Pan-africanismo literário e «Rumo da Literatura Negra»

Luís Kandjimbo*
Em 1923, a Liga Africana, com sede em Lisboa, foi anfitriã de uma das sessões do III Congresso Pan-Africano. Nessa década, Angola tinha sido e continuava a ser palco de turbulentas insurreições e revoltas políticas a que o poder colonial, através do seu Alto-Comissário, Norton de Matos, fazia demonstração da sua vocação repressiva. Mencionamos aqui três tipos de respostas que o caracterizaram: 1) O encerramento das duas mais importantes associações nativistas, nomeadamente, a Liga Angolana e o Grémio Africano; 2) A prisão e o desterro dos directores de jornais, tais como «O Angolense» e «Era Nova»; 3) A proibição do exercício da liberdade de imprensa.
A geração literária de 48, aqui representada por Agostinho Neto (1922-1979), é constituída por escritores nascidos durante a segunda década do século XX, formados nas escolas primárias, nos dois liceus existentes em Angola na época e membros das associações culturais e cívicas.
Para estudar a socialização
Ora, quais eram então as fontes de que emanava a consciência dos dramas transatlânticos vividos pelos Africanos, a partir do século XVI, tal como revelam os membros da Geração Literária de 48? Esta é a pergunta para cuja resposta concorrem os subsídios debitados na conversa anterior.
Os relevantes acontecimentos, culturais, jornalísticos e literários, bem como o Liceu de Luanda, criado em 1919, e outras instituições a que já nos reportámos, configuram os processos de socialização secundária, ao abrigo dos quais se tinham formado os jovens Agostinho Neto (1922-1979), António Jacinto (1924-1991), Viriato da Cruz (1928-1973) e Mário Pinto de Andrade (1928-1990).
Ao chegar às universidades de Lisboa e de Coimbra, integrando posteriormente o Centro de Estudos Africanos, Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade, por exemplo, tinham as suas personalidades estruturadas. Lamentavelmente, este não constitui um filão que, entre nós, atraia a curiosidade dos historiadores, sociólogos, filósofos, cientistas políticos ou antropólogos. Estamos a referir-nos ao estudo da história intelectual e das ideias em Angola. Além de ser escasso o interesse pelo seu ensino e investigação, também o domínio da juvenília literária não suscita interesse.
Panafricanismo e nativismo
Nas décadas de 30 e 40 do século XX, os referidos jovens frequentavam os liceus, as associações e colaboravam nos jornais. Mas a sua formação tinha decorrido sob os auspícios das ideias nativistas e pan-africanistas dominantes nos círculos angolenses. Sobre o presente tópico já dedicámos algumas reflexões em obras já publicadas. Em Angola, o associativismo nativista e panafricanista tinha sido inaugurado com a Liga Angolana, em 1913. A filiação desta associação angolana aos ideais do panafricanismo confirmava-se através das relações regulares que mantinha com a Junta de Defesa dos Direitos de África que tinha a sede em Lisboa. Aliás, um dos ilustres membros do emergente pan-africanismo, falecido nesse ano, na capital portuguesa, era o médico angolano Carlos Joaquim Tavares (1857-1913), natural de Benguela. Além disso, uma das expressivas manifestações dessas relações era a circulação em Angola do jornal «A Voz de África» e de outros títulos publicados em Lisboa.
Durante a vaga de prisões, buscas e apreensões ocorridas em 1922, motivadas pelos Acontecimentos de Katete, António de Assis Júnior (1878-1960), que tinha 44 anos de idade, era director do conhecido jornal «O Angolense». Tinha sido preso sob a acusação de instigar um crime de «revolta indígena» cujos focos de agitação encontravam-se espalhados pelas cidades e regiões mais importantes do território.

A rede completava-se com outros jornais, tais como «A Lunda», e «A Verdade», além de nomes de notáveis jornalistas implicados, nomeadamente: António Joaquim de Miranda, desterrado em Cabinda, antigo colaborador da «Lunda» e «Era Nova» de Malanje; A. Figueiredo, Custódio Bento de Azevedo, do Sassa, Alto Dande, Gervásio Ferreira Viana, de Ndala Tando, João Pedro de Sousa, de Benguela; José Carlos Oliveira, de Moçâmedes, ex-presidente da Liga Angolana; Narciso Espírito Santo (santomense), director do jornal «A Verdade»; Padre Manuel das Neves, do Paço Episcopal em Luanda.
Quando em 1922, nasceu Agostinho Neto, os membros da Igreja Metodista faziam parte da lista do abaixo-assinado dos representantes de 120 camponeses «indígenas» que se tinham manifestado contra o regime de trabalho e obrigatoriedade da monocultura. Entre os signatários, figurava o nome do encarregado na Missão Americana em Mazozo, Sebastião Gaspar Domingos, que tinha recolhido o dinheiro destinado ao pagamento dos honorários do advogado provisionário, António de Assis Júnior. Nessa altura o pai de Agostinho Neto, ocupava o posto de pastor evangélico e professor primário, tal como já vimos.
Da história literária à juvenília
A escrita de juventude de Agostinho Neto é constituída por um conjunto de textos dispersos. Trata-se de poemas, ensaios e contos. Encontram-se nas páginas dos jornais «O Farolim» e «O Estandarte», fundados, respectivamente, em 1933 e 1932. Entre 1940 e 1946, Agostinho Neto publicou poemas e textos ensaísticos no jornal O Estandarte, deque seu pai também era colaborador. Nestes primeiros textos, que se inscrevem na sua juvenília, ele revelava a sua formação cristã protestante. Segue-se uma outra série de quatro textos ensaísticos que assinalam a fase de maturidade.
Os membros da Geração Literária de 48 revelam uma consciência dos dramas transatlânticos vividos pelos Africanos, a partir do século XV. A inserção dos seus textos em manuais escolares, após a independência de Angola, o ensino e a leitura dessa poesia, nas circunstâncias históricas do momento, permitia compreender o carácter épico e as alusões à dimensão ontológica do continente africano. A geração a que pertenço foi a dos primeiros estudantes angolanos beneficiários dos efeitos resultantes da revolução curricular. O ensino da língua portuguesa passou a ter como suporte o texto literário angolano. Entretanto, o pendor substantivo da poesia mobilizava as nossas ambições estéticas de leitores e de aprendizes.
Pessoalmente, passei a interessar-me pela história literária, intelectual e das ideias angolanas, sob a inspiração dos livros de Carlos Ervedosa (1932-1992) e Júlio de Castro Lopo (1899-1971), respectivamente, «Roteiro da Literatura Angola» e «Jornalismo de Angola. Subsídio para a sua História». No entanto, entendia, igualmente, que a juvenília literária podia iluminar a compreensão e a fruição da obra literária. Por essa razão, no princípio da década de 80, tornei-me assíduo consulente da Biblioteca Municipal de Luanda, tendo dedicado meses à leitura de jornais e revistas publicados na segunda metade do século XIX, inicialmente. Dois anos depois, gozando do estatuto de funcionário do Centro de Documentação e Investigação Histórica, completei a pesquisa de publicações periódicas com materiais de arquivo aí depositados.
Foi essa actividade desenvolvida há quatro décadas que me conduziu ao domínio dos estudos literários que é presentemente conhecido como «juvenília literária». Reuni suficiente informação que me permite hoje estudar a história intelectual e a tradição ensaística angolana, do século XIX ao século XX. Agostinho Neto é um desses escritores da Geração Literária de 48.
Após a juvenília literária
Ao debruçar-se sobre esta matéria, no contexto europeu, a norte-americana, Laurie Langbauer, «The Juvenile Tradition Young Writers and Prolepsis», 2016, (A Tradição da Juvenília de Jovens Escritores e a Prolepse), considera que o estudo da juvenília ou tradição juvenil representa um esforço de «recuperação de um modelo para a prática literária». Neste sentido, os textos de juventude constituem uma prolepse, uma antecipação da futura actividade criativa. Para todos os efeitos, a crítica literária não pode ignorar a importância deste momento do desenvolvimento da imaginação produtiva dos escritores. Com efeito, a juvenília é actualmente um campo dos estudos literários, à volta do qual se vêm constituindo comunidades de ensino e investigação. Prova disso é a existência da Sociedade Internacional de Juvenília Literária, formalmente constituída em 2017, na Universidade do Norte do Alabama, por ocasião de uma conferência aí realizada. O órgão da associação é a «Journal of Juvenilia Studies», (Revista de Estudos de Juvenília), publicado desde 2018. Mas os eventos académicos nos países anglófonos, da Austrália aos Estados Unidos da América, vinham sendo realizados desde 1996. Associados às dinâmicas de promoção e desenvolvimento desta área dos estudos literários estão os nomes da canadiana, Juliet McMaster e a australiana, Christine Alexander.
Portanto, reiteramos a necessidade de revisitar a história das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e a sua historiografia, já pelas razões invocadas, já pela possibilidade de se produzirem novos olhares. Nesta breve refelexão, a revisitação é efectuada através da leitura de um texto de Agostinho Neto, «O Rumo da Literatura Negra», que, não fazendo parte da sua juvenília, problematiza os critérios de leitura e categorização da «literatura negra», em 1951. Agostinho Neto revela um sólido conhecimento da história das Diásporas Africanas, bem como das suas literaturas. Esse equipamento de empatia epistémica facilita a operacionalização de um conceito de pan-africanismo literário cuja definição tem como base os seus referentes. Assim, porque voltaremos a tematizar o tópico na próxima conversa, convidamos o leitor para uma interpretação de excertos do texto referido que a seguir transcrevemos com segmentos analíticos selecionados por nós.
Literatura negra
- Para «compreendermos a literatura negra, devemos conhecer primeiro que indivíduos para ela contribuíram; a fim de evitar a confusão de conceitos que actualmente se faz ao referirmo-nos aos negros, grupo aliás difícil de limitar em virtude das divergências de pontos de vista existentes quer sobre o aspecto sociológico, quer ao considerar o critério étnico. Incapazes, pois, de encontrar definição adequada para os indivíduos que vamos considerar, encararão apenas dentro do quadro social-literário em que se desenvolvem ou a que se adaptaram.»
- «Incluir neste grupo todos os indivíduos negros, os seus descendentes e apenas por este motivo, seria um erro, portanto, embora a sua cor, muitos deles – por qualquer motivo; a educação por exemplo – não possuem aquele mínimo da cultura “africana” para serem encarados dentro deste sector literário, mesmo quando observamos a multiplicidade da vida actual».
Qualificação da obra
- «Escritores que não traduziram nenhum aspecto “negro” na sua obra, melhor serão enquadrados nas correntes literárias dos países ou povos cuja cultura reflectem. O reticente Machado de Assis é um exemplo. Gonçalves Crespo outro. Adoptando o mesmo critério consideramos integrados na literatura negra as obras daqueles autores que de alguma forma reflectem a maneira de ser dos povos negros, os seus sentimentos, os seus processos de reacção; sendo este reflexo não apenas uma tradução, mas uma verdadeira identificação. Assim, não incluímos aqui aquelas obras “bem intencionadas” de escritores que, à caça do pitoresco ou para inspirar piedade enfileiraram no negrismo.»
Exclusão do cânone
- « “A Cabana do Pai Tomás” ou os poemas de Jorge Lima não pertencem à literatura negra. Tão pouco a desconcertante literatura colonial que por vezes extasia os europeus como crianças diante de espécimes dum Jardim Zoológico. Mesmo os negros que encarreiraram pelas puras ideias europeias são excluídos do campo literário que nos ocupa. Rui de Noronha, negro moçambicano é literariamente, apenas um poeta português, mesmo ao tomarmos conhecimento do seu poema “Surge et Ambula”, dos poucos em que ele se apercebe da existência da África.»
- «Para que determinada obra literária se atribua nacionalidade é necessário que ela se baseie na vida dos representantes dessa nacionalidade sem remeter esta palavra à estreiteza do seu sentido político. E para que isso seja possível é necessário que o autor tenha conhecimento da vida dos seus elementos constituintes. Ora, o conhecimento dos negros, actualmente, não está ao alcance de todos os autores rotulados de negros. Conhecer, neste caso, não é apenas coleccionar percepções sensacionais é ainda ter uma noção da parte psíquica dos homens, é ainda assumir certa atitude afectiva. Este conhecimento só o tem quem é capaz de se identificar psicologicamente com a maioria dos indivíduos do seu grupo para poder sentir com eles, os incidentes do dia a dia e as manifestações de carácter cultural ou material.»
Personagem de Nicolas Guillén
- Não sabemos, por exemplo, até que ponto os indivíduos de cultura europeia podem entender o “Sabás”, de Nicolas Guillén. Segundo a nossa maneira de ver, o verso (Porqué Sabás, la mano abierta?) exige não só a intervenção da inteligência, mas também a identificação com Sabás para podermos reprovar em cada negro, com essa ternura insinuante de Guillén, a inconsequência da atitude de “mão aberta”. Só um profundo conhecimento, não realizado da experiência, e a aceitação insofismada da realidade do nosso mundo pode ajudar a apreender a latitude daquele verso; a submissão psicológica, aparente ou não do negro da rua, ou o “arrivismo flagrante do negro beneficiado pelo poder, pela cultura, ou pela riqueza”, ou seja, a atitude de “mão aberta”.»
Dramas transatlânticos
- «Porém o conhecimento do negro tem sido prejudicado pelas condições da sua vida desde o século XVI. O seu contacto com o europeu ficou marcado com um acto violento – a conquista. Depois outros actos não menos violentos o forçaram a ir exercer um papel essencial na edificação dos países das Américas, como esclarece Gilberto Freyre (3) e a manter-se até hoje na sua situação de inferioridade perante os outros povos, ante a possibilidade de educação em larga escala e às dificuldades na vida social dos países que habitam, além de outras razões que não importa trazer aqui.»
- «Estas violências determinarão a submissão do negro, que por vezes se traduz em desejo de penetrar com direitos de cidade na cultura europeia e na sua vida social, umas vezes com a persistência consciente e outras com franco desespero ante a intransigência branca. E grande parte das obras literárias “verdadeiramente negras” reflecte com maior ou menor evidência este estado de espírito – orgulho ferido, ambições frustradas, desejos irrealizados, impotência. Literatura de sensibilidade, acima de tudo, por vezes autênticos os muros de lamentações sem consequências construtivas.» (…)


Reverendo Agostinho Pedro Neto, o segundo a contar da esquerda.
AGOSTINHO NETO
1923 – William DuBois e os membros da Liga Africana de Lisboa.
ANTÓNIO DE ASSIS JÚNIOR

* Ph.D. em Estudos de Literatura; M.Phil, em Filosofia Geral
LUÍS KANDJIMBO é nascido em Benguela em 1960, Luís Kandjimbo é ensaísta, filósofo, crítico literário e escritor angolano. Integra a denominada Geração das Incertezas, tendo sido fundador do Grupo Literário Ohandanji, que surgiu em Luanda, em 1984. É investigador do Instituto de Estudos Literários e Tradição da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a redacção dos volumes IX, X e XI da História Geral de África. É doutorado em Estudos de Literatura, pela Universidade Nova de Lisboa, e possui o Mestrado em Filosofia Geral pela mesma universidade. É autor de diferentes livros, entre os quais, Filosofemas Africanos, Ensaio sobre a Efectividade ao Direito à Filosofia.
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