Da perspectiva das organizações do movimento negro e de mulheres negras, talvez o primeiro aspecto que devemos destacar sobre a política externa brasileira é que a Coalizão Negra por Direitos está de acordo com a defesa reiterada do Ministério das Relações Exteriores em relação ao diálogo multilateral e das instituições multilaterais sob a coordenação das Nações Unidas.
Neste aspecto, devemos lembrar que esses diálogos e instituições têm contribuído para agendas e debate global importantes sobre o racismo e a discriminação racial, por exemplo:
1) a celebração da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, e ratificada pelo Brasil em 1969;
2) os imensuráveis debates sobre o fim do regime de apartheid na África do Sul, até sua derrota oficial, em 1994, com a ascensão de Nelson Mandela à presidência da África do Sul;
3) os esforços da diplomacia brasileira para a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, com ampla participação ativistas negros na delegação oficial brasileira.
Cito esses exemplos porque, entre alguns outros, eles são marcos que, inclusive, nos fornecem, até hoje, respaldo e orientações em âmbito internacional e nacional para a atuação da sociedade civil contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância racial:
1) a Convenção demarca direitos civis essenciais à população negra em diversas dimensões de sua cidadania, direitos políticos, sociais, econômicos e culturais;
2) o instituto de condenação internacional ao regime de apartheid permanece sendo princípio que consubstancia outros instrumentos internacionais de direitos humanos; e
3) a Conferência de Durban, com sua Declaração e Plano de Ação, se mantém como forte instrumento de defesa das populações que compreendem a diáspora africana e dos países africanos. É notável que, mesmo transcorrido 24 anos de sua realização, o conteúdo e visão desses dois documentos permaneçam com surpreendente atualidade.
Então podemos afirmar que a defesa do diálogo multilateral, e a defesa que a política externa brasileira faz desse diálogo, é algo que as organizações negras avaliam como sendo um direcionamento político extremamente relevante e que deve ser valorizado por todos os segmentos da sociedade civil brasileira comprometidos com a luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e todas as outras formas correlatas de intolerância.
Mas temos outros aspectos negativos da política externa que merecem ser apontados nesse momento.
É evidente que, por exemplo, a diplomacia brasileira deveria ter papel mais atuante no acolhimento da participação das organizações do movimento negro na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. A diplomacia brasileira deveria reconhecer que as críticas que nós, os/as ativistas, apresentamos à Comissão são consistentemente válidos. E, podemos afirmar que, em considerável medida, os relatórios oficiais brasileiros apresentados nas sessões/reuniões periódicas desta Comissão não dialogam com as críticas apresentadas pelas organizações do movimento negro e do movimento de mulheres negras.
Ou seja, não é adequando a reiterada atitude oficial brasileira de afirmar que o país e suas instituições estão a fazer isso e aquilo, positivamente, quando as evidências trazidas pelas organizações da sociedade civil negra dizem justo o contrário.
A brutalidade policial e as políticas de segurança do Brasil atentam contra a vida das pessoas negras e, sobretudo, contra a juventude negra. O Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do ano de 2023, não trouxe novidade frente aos relatórios anteriores. Em 2023, para cada 100 mil habitantes no país na faixa etária entre 0 e 19 ano, do sexo masculino e de cor negra, 18,2 são assassinados, enquanto a taxa de mortalidade para o mesmo grupo entre brancos seja 4,1 por 100 mil”. Essa mesma instituição, o Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, já havia afirmado, em 2021, que no Brasil a chance de uma pessoa negra ser assassinada é 2.6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.
A intolerância religiosa e o racismo religioso se expandem violentamente no país desde a década de 1980. Os ataques às comunidades de terreiro se alastram de norte a sul do país e essas práticas objetivas de intolerância religiosa representam a face brasileira do fundamentalismo religioso, que também se alastra pelo mundo, e é condenado em diversos instrumentos internacionais moldados no âmbito das Nações Unidas.
O direito ao trabalho, o direito à segurança alimentar, o direito à moradia descente, o acesso à educação em todos os níveis de formação – direitos humanos essenciais -, são negados à população negra brasileira e isso é reiteradamente comprovado em todos os indicadores nacionais, e oficiais, sobre a desigualdade social no Brasil.
Enfim, esse quadro de vulnerabilidades, e a negação de direitos à população negra, parece não fazer parte da compreensão e atuação da diplomacia brasileira em fóruns internacionais. Assim, parece ser certo desprestigio que ativistas presentes em fóruns internacionais sob a mediação da diplomacia brasileira precisem esmolar/implorar audição sobre sua existência em documentos sob negociação em fóruns multilaterais. E isso tem acontecido, as organizações do movimento de mulheres negras são testemunhas disso nas suas incidências internacionais.
A diplomacia brasileira deveria estar preparada para admitir que, no Brasil, o racismo, como ideologia, é uma realidade cotidiana na vida das pessoas negras, suas famílias e suas comunidades. Para usar uma expressão da moda, e de grande apelo em determinados círculos, a diplomacia brasileira não tem letramento racial e não reconhece as organizações negras com pares legítimos para negociações no ambiente internacional. Ou seja, permanecemos como realidade ocultada.
E isso contribui para uma série de outras graves ausências:
A baixíssima incidência do estado brasileiro no debate global sobre a devida reparação devida aos africanos e afrodescendentes em decorrência da escravidão, escravização e colonialismo.
O Comité para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), órgão que nas Nações Unidas tem o mandato para monitorizar a implementação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, já explicitou/recomendou que é oportuno e relevante elaborar as obrigações legais dos Estados Partes para reparações aos africanos e às pessoas de ascendência africana pelas graves violações do passado e pela discriminação e desvantagens duradouras que enfrentam hoje.
Ao longo dessa última década, essa recomendação já foi estabelecida em documentos próprios do Comitê à instâncias das Nações Unidas. Enfim, o CERD tem apelado, repetida vezes, que os Estados Partes abordem a história do colonialismo e da escravização a partir de perspectivas e compreensões abrangentes de enfrentamento ao racismo e à discriminação racial contemporâneos. Ou seja, precisamos, efetivamente, nos aproximar dessas negociações e formulações.
Neste caso e debate em específico, lembramos que o direito à reparação, na sequência de uma violação do direito internacional em matéria de direitos humanos, está estabelecido em vários tratados internacionais e regionais em matéria de direitos humanos.
Apontamos a fraca incidência do estado brasileiro neste debate porque outras articulações e documentos internacionais têm se posicionado de forma efetiva na luta por reparações. “A região africana tem trabalhado cada vez mais no sentido de reparações para africanos e pessoas de ascendência africana, incluindo a adopção da Proclamação de Acra sobre Reparações em 2023; adopção do tema “Justiça para os Africanos e Pessoas de Descendência Africana através de Reparações” pela União Africana em 2025; bem como resoluções sobre reparações para africanos e pessoas de ascendência africana da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 2022 e 2024.
Os países da CARICOM têm, notadamente, desempenhado papel estratégico neste debate. Em 2013, os Chefes de Governo do Caribe criaram a Comissão de Reparações da CARICOM com o mandato de preparar o caso de justiça reparatória para as comunidades indígenas e afrodescendentes da região que são vítimas de crimes contra a humanidade sob a forma de genocídio, escravatura, tráfico de escravos e apartheid racial.
Outras incidências, ainda que menos abrangentes, podem ser indetificadas em países europeus através da criação de comissões destinadas à investigacao de seu passado colonial e impactos de suas práticas colonialistas.
Então, não é possível imaginar que um país fundado sobre 350 anos de escravização de africanos (homens, mulheres e crianças) não tenhamos papel ativo neste debate global. No ambiente global contemporâneo, é preciso que saibamos tratar adequadamente desse passado e, igualmente importante, das desigualdades decorrentes desse passado.
Dito isso, e poderíamos falar muito mais, é evidente que interessa à Coalizão Negra por Direitos a criação do Conselho Nacional de Política Externa (CONPEB). Nos interessa porque acreditamos que este Conselho, pode ser mecanismo institucional e legítimo de aprimoramento de visões, formulações e atuação contra o racismo no Brasil e contra o racismo no mundo também.
É preciso demonstrar vontade política e empenho institucional ao estabelecimento desse diálogo interno com as organizações do movimento negro e com outras organizações da sociedade civil que atuam contra o racismo e a discriminação racial.
Destacamos que conceder condecoração da Ordem do Rio Branco à brasileiros negros, homens e mulheres, e às organizações do movimento negro, é, em si, uma movimentação importante. Não é trivial, na história do Itamaraty, que personalidades negras como Conceição Evaristo, Makota Celinha, Mano Brown, Vini Junior, tenham sido reconhecidas em sua contribuição à sociedade brasileira com seus múltiplos talentos e atuação pública.
E precisamos avançar nesses reconhecimentos e destinação de recursos à promoção de uma diplomacia interessada em apoiar a incidência das organizações negras no âmbito internacional. Nós precisamos, por exemplo, estimular o diálogo e intercâmbio com os países africanos e com as organizações da sociedade civil africana – universidades, pesquisadores, cientistas. Temos uma África econômica e culturalmente pujante e deveria ser papel do Itamaraty estabelecer essas aproximações e cooperação bilateral.
E, sim, falando da aproximação com países africanos. Não podemos deixar de destacar que está faltando ao Ministério das Relações Exteriores reconhecer a atuação do Diplomata Raimundo Souza Dantas, nascido em 1923 e falecido em 2002. O Sr. Raimundo Souza Dantas foi primeiro embaixador negro nesta casa.
Em 1961, o então Presidente da República, Jânio Quadros, nomeou Sousa Dantas como Embaixador Extraordinário Plenipotenciário na República de Gana. Todo o acervo de sua atuação intelectual e diplomática continuam diligente preservada por seus filhos em suas casas, mas todo esse acervo, belíssimo, deveria estar aqui, com acervo do Itamaraty.
Mas, segundo os relatos da família, embora houvessem tentado convencer essa instituição do valor histórico desse acervo nunca houve resposta ao apelo. Bem, é por isso, também, que precisamos ter um Conselho, para aprimorar visões, aprender a ouvir e, seguramente, também falar com maior e melhor propriedade sobre pessoas negras, racismo e legados.
Em tempo, eu não vim aqui fazer pedidos particulares, mas está valendo a proposta de atender a solicitação dos familiares de Raimundo Souza Dantas. Neste caso, não é apenas um pedido, é uma reparação e uma reparação política também.
*O texto se refere à apresentação de Wania Sant’Anna no painel “Institucionalização da participação social na política externa brasileira”, no seminário “A Sociedade Brasileira e a Política Externa”, como representante da Coalizão Negra por Direitos. O evento foi realizado em 26 de junho
**Wania Sant’Anna é historiadora e pesquisadora de relações raciais e de gênero, é vice-presidente do Conselho Curador do Ibase e doutoranda em História da UFRJ. Foi secretária de Direitos Humanos do Rio de Janeiro na gestão Benedita da Silva.
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