Estamos na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um parlamentar conta as fileiras do parlamento e diz: “Em 2002, ocupávamos duas fileiras, éramos 50. Hoje, somos 152”. Esse “nós” ao qual o ilustre parlamentar se refere é a bancada evangélica, força parlamentar conservadora cuja presença cresceu de maneira exponencial no Congresso Nacional nos últimos anos. Uma peça incontornável do xadrez político contemporâneo. De acordo com último Censo, 26,9% dos brasileiros, mais de um quarto da população, se identificavam como evangélicos.
Entender como esse fenômeno se dá e suas relações com a ascensão do bolsonarismo e da extrema direita, é uma das propostas de Apocalipse nos trópicos, trabalho mais recente da cineasta Petra Costa, que ficou famosa por Democracia em vertigem.
Teologia do domínio
Uma das vozes mais ativas no documentário é do pastor Silas Malafaia. Em um dos seus sermões ele diz que “os anjos não vão descer na terra para melhorar o mundo”, sustentando a tese de que caberia a militância evangélica transformar a vida neste mundo por meio da política.
Em certa medida, Malafaia poderia ser enquadrado na “teologia do domínio”, uma ideologia estratégica e política que sustenta a crença de que cristãos têm a missão de conquistar o poder e moldar o Estado segundo preceitos bíblicos. Com o crescimento exponencial da população evangélica, essa teologia emerge não apenas como uma força religiosa, mas como um projeto de poder que visa transformar a democracia em uma teocracia, erodindo direitos das minorias em benefício de uma maioria cristã organizada.
No Brasil, uma das vozes públicas que mais tem se posicionado e emitido alertas sobre essa questão é o professor e historiador João Cezar de Castro Rocha. Em uma entrevista à Agência Pública no ano passado, ele comentou:
“Essa teologia foi desenvolvida inicialmente nos Estados Unidos e recentemente foi adotada no Brasil. Ela está na base da doutrina da Igreja da Lagoinha, onde Nikolas Ferreira (PL-MG) professa sua fé. A teologia do domínio está na base de outras igrejas que contaminaram as concepções de Damares Alves e Michelle Bolsonaro. Quando Michelle diz que chegou a hora da libertação, o que ela está dizendo é: chegou a hora do Estado civil subordinar-se à fé, não à espiritualidade, mas à crença deles. Pensando nisso, no nosso país tudo começa a ficar bastante claro e muito preocupante, muito preocupante.”
No documentário de Petra Costa, a teologia do domínio é apresentada muito rapidamente e sem dar a dimensão real da questão.
O discurso conservador dos pastores evangélicos, como apontou o filósofo e historiador francês Michel Foucault no curso O nascimento da biopolítica (1979), opera na interseção entre técnicas herdadas do poder pastoral hebraico-cristão — centradas na condução das condutas e na exigência de obediência irrestrita — e a racionalidade de governo neoliberal contemporânea. Essa lógica exige obediência e responsabilização individual sob a figura do “empresário de si mesmo”, sujeito que a tudo sacrifica em nome do capital.
Se o cristianismo nascente buscou no ascetismo grego dos estoicos e no neoplatonismo sua moral de consolidação, os legionários contemporâneos, entre eles Pablo Marçal, promovendo sua startup do batismo em Israel, vivem um estoicismo diluído e palatável, que não pode ser explicado apenas por uma nova teologia da prosperidade.
A historicidade das construções dos sistemas de crenças e seus símbolos construídos historicamente devem ser interpelados a todo momento.
Guerra Fria
Um dos pontos mais interessantes do trabalho é justamente mostrar a influência do lobby evangélico dos EUA no Brasil, durante a Guerra Fria. Sob o pretexto de oferecer aulas de inglês, pastores norte-americanos chegaram ao país com o intuito de difundir valores religiosos alinhados à ideologia anticomunista.
O documentário evidencia como essa presença, aparentemente inofensiva, serviu como estratégia de penetração cultural e política, ajudando a moldar parte do conservadorismo religioso que hoje ocupa espaços de poder no Estado brasileiro.
“Comunismo falhou ao ignorar a fé”
Além de reconstruir alguns passos do golpe de 2016 e da prisão de Lula por Sérgio Moro, o documentário traz uma entrevista com o presidente comentando sobre a questão evangélica. De acordo com ele, o sucesso dos pastores se daria por um esquematismo simples, de compreensão universal e fácil adesão: o diabo é o problema e o Jesus é a solução.
Lula diz que um dos fatores da experiência comunista ter falhado seria não incorporar a fé.
No Brasil, além da Teologia da Libertação, das pastorais da terra no Nordeste, tivemos muitos núcleos religiosos que uniram movimentos populares, lutaram contra a pobreza e a defesa da dignidade da pessoa humana. Mais recentemente, temos a presença incontornável do Padre Júlio Lancelotti, que milita cotidianamente em defesa da população de rua de São Paulo. Fé e defesa dos pobres têm uma longa tradição na América Latina.
É nesse ponto que estão as falhas mais graves do documentário: ao ignorar as disputas dentro do campo da fé evangélica e cristã, que são citadas muito rapidamente com uma cena de poucos minutos, Apocalipse nos trópicos acaba construindo uma visão, se não estereotipada, muito fatalista do campo religioso. Nesse ponto, vale ao telespectador que deseja ampliar sua visão sobre esse contexto, ver também o ótimo documentário Fé em disputa, produzido pelo Brasil de Fato.
Petra diz que tentou entender a fé das pessoas a partir da leitura do livro do Apocalipse. Talvez fosse interessante ela ir além da etimologia grega da palavra e buscar outra visão da escatologia cristã: a Apocatástase. Tese do pensador Orígenes de Alexandria (185-253 d.C), que foi posteriormente tido como herético. Para o teólogo, os últimos dias não seriam de condenação e sofrimento absoluto dos ímpios, mas da restauração de tudo e todos à unidade com o divino: inclusive os níveis mais baixos do inferno seriam perdoados e restaurados. Orígenes de Alexandria está entre as leituras que inspiram os escritos de Walter Benjamin, um materialista histórico, cujo pensamento crítico circulou em lugar limítrofe, nunca confortável, entre a mística judaica e o marxismo. Nas suas teses Sobre o conceito de história, ele escreveu:
“Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
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