí eu fiquei tão feliz, sabe? Porque a gente conseguiu fazer”, diz Batista. Em dezembro de 2024, os brigadistas voltaram ao trabalho. “Nós conseguimos apagar, fazer o combate de duas queimas de fogos [em 2024]. E uma foi criminosa”, ressalta.

Seca, trens e fazendeiros
Corumbá é o maior município do Brasil fora da Amazônia em extensão territorial. São mais de seis milhões de hectares, uma área do tamanho da Letônia.
Na lista total de municípios gigantes, Corumbá ocupa o 11º lugar. Localidades maiores, como São Félix do Xingu (PA), com cerca de 8,4 milhões de hectares; e Altamira (PA), o maior município do Brasil, aparecem em segundo e terceiro lugar entre os mais incendiados nos últimos 40 anos. Além da grande porção de terras, esses lugares têm outro ponto em comum: concentram os maiores rebanhos bovinos do país.
Embora em algumas regiões a criação extensiva de gado seja a principal causa dos incêndios – já que o fogo é usado para a abertura de pastos – em Corumbá as chamas são relacionadas também a outros fatores, como a maior facilidade de combustão resultante do acúmulo de matéria orgânica no solo.
O agronegócio, no entanto, tem a sua participação nos incêndios do município. Das oito multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) em 2024 em Corumbá, pelo menos cinco foram destinadas a donos de grandes porções de terras.
Além dos fazendeiros multados em R$ 50 milhões cada pelo incêndio de 339 mil hectares, o Ibama aplicou outras três multas de menor valor, mas ainda assim milionárias, todas destinadas a homens cujos nomes são relacionados a grande imóveis rurais. Os valores são R$ 10.630.500,00, R$ 1.057.500, 00 e R$ 1.012.500,00.
Uma empresa vinculada ao setor, a Rumo Malha Oeste, do grupo Rumo, maior administrador de ferrovias do país, também foi penalizada por um incêndio devastador. A multa, no valor de R$ 50 milhões, é referente a um incêndio que consumiu 17,8 mil hectares do Pantanal, em agosto de 2024. O fogo começou com uma faísca durante a manutenção dos trilhos.
A empresa Trill, responsável pela manutenção da linha férrea, também foi multada em R$ 50 milhões pelo incêndio no bioma. Outro auto de infração, de R$ 7 milhões, foi aplicado pelo descumprimento das condicionantes do licenciamento que a empresa tem para operar na região.
A Rumo é responsável por 26% do volume de grãos, como soja e milho, exportados pelo Brasil, segundo informações do site da empresa.
Outros dados do relatório
O levantamento do MapBiomas indica que, de 1985 a 2024, quase um quarto do território nacional, ou 24%, queimou pelo menos uma vez. Isso equivale à soma das áreas do Pará e do Mato Grosso.
Nas últimas quatro décadas, 206 milhões de hectares foram afetados pelo fogo com intensidades diferentes em cada um dos seis biomas do país. O Cerrado, que sofre constantemente com o fogo, possui a maior média anual de área queimada do país; enquanto a Mata Atlântica soma a maior área afetada pelas chamas nas últimas quatro décadas – e é o bioma mais devastado do Brasil.
Em 2024, a Amazônia foi a região mais incendiada e, pela primeira vez desde 1985, a floresta foi a parte mais afetada pelo fogo no bioma, superando as pastagens.

Os dados ressaltam a extensão da área queimada em 2024 no Brasil, quando 30 milhões de hectares foram afetados – uma área 62% acima da média histórica de 18,5 milhões de hectares por ano.
Com relação aos estados, Mato Grosso, Pará e Maranhão concentram, juntos, 47% da área queimada em todo o Brasil entre 1985 e 2024. O Mato Grosso lidera a lista de área acumulada de incêndios entre os estados com mais ocorrências nos últimos 40 anos.
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