Abel mal conseguia esconder o sorriso. Já tinha anoitecido e, em poucas horas, teriam que partir. “O que é que eu devia ter feito?”, perguntava, dando de ombros. Era difícil disfarçar a expressão no rosto diante do olhar severo de Yeyé, uma mistura de irritação e cumplicidade.
Já fazia horas que ninguém sabia onde ele estava. E, de repente, toda aquela preocupação, que foi crescendo com o passar do tempo, virou aborrecimento ao vê-lo chegar.
“Abel, você estava trabalhando?”, perguntou Yeyé, num tom que mais parecia uma bronca. Faltavam poucas horas para a partida. Já passava das nove da noite. Nunca na vida haviam enfrentado algo assim e, no entanto, ali estavam.
“Não, fui levar uns velhinhos ali da frente pra ver o Morro e os carnavais”, respondeu Abel. Yeyé simplesmente não conseguia acreditar no que ouvia e, ainda assim, tinha a sensação de que, vindo do irmão, não era uma resposta que a surpreendesse.
“Como assim? Por quê?”, perguntou, respirando fundo, quase sem saber o que dizer. “Porque aqueles pobres velhinhos nunca tinham visto o carnaval de Santiago de Cuba.”
Anos depois, em 1969, seria a própria Haydée Santamaría, que todos chamavam de Yeyé, quem lembraria dessa cena durante uma conversa com trabalhadores da Casa de las Américas.
Faltavam poucas horas para que os dois protagonizassem, junto com mais de 120 jovens, o assalto ao Quartel Moncada, em 26 de julho de 1953, data considerada o início da Revolução Cubana.
Naquela madrugada, os combatentes não conseguiram tomar o controle do quartel. Cerca de nove “moncadistas” morreram em combate, enquanto outros 52 foram presos. A ditadura ordenou o assassinato ilegal de dezenas de combatentes capturados e desencadeou uma grande repressão em todo o país. Entre os jovens assassinados estavam o irmão, Abel Santamaría, e o companheiro de Haydée, Boris Luis Santa Coloma.
Ela sempre se lembrava de Abel sorrindo, falando sobre o futuro e fazendo planos. Um jeito de recordá-lo no qual, talvez, como se fosse um abraço, também houvesse algo do que ela mesma era. Naquela tarde, naquela conversa, Haydée contou que, por mais que o perigo os rondasse, em nenhum daqueles dias, na Granjita Siboney, a morte apareceu nas conversas como uma possibilidade.
‘Arriscar tudo para preservar o que realmente importa’
Naquele 25 de julho, tudo parecia resolvido. Haviam revisado o plano inúmeras vezes: cada detalhe, cada possível imprevisto.
Durante semanas, o apartamento onde Haydée e Abel viviam havia se transformado no centro de reuniões e conspirações. Num primeiro momento, Fidel e Abel tiveram a ideia de formar um grupo que lhes permitisse se envolver num processo mais amplo de resistência armada contra a ditadura de Fulgencio Batista.
Com o tempo e diante da inércia das forças políticas tradicionais, convenceram-se de que, para enfrentar a ditadura, deveriam ser eles, os jovens, a dar o primeiro passo.
Profundos conhecedores da história, sabiam que não seria a primeira vez que um grupo de jovens se colocava à frente para enfrentar a tirania. Vinte anos antes, em 1932, a União Revolucionária, liderada por Antonio Guiteras, havia atacado o quartel de San Luis, também na região de Santiago de Cuba, para combater a ditadura de Machado.
O tempo havia passado e as circunstâncias já não eram as mesmas. Ainda assim, a Geração do Centenário, nome adotado por aquele grupo de jovens revolucionários cubanos em referência ao centenário do nascimento de José Martí (1853–1953), assumia o mesmo espírito.
Haydée lembrava que Abel costumava dizer que sua geração precisava fazer “algo verdadeiro e real”. O plano era tomar o quartel Moncada para conseguir armas e, a partir dali, iniciar uma rebelião armada capaz de derrubar a ditadura de Batista.
Para isso, de forma clandestina, Abel e Fidel organizaram pequenos grupos de no máximo dez pessoas, que não se conheciam entre si. Escolheram a noite de 26 de julho, aproveitando o carnaval: o contexto festivo permitiria que se movessem por Santiago sem levantar suspeitas. As forças de segurança estariam distraídas, e o barulho das festas ajudaria os combatentes a se misturar à multidão sem serem notados. Além disso, o povo de Santiago já havia demonstrado uma forte vocação de luta, com mobilizações significativas contra a ditadura.
Naquela madrugada, todos se reuniram pela primeira vez na Granjita Siboney, a poucos quilômetros do quartel Moncada. Não era apenas a primeira vez que se viam pessoalmente, também seria o momento em que ouviriam, enfim, o plano do qual fariam parte.
Era a primeira vez que aqueles 135 jovens, com idade média de 26 anos, se olhavam nos olhos. A maioria era formada por operários, camponeses e trabalhadores que haviam se somado ao movimento.
Haydée Santamaría, junto com a jovem advogada Melba Hernández, foram as únicas duas mulheres a participar das ações. Ambas tiveram um papel ativo nos preparativos e na organização do grupo.
“Existe esse momento em que tudo pode ser belo e heroico. Esse momento em que a vida, por ser tão importante e por tudo que representa, desafia e vence a morte”, escreveria Haydée anos depois, após o triunfo da Revolução.
“E, nesse momento, a gente pode arriscar tudo para preservar o que realmente importa: a paixão que nos levou ao Moncada, que tem seus nomes, seus olhares, suas mãos acolhedoras e firmes, que carrega sua verdade nas palavras e pode se chamar Abel, Renato, Boris, Mario ou qualquer outro nome, mas que sempre, nesse momento e nos que virão, pode se chamar Cuba.”
Um exercício de amor
Não é possível entender a Revolução Cubana sem considerar o papel desempenhado por Haydée e Melba. Em meio ao desastre, aos assassinatos dos companheiros e à prisão dos militantes, entre eles o próprio Fidel Castro, foram Haydée e Melba que reorganizaram o movimento após a derrota.
A afirmação é da socióloga e pesquisadora Ana Niria Albo Díaz. Em conversa com o Brasil de Fato, ela lembra que foram as duas revolucionárias que conseguiram tirar da prisão o alegato de Fidel, que se tornaria o clássico “A História me Absolverá”, e garantir sua difusão por toda a ilha.
“Haydée era uma mulher completamente apaixonada. Colocava muita entrega, e não tenho medo de dizer isso: muito amor em tudo que fazia, até o fim de seus dias. Ou seja, foram exercícios de paixão, exercícios passionais, sem dúvida, que a levaram a acreditar no projeto de justiça social que Fidel propunha”, afirma.
“Sempre penso que, para ela, o episódio do Moncada foi terrível. Não só porque perdeu o irmão e o grande amor da sua vida, mas também porque — e ela dizia isso — sentia que eles tinham morrido jovens demais para terem vivido o amor. Essa ideia é extremamente forte, principalmente hoje, quando se dá tanta importância ao corpo, ao afeto, à possibilidade de amar.”
O que aconteceu depois confirma isso: superar a perda do irmão, a perda do companheiro Boris Luis Santa Coloma, e ainda assim continuar a luta. Sobrevivente dos massacres, Haydée se tornaria uma testemunha fundamental da crueldade da ditadura.
Após cumprir sete meses de prisão, no início de 1954, Haydée e Melba já estavam em liberdade e retomaram à luta na cidade, algo extremamente perigoso.
“Acho que isso, acima de tudo, é um exercício de amor”, destaca Ana Niria. “Toda a vida de Haydée foi uma vida de paixão.”
Foi a divulgação de “A História me Absolverá”, um verdadeiro testemunho das injustiças da época, que conseguiu transformar uma derrota militar em uma vitória política.
“Haydée é a única mulher que esteve presente em todas as etapas da Revolução”, enfatiza Albo Díaz. “Participou da clandestinidade, da luta armada urbana, que era a mais perigosa, combateu na Sierra Maestra e também esteve no exílio. Fidel pediu a ela que fosse aos Estados Unidos buscar recursos, quando já não havia mais meios.”
Essa presença constante em todas as etapas da luta deu a Haydée uma enorme autoridade entre seus companheiros. Após o triunfo da Revolução, ela se tornou uma voz respeitada, à qual foi confiada uma das principais criações culturais do processo revolucionário: a Casa de las Américas.
Tudo é uma só coisa
Após o triunfo da Revolução, em 1959, Haydée tornou-se um pilar da construção cultural do processo revolucionário. Fundou e dirigiu por mais de 20 anos a Casa de las Américas: um espaço que se transformou em ponto de encontro de intelectuais, escritores e artistas de toda a América Latina e do Caribe.
“Falar de Haydée”, afirma Ana Niria, “é falar da construção de uma política cultural em Cuba. Sem estudos formais, sendo uma mulher camponesa, de um povoado pequeno, ela ocupou um lugar de diálogo, de escuta e também de tomada de decisões. Tudo isso num contexto profundamente patriarcal e heteronormativo.”
A criação da Casa de las Américas não só permitiu que centenas de artistas e intelectuais se vinculassem à Revolução Cubana, num momento de forte isolamento imposto pelos Estados Unidos, como também foi fundamental para que o nosso continente se reconhecesse como latino-americano e caribenho.
“Em toda a trajetória de Haydée há um exercício constante de aprendizado e transformação. Um exercício acompanhado por enorme sensibilidade.”
Ana Niria lembra palavras da própria Haydée, nas quais conta que, primeiro, entendeu que era uma menina de engenho; depois, que era de Villa Clara; e só mais tarde, que era cubana. Em algum momento, ao ler Martí e Bolívar, entendeu que também era latino-americana.
Foi a partir desse lugar de autoconhecimento que, assim como a própria Revolução, ela foi se descobrindo latino-americana e ampliando seu lugar de fala.
Recentemente, a Casa de las Américas realizou a imensa tarefa de publicar textos inéditos de Haydée. Ao lado de Jaime Gómez Triana, Ana Niria foi uma das organizadoras desse trabalho.
Perguntada sobre as motivações que a levaram a investigar a vida e obra de Haydée, Ana Niria responde: resgatar sua figura é “recolocar o papel da cultura no lugar que ela sempre deve ocupar dentro do projeto revolucionário cubano”. Algo que, segundo ela, Fidel sempre teve muito claro.
Mas, além disso, resgatar a figura de Haydée é também “resgatar a figura de uma mulher inserida numa macro-história que, ainda hoje, muitas vezes invisibiliza as mulheres, e tentar encontrar nossa conexão com aqueles ideais e sonhos de justiça daquela geração”.
Haydée Santamaría morreu em 28 de julho de 1980, há 45 anos.
O post Assalto a Moncada: conheça a mulher que participou da ação armada que moldou a Revolução Cubana apareceu primeiro em Brasil de Fato.