Uma audiência pública na manhã desta quinta-feira (7), promovida pela Frente Parlamentar em Defesa do Sistema Único de Assistência Social, presidida pelo deputado estadual Zé Nunes (PT), dedicou-se a discutir as persistentes contestações direcionadas às políticas de assistência social federais, com enfoque no Programa Bolsa Família. O objetivo foi proporcionar um espaço para a defesa dessas políticas frente aos “ataques incessantes cotidianos” e para preparar os envolvidos neste “momento de disputa na sociedade brasileira”, como explicou Zé Nunes.
Na abertura, foi exposta a condição singular do Brasil, que se posiciona entre as dez maiores economias globais, mas, simultaneamente, figura entre os dez países com os maiores índices de desigualdade. Dados apresentados na audiência sublinharam essa realidade: 1% da população brasileira detém 63% da riqueza do país, enquanto a metade mais empobrecida possui apenas 2% do patrimônio nacional. Em 2024, o Brasil ocupou a 14ª pior colocação em desigualdade, comparável ao Congo. Contudo, no mesmo ano, houve um crescimento de 10,7% na renda dos segmentos mais pobres, em contraste com 6,7% para os mais ricos, um resultado atribuído às políticas de distribuição de renda, como o Bolsa Família.

Confrontando discursos e duplos padrões
Segundo o deputado Zé Nunes, nos últimos meses, houve uma série de ações de prefeitos e empresários de diversos setores, que foram descritas como “ataque coordenado aos programas de proteção social, em especial ao Bolsa Família”. Um exemplo notório foi o do bilionário Ricardo Faria, que, em entrevista, “afirmou que as pessoas pobres estão viciadas em Bolsa Família em absoluto tom de preconceito de classe, chamando os beneficiários de preguiçosos”. Essa narrativa, que associa a pobreza à preguiça, não é nova, remontando aos tempos coloniais e escravocratas, quando as elites percebiam a classe trabalhadora como descartável. Tal discurso, segundo a audiência, “ressurge sempre que setores empresariais se vendem, se vem contrariados por políticas da inclusão social”.
Uma das contradições apontadas é que “curiosamente, quando um empresário ataca um programa que garante o mínimo de dignidade a milhões de brasileiros, ele próprio não abre mão do apoio estatal para expandir seus negócios”. Foi citado que Ricardo Faria obteve “pelo menos 71 empréstimos junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), com juros bem acessíveis e favorecidos” entre 2007 e 2024.
Além da retórica, as ações ultrapassam para o uso do aparato estatal. No município de Bento Gonçalves, a Lei nº 7126/2025 prevê “sanções pesadas, entre elas cortar de imediato o benefício, aplicação de multa administrativa no valor de R$ 7.200” e “inclusão […] de maneira coercitiva em parcerias para a captação de empregos formais com empresas privadas”. A Defensoria Pública da União (DPU) considerou a norma com risco para a política pública de transferência de renda e constatou “violação à Constituição Federal”.

O programa em números e a refutação de “mitos”
Para confrontar as críticas, foram apresentados dados substanciais sobre o Bolsa Família.
O programa atende 19,6 milhões de famílias, totalizando aproximadamente 52 milhões de pessoas, o que representa “um quarto da população que acessa uma política importantíssima”. Destas, “16 milhões são famílias chefiadas por mulheres”.
O valor médio do benefício no Brasil é de R$ 670,00, uma quantia que “não é uma fortuna”. No Rio Grande do Sul, são 575.240 famílias beneficiadas, injetando R$ 380 milhões por mês na economia do estado, valor que “gira no comércio local”.
O economista Jorge Sant, assessor parlamentar, explicou que a taxa de desemprego no Brasil tem diminuído, enquanto o número de beneficiários do Bolsa Família e o valor do auxílio aumentaram. Ele destacou o conceito de “força de trabalho” (pessoas aptas a trabalhar ou procurando emprego), afirmando que esta “continua igual”. “Não faz sentido alguém sair do mercado de trabalho por R$ 672,” disse Sant.
O deputado Halley Lino (PT) reforçou que o governo Lula gerou cerca de 4 milhões de postos de trabalho, e destes, “75% foram ocupados por ex-usuários do Bolsa Família”. A questão, para Sant, não é a falta de mão de obra, mas as condições oferecidas. “As pessoas estão trabalhando, tem que oferecer um salário maior” e “melhores condições de trabalho”.
A assessora técnica da bancada do PT/RS Paola Carvalho refutou a ideia de que mulheres teriam filhos para receber o benefício. Ela apresentou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicando que o Brasil tem “a menor taxa de natalidade” no momento, e que “as famílias mais pobres são as famílias que têm menos filhos historicamente”.
A afirmação de que o Bolsa Família representa um gasto excessivo para o país foi contrariada. O programa corresponde a apenas “1% do PIB nacional”, sendo um valor “baixíssimo perto do impacto que ele traz para a vida das famílias”. Carvalho afirmou que “cada um real que a família (…) recebe é R$ 1 utilizado no município, se transforma em quase dois, R$ 1,76. É a multiplicação do dinheiro, porque é um dinheiro que faz girar a economia”.
A percepção de que o benefício é majoritariamente destinado ao Nordeste foi desmentida. O programa beneficia estados em todo o território nacional, incluindo regiões como Sudeste e o estado do Rio Grande do Sul, com “um número muito expressivo de beneficiários”.
Bolsa Família: Um direito e ferramenta de transformação
A diretora do Departamento de Condicionalidades do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Itanamara Guedes Cavalcante, enfatizou que “o programa Bolsa Família é um direito social”, inserido na política de assistência social como “segurança assistencial de renda”. Ela destacou que o programa combate a fome e a “interrupção da pobreza por gerações”, promovendo o desenvolvimento social através do acesso a políticas de saúde e educação”.
A retirada do Brasil do mapa da fome foi celebrada como um resultado do Bolsa Família e de outras políticas. Segundo a diretora, o programa também contribuiu para a redução da extrema pobreza, atingindo o menor índice desde 2012. “As condicionalidades do programa promovem a vacinação infantil, o acompanhamento de gestantes e a frequência escolar, auxiliando no combate à evasão e impactando positivamente indicadores como mortalidade infantil e materna.”
Relatos de impacto direto e desafios cotidianos
A beneficiária do Bolsa Família e vice-presidente do Fórum dos Usuários de Gravataí, Maria Teresa Borges do Nascimento, compartilhou sua experiência emocional de ter seu benefício cortado por cinco meses devido a uma questão no título de eleitor, sendo sua única fonte de renda para as filhas. “Eu cheguei num Centro de Referência de Assistência Social (Cras), eu chorava porque com aquele dinheiro eu ia pagar a conta de luz e comprar umas coisas para casa”, relatou, evidenciando a dependência de muitas famílias.
Rudnei Borges, representando usuários de Assistência Social, descreveu a situação como “um pouco triste” e “muito humilhante” ter que defender o programa, pois o foco deveria ser no seu aumento. Ele afirmou que os recursos, mesmo que baixos, são “necessários para alimentação, para a saúde, para educação e para tantos outros direitos”.
O Dr. Jaderson Palosf, subdefensor público do Rio Grande do Sul, trouxe exemplos da vida real. Ele mencionou o caso de uma senhora de 50 anos, com fibromialgia, que recebia R$ 93,00 de Bolsa Família em 2017 e tinha dificuldades extremas de mobilidade. “Como vamos exigir dessa pessoa que ela vá a um mercado de trabalho?”, questionou. Ele também destacou a importância do programa para mães solo com filhos pequenos, caracterizando o benefício como um “suspiro” inicial.
Alexandre da Silva, do Movimento Pop Rua, apontou para a realidade de alguns moradores de rua que negociam o benefício e destacou que o programa deveria ser direcionado às mães em necessidade para suprir carências básicas como leite para crianças. Ana Maria Faria da Costa, da Associação Amigas do Bem, reforçou a importância de uma revisão cadastral para que o benefício alcance as “mães solo” que efetivamente necessitam, pois algumas chegam a pagar aluguel com o valor.
Juramar Vargas, do Conselho Municipal de Assistência Social de Porto Alegre, compartilhou a experiência de sua mãe beneficiada pelo BPC e seu próprio recebimento do Bolsa Família, reconhecendo o papel fundamental do programa, especialmente após os eventos climáticos que afetaram Porto Alegre, onde o auxílio foi crucial para as famílias.
Convocação à defesa e encaminhamentos
A audiência evidenciou que os ataques ao Bolsa Família fazem parte de uma disputa mais ampla sobre o papel do Estado, entre um “Estado social” e um “Estado fiscal”. Elias de Souza Oliveira, conselheiro nacional de Assistência Social, afirmou que “sem o Sistema Único de Assistência Social (Suas) não tem Bolsa Família”, defendendo a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 383 de 2017 para fortalecer o Suas e os Cras. Ele enfatizou a necessidade de combater a “criminalização dos pobres e da pobreza” e o “ajuste fiscal de cima dos pobres”.
O deputado Zé Nunes (PT), proponente do debate, convocou a sociedade a “reagir” e a não “ficar quieta” diante dos ataques. Ele anunciou a produção de um documento pela Frente Parlamentar para defender o programa e a elaboração de uma publicação (cartilha/panfleto) com informações para desmistificar as alegações falsas sobre o Bolsa Família. Além disso, propôs a criação de um “canal de denúncia” para casos de prefeituras que implementem políticas de retaliação ou dificultem o acesso ao programa. A discussão também incluiu a necessidade de abordar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os impactos de decretos que alteram a contagem de renda, como o Decreto 1253.
Gabriel Bezerra dos Santos, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados Rurais (Contag), reforçou que “os trabalhadores querem trabalhar” e que o Bolsa Família não desestimula o emprego. Ele destacou a colaboração da Contag com o governo federal para assegurar que trabalhadores safristas não percam o benefício, citando o PL 715. Ele também reiterou a importância de avançar em pautas como o fim da escala de trabalho 6×1, a isenção do Imposto de Renda para salários até R$ 5.000 e a taxação de grandes fortunas.
O evento concluiu que o Bolsa Família representa uma “conquista civilizatória” e uma ferramenta fundamental para a construção de um país mais igualitário, convocando a todos para sua contínua defesa.
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