
A defensora pública Cristiane Xavier classificou como “cruéis” e ilegais as ações da Secretaria de Ordem Pública (Seop) do Rio contra pessoas em situação de rua, que incluem o recolhimento de cobertores e papelões – como mostrou reportagem do g1. As medidas violariam decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) assinada pelo ministro Alexandre de Moraes (entenda abaixo).
Xavier é subcoordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos do Rio de Janeiro e afirma que a pasta tem recebido denúncias sobre essas operações, que, para ela, violam os Direitos Humanos e ferem comandos de leis municipais e estaduais.
“Infelizmente, essas ações feitas pela ordem pública, elas violam todos os comandos, não só das próprias leis estadual e municipal, como da ADPF 976, que está em vigor e que flagrantemente fala que isso não é possível”, afirma Xavier.
Pessoas em situação de rua relatam que equipes da Secretaria de Ordem Pública recolhem cobertores e papelões à noite
Stephanie Rodrigues/g1
A ADPF 976 proíbe o recolhimento forçado de pertences e a remoção compulsória de pessoas em situação de rua. Também determina apoio a animais e veto à chamada “arquitetura hostil”, como determinou Moraes.
Vídeo mostra ação da prefeitura em Copacabana
Um vídeo registrado pela ONG É Por Amor (veja acima) flagrou agentes da Ordem Pública retirando papelões de pessoas em situação de rua em Copacabana, na noite de segunda-feira (15).
“A gente distribuindo quentinhas e a ‘ordem pública’ fazendo o trabalho deles”, escreveu a ONG nas redes sociais.
Um homem, que dorme na porta de uma agência bancária em Copacabana, Zona Sul do Rio, perto de onde foi o flagrante, disse que quem reage às apreensões pode ser agredido.
Situações como essa foram relatadas por pessoas em situação de rua ao g1, em diferentes pontos da cidade, como Copacabana, na Zona Sul, Avenida Presidente Vargas, no Centro, e na Praça da Cruz Vermelha, ainda na região central.
Em situação de rua, morador tenta se aquecer em mais uma madrugada gelada no Rio
Stephanie Rodrigues/g1
‘Política higienista’, aponta defensora
Para a defensora, o recolhimento de itens básicos como cobertores é uma tentativa de forçar a saída dessas pessoas vulneráveis das ruas para obrigá-las a acessar equipamentos municipais, como abrigos.
“Nós temos hoje na cidade do Rio, 21 mil pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Então, é inaceitável essa postura dessa política pública que é uma política higienista e uma política que praticamente tapa os olhos de uma sociedade que não quer ver que não funciona. Esse tipo de conduta não funciona para que possamos cuidar de uma situação tão complexa que é a população em situação de rua”, destaca a defensora.
Pessoa em situação de rua tenta se proteger do frio em noite gelada no Rio
Stephanie Rodrigues/g1
Xavier define ainda que o planejamento tem “requinte de crueldade”
“É cruel estar debaixo das marquises quando a única coisa que essas pessoas possuem é o papelão, que faz a separação do chão duro e frio. Nós não queremos ninguém nas ruas, isso é fato, mas não é através dessa atitude cruel, porque aquele agente público que está ali retirando aquele papelão, ele termina aquela ação, ele volta para sua casa, para o seu cobertor, para o aconchego da sua casa”, reflete.
Questionada, a Secretaria Municipal de Assistência Social disse que, no primeiro semestre de 2025, foram criadas 250 novas vagas permanentes de acolhimento para pessoas em situação de rua e que com a chegada do inverno foram abertas mais 160 vagas temporárias em equipamentos da rede e espaços privados.
“Os acolhidos dormem em local seguro, protegidos do frio e com direito a alimentação, kit de higiene, cobertor e roupa de cama”, afirma o posicionamento.
“A rede de acolhimento dispõe de 2.707 vagas regulares. É importante destacar que o acolhimento não é obrigatório, assim como a permanência nos equipamentos: ambos dependem da aceitação da pessoa em situação de rua, e um mesmo indivíduo pode ser acolhido mais de uma vez”, continua a nota enviada pela pasta.
De janeiro a junho deste ano, foram registrados 22.946 acolhimentos — um aumento de 261% em relação ao mesmo período de 2024, segundo a secretaria.
Pessoa em situação de rua tenta driblar o frio nas madrugadas do Rio
Stephanie Rodrigues/g1
No entanto, a defensora aponta que a estrutura ainda enfrenta despreparo e déficit de vagas permanentes.
“Não adianta dizer ‘ah porque ele pode ir pra um abrigo’. Não adianta a gente tirar da rua e colocar no equipamento onde muitas das vezes é despreparado, onde ele vai sofrer retaliações, onde ele vai ficar ali quando é idoso esperando a morte chegar, porque faltam políticas de emancipação e independência”, aponta.
“Precisamos de vagas novas de acolhimento, não de casa de passagem, que é quando a pessoa entra, dorme, sai e vai a sua própria sorte. Precisamos ter uma política realista com todos os organismos envolvidos, com todas as instituições e todos os serviços”, conclui.
Defensoria diz que denúncias são ignoradas
A defensora Cristiane Xavier relata que o núcleo já vem recebendo denúncias como essas e não tem tido retorno público dos ofícios enviados à prefeitura.
“É muito vergonhoso a cada ação ter que comunicar ao ministro Alexandre de Moraes que o Rio de Janeiro não pratica políticas eficientes e eficazes e ele precisa vir intervir para que isso não seja realizado. É vergonhoso, isso não é um plano político que nós queremos para a cidade do Rio de Janeiro. Mas, infelizmente, é o que vem acontecendo e cada vez mais eu recebo denúncias”, afirma.
O que diz a prefeitura
O g1 entrou em contato com a Secretaria de Ordem Pública e teve como resposta que a pasta “realiza diariamente ações de ordenamento urbano, desobstrução de áreas públicas e acolhimento a pessoas em situação de rua (neste caso, em apoio à Secretaria Municipal de Assistência Social – SMAS).”
Segundo a secretaria, as ações acontecem em pontos diferentes da cidade, “com foco especial em áreas com grande concentração de usuários de drogas”. Ainda de acordo com a nota, desde janeiro deste ano foram apreendidos mais de 4 mil objetos perfurocortantes, cerca de 2 mil itens utilizados para consumo de drogas e 28 réplicas de armas.
No entanto, a Secretaria de Ordem Pública não se posicionou sobre as denúncias de apreensões de cobertores, papelões, colchões e outros itens pertencentes às pessoas em situação de rua. Nem sobre o descumprimento da ADPF 976.
O g1 voltou a questionar sobre esse tema e não teve resposta.
Homem se encolhe em calçada para se proteger do frio no Rio
Stephanie Rodrigues/g1
Homens se abrigam do frio em marquise no Rio de Janeiro
Stephanie Rodrigues/g1