Disputar a comunicação com as grandes corporações. Esse é o desafio enfrentado pelas mídias independentes e que encontra particularidades na América Latina. Falta de recursos, atuação política das big techs e a ascensão de governos de extrema direita são os principais obstáculos levantados por jornalistas de veículos contra-hegemônicos na construção de uma nova narrativa sobre os conflitos globais.
Na semana passada, representantes de 20 veículos alternativos se reuniram na Cúpula dos Povos pela Paz em Caracas, na Venezuela, para debater saídas para uma nova forma de fazer jornalismo, orientada para não só produzir conhecimento contra-hegemônico, mas também para combater as violências e o desrespeito aos direitos humanos. A articulação de veículos populares tem sido uma das principais ferramentas da esquerda na construção de novas narrativas e na denúncia de violações.
O Brasil de Fato acompanhou o evento e conversou com comunicadores sobre as principais demandas dos veículos em cada contexto. Sayonara Tamayo é comunicadora do Centro Martin Luther King de Cuba e coordenadora da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) Movimentos. Ela afirma que esse tipo de articulação se dá em um território em disputa que tem, de um lado, as “forças dominantes” e, do outro, os movimentos e organizações populares.
“A comunicação é um território em disputa. Os movimentos e as organizações populares têm um desafio nesse campo. É um desafio que temos assumido historicamente. Todos os acúmulos que temos em comunicação popular, comunicação contra-hegemônica, alternativa, formam parte da consciência que nossos povos e nossas organizações têm sobre o papel da comunicação na batalha das ideias, que é a batalha fundamental neste momento”, afirmou.
Problemas em comum
Um dos coordenadores do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Felipe Bianchi afirma que a articulação entre veículos durante a cúpula ajuda a compreender os problemas que as mídias alternativas têm em cada país, inspirar soluções e em uma reflexão crítica para atuar globalmente.
“A integração comunicacional é fundamental para a gente se conectar no que temos em comum, especialmente no Sul Global. Nós temos muitos problemas parecidos e a comunicação é o fio condutor, é o elo entre a luta por soluções aos problemas comuns. E a comunicação é o processo que pode conectar essas lutas que o momento e as circunstâncias exigem de nós”, disse.
Bianchi entende que, hoje, os principais problemas das mídias independentes estão não só nas dificuldades materiais e financeiras, mas também na necessidade de esses veículos estarem ancorados em plataformas que atendem a interesses políticos.
“O problema não é de qualidade, porque em muitos lugares a comunicação é produzida nos territórios, pelos movimentos e por redações muitas vezes enxutas. Isso acontece por conta das dificuldades materiais e financeiras que as mídias independentes e alternativas contra-hegemônicas enfrentam, mesmo com um nível profissional igual e, às vezes, até superior à mídia comercial. O grande desafio que está colocado é a conquista de uma soberania digital”, disse.
Influência das big techs
Esse modelo faz referência às big techs, que têm buscadores e redes sociais utilizadas pelos veículos independentes. O questionamento para o uso dessas plataformas se dá principalmente pelos interesses políticos dos donos dessas empresas. O caso mais recente foi o do dono do X, Elon Musk. O bilionário assumiu a chefia do Departamento de Eficiência Governamental dos EUA logo que Donald Trump assumiu a Casa Branca.
Bianchi destaca que as mídias independentes lidam com uma contradição porque precisam estar nessas plataformas para conseguirem acessos, mas, ao mesmo tempo, seu alcance é restringido pelas próprias empresas que têm interesse em impulsionar conteúdos pagos ou publicações que tenham um alinhamento político. Isso porque empresas como Meta e Google têm um regimento próprio e definem o que estará em destaque de acordo com suas próprias métricas.
“Os donos dessas big techs sabem exatamente como funciona, como operam os algoritmos. A gente já sabia que isso era um processo dirigido pelo dinheiro, mas recentemente ficou escancarado na posse do Donald Trump que esse processo, na verdade, tem um lado político declarado. É uma declaração aberta de alinhamento à extrema direita e esse ideário nefasto é simbolizado, no caso das big techs, pela aliança explícita com o Donald Trump”, afirma Bianchi.
Uma das demandas dos grupos é a regulação dessas plataformas, para estabelecer regras de uso e responsabilidade pelos conteúdos, além de ter maior transparência por parte desses grupos. Em agosto de 2024, a Justiça brasileira determinou a suspensão do X depois que a plataforma descumpriu decisões judiciais, fechou o escritório da companhia no país e não apresentou representante legal para atuar no Brasil.
Para os veículos independentes, uma articulação regional e global ajuda a jogar luz sobre a necessidade cada vez maior de regular as big techs. Outros países do Sul Global como Rússia e China não usam essas ferramentas e acabaram criando seu próprio ambiente digital, mas ficam restritos ao próprio território.
Diversidade narrativa
Algumas iniciativas ganham protagonismo na articulação entre veículos independentes e na busca por visibilizar questões que não são exploradas pelas mídias hegemônicas. A Alba Movimentos foi uma das responsáveis por organizar a ida de dezenas de mídias independentes para o encontro em Caracas. A organização busca construir uma rede de comunicação para construir novas narrativas sobre os diferentes processos políticos em curso.
Um desses exemplos é Cuba. A ilha passou por uma revolução em 1959 e, desde então, enfrenta não só um bloqueio econômico dos Estados Unidos, que afeta a população, mas também a estigmatização por parte das agências de notícias internacionais e jornais hegemônicos. Em 2024, por exemplo, o jornal Folha de S. Paulo publicou um editorial chamando o país de ditadura e repetindo termos como “crise” e “penúria”.
Nesse contexto, as mídias independentes entendem que são necessárias políticas públicas para fomentar a pluralidade de ideias, para que “outras vozes” ecoem e reverberem na sociedade.
Uma etapa importante nesse caminho é a organização e formação política. Para a Alba, estimular o debate sobre a comunicação popular por meio da formação é fundamental, para a integração entre diferentes movimentos populares e grupos que discutem uma comunicação contra-hegemônica.
“Não há organização política sem formação e consciência política. Primeiro, ter consciência do papel da comunicação popular. Segundo, formarmos para poder sustentar o trabalho de comunicação, que faz falta nas nossas organizações. Ou seja, a integração está no centro de Alba Movimentos como um projeto regular. Todos os eixos de trabalho giram em torno da integração porque só juntos e juntas podemos enfrentar a batalha atual contra o fascismo e a extrema direita”, afirmou Tamayo.
Palestina no centro
O genocídio na Palestina é hoje o principal exemplo de uma disputa comunicacional que tem a violência como centro das discussões. A disputa na construção de um Estado opressor versus a de um Estado que apenas estaria se defendendo foi central no começo dos ataques israelenses na Faixa de Gaza.
Almaza Ahmed Maarouf, membro do Conselho Nacional Palestino e ativista político nas comunidades palestinas na Europa, afirma que a cobertura em geral sobre o conflito “melhorou” de lá para cá, mas ainda não reflete a realidade do que acontece em território palestino. Para ele, os meios de comunicação acabam exercendo uma pressão sobre os governos de outros países para atuarem em defesa da Palestina.
“Há muitos meios manipulados. Em 7 de outubro, muitos países ocidentais europeus decretaram ordens para não exibir a bandeira palestina e proibiram manifestações. Para criminalizar a luta do povo palestino em busca de sua liberdade. Os meios de comunicação abriram parcialmente essa janela e o cidadão comum está percebendo parte da realidade, e isso faz com que pressione mais seus governos”, disse.
Ele afirma que é preciso que os veículos defendam e que transmitam o que acontece em Gaza, especialmente porque uma das categorias mais afetadas pelos ataques israelenses são os próprios jornalistas. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas afirma que mais de 180 profissionais foram mortos em Gaza em ataques israelenses desde o início dos conflitos.
“Nós exigimos a presença da imprensa transparente e não desequilibrada em Gaza e que transmita a verdade. Porque há muitas mortes, há muitas coisas feitas na escuridão, há muitas violações que o exército israelense cometeu em Gaza que não vieram à luz. Precisamos que, uma vez que o cessar-fogo seja estabelecido, sejam formados comitês da verdade para esclarecer muitas coisas que aconteceram em Gaza”, concluiu.
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