Ou talvez…as hienas já estejam fartas
ensaio de Severino Ngoenha
Li por acaso num jornal italiano, A República, um artigo de Italo Calvino com um título insólito: Le capre ci guardano — as cabras nos obervam
Calvino insurgia-se então contra a banalidade dos homens, num mundo que acabava de inventar a bomba atómica nascida, não apenas nas entranhas do deserto americano los Alamos, mas que já palpitava nos corredores universitários da Europa, e surpreendentemente da Itália (com Enrico Fermi, que depois integraria o Projeto Manhattan ) que não se limitou a destruir Hiroshima e Nagasaki, mas redefiniu a própria ideia de humanidade.
A bomba não caiu do céu. Caiu da razão. Caiu da ciência. Caiu da Europa culta. Foi lançada por homens que leram Dante e conheciam Sófocles. Porque a razão, a ciência e a filosofia europeias pariram o apocalipse?
« As cabras nos obervam.”sem entender. Olham como se olham as estrelas, sem compreender o que nelas habi ta, mas sabendo que guardam uma verdade. As cabras continuam a olhar. Talvez com mais humanidade do que nós…E essa verdade, hoje, é obscena.
Depois da destruição total de 1939–1945, fizemos uma promessa ao mundo: Nunca mais. Nunca mais Auschwitz. Nunca mais o extermínio de Anne Frank(s). Nunca mais Shoah(s). E essa promessa deu origem, em 1948, à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um documento que dizia: cada homem é um valor absoluto. Um valor em si. Irredutível. Inviolável.

Foi com base nisso que as constituições modernas foram redigidas. Foi com base nisso que, nas escolas dos anos 60 e 70, nos educaram com livros fundamentais: O Diário de Anne Frank, a inocência perseguida; Se isto é um homem, de Primo Levi, a humanidade reduzida à cinza; Antoine de Saint-Exupéry, a fé no essencial invisível; Hannah Arendt, com o conceito da banalidade do mal, mostrando que o mal não é obra de monstros, mas de homens comuns, obedientes, passivos.
Fizemos filmes. Construímos museus: Auschwitz, Berlim, Nova Iorque. Lembrámos o horror. Mas esquecemos a lição.
Hoje, vemos tudo – em tempo real, nas redes sociais. Nos telejornais. Nas imagens filmadas por drones. Vemos crianças em Gaza com as cabeças abertas. Vemos corpos soterrados. Vemos o genocídio. E não fazemos nada.
O mal tornou-se espetáculo. Mais do que banal: tornou-se banalizado. Sabemos. Vemos. Mas seguimos.
Peter Sloterdijk escreveu que vivemos num tempo cínico. Sabemos o que está errado, e mesmo assim continuamos. Mas hoje não é só cinismo. É medo. O medo de perder o emprego. O medo de ser silenciado. O medo de perder privilégios. E esse medo mata os valores.
A palavra democracia está esvaziada. Em Israel, ninguém quer Netanyahu — mas ele governa. Nos Estados Unidos, muitos rejeitam Trump — mas ele volta. O povo protesta, mas é ignorado. Marcha, mas é reprimido. Participa, mas não decide.
Mesmo a democracia direta da Suíça não escapa as forças do capital, do mercado, dos grandes interesses corporativos, dominam tudo. O povo já não governa. Nem sequer escolhe. É governado. É dirigido. É domesticado.
Aqui, entra a África. Não apenas como vítima, mas como lugar de pensamento. Frantz Fanon (como antes dele Césaire) já nos advertira: “A Europa está literalmente no beco sem saída dos seus próprios princípios.” Souleymane Bachir Diagne propôs: “A filosofia africana não deve ser apenas reação ao sofrimento. Deve ser proposta de universal.” Paulin Hountondji, com precisão, lembrou que precisamos de filosofias africanas atuantes, inseridas no mundo, intervencionistas.
A África tem a responsabilidade de não ser apenas testemunha. Mas sujeito pensante e propositivo. Temos de sair da condição de “cronistas da desgraça” — tanto da nossa como da alheia — e tornar-nos arquitetos do possível.
O que se passa na Palestina é mais do que uma tragédia geopolítica. É a falência do humano. É o retorno dos supremacismos. É o reaparecimento da ideia de que há povos sacrificáveis. Como dizia Joseph Arthur de Gobineau, há homens que merecem viver, e outros que podem morrer.

Estamos a regressar à barbárie teorizada. À ideia de que a humanidade não é uma só, mas hierarquizada. E que há vidas que valem mais do que outras.
Se o capitalismo liberal de Adam Smith prometia uma humanidade unida pelo interesse económico, hoje vemos que esse interesse não gera fraternidade. Gera exploração, divisão, massacres.
É por isso que o nosso problema já não é apenas político. É axiológico. O que está em causa é o próprio significado da humanidade. Não basta uma nova gramática política. Precisamos de uma nova gramática do humano.
Uma gramática onde: Cada homem volte a ser valor absoluto, como em 1948; Cada povo tenha autodeterminação real; O medo seja vencido pela esperança; A ética volte a guiar a política; O sofrimento gere ação — e não apatia. Como a África do Sul o fez ao denunciar o genocídio de Gaza, mesmo contra as forças do capital. Como os povos sempre o fizeram, quando perdiam o medo e se levantavam.
Nunca esqueceremos a imagem onde: o fotojornalista Kevin Cartes, vencedor do Prémio Pulitzer, retrata uma criança desnutrida, caída no chão, com uma hiena à espera ao fundo. Ele tira a foto. Ganha o prémio. Não ajuda a criança. Quando questionado, diz: “Não sei o que lhe aconteceu.”
Talvez a hiena a tenha comido. Talvez não. Mas o que é certo é que a humanidade morreu um pouco mais naquele dia. E é isso que fazemos todos os dias: tiramos fotos. Protestamos. Publicamos. E seguimos.
As cabras continuam a olhar para nós.
As hienas, saciadas, já nem se esforçam.
E nós, os homens, já não sabemos o que somos.
Mas a filosofia africana, nascida da dor e da luta, ainda pode dizer algo ao mundo. Pode lembrar que pensar é resistir. Que resistir é existir. E que existir é reescrever a humanidade.
Porque a Palestina não é um lugar. É o espelho da nossa falência.
E só se reagirmos — com palavras, com ideias, com ação — haverá ainda algo a salvar.
Criar uma nova gramática do humano não é utopia. É urgência.

O tempo do diagnóstico já não basta. A denúncia, por mais justa, já não transforma. As imagens do sofrimento, por mais comoventes, já não bastam para impedir o horror. O mundo entrou numa nova fase: o esvaziamento radical do humano. A crise não é apenas política ou económica. É ontológica. Está a desaparecer a ideia de que o homem tem valor por si. E sem essa ideia, nenhuma constituição resiste, nenhuma democracia se sustenta, nenhum povo se salva. O que fazer, então?
A filosofia africana e do Sul global, diante do abismo, não podem continuar como eco tardio da crítica ocidental, nem como decorativa resistência. Tem de tornar-se laboratório de reconstrução. Propor caminhos. Não para restaurar o passado, mas para reinventar o futuro; Restaurar o humano como centro da política.
A filosofia africana pode relembrar que o valor de uma sociedade se mede pela forma como ela trata o mais vulnerável — o órfão, o refugiado, a criança faminta, o velho abandonado; exigir que o poder político não seja apenas representação, mas resposta -o representante que não responde já não representa; reabrir a questão da relação entre a ética e a economia; Enfrentar a necropolítica com uma pedagogia moral sobre o valor supremo da vida; Refundar o direito a partir da vida, não da propriedade: trata-se de enfrentar um desafio civilizacional.
O Ocidente trouxe conforto, tecnologias, formas de liberdade. Mas perdeu o sentido do essencial. Caminha para uma civilização do vazio com aparência de plenitude. De aparência democrática com práticas autoritárias. De direitos formais com vidas descartáveis. O que nos resta, então, não é restaurar o que existia. É fundar o que nunca houve: uma civilização centrada na vida, e não no lucro. No humano, e não no algoritmo. O desafio não é da África sozinha. Mas sem uma África pensante, crítica e propositiva, o mundo não será salvo. Porque a África conhece a dor da ausência. E só quem conhece essa dor pode gritar o essencial. “A Palestina é hoje o nome da descrença no humano.” “Mas África pode ser o nome da sua reconstrução.” Não como redenção simbólica. Mas como força de pensamento real. Como lugar onde a nova gramática do humano pode e deve ser escrita.
Pensar o humano hoje é reconhecer que ainda não fomos humanos. A história — a colonial, a capitalista, a tecnológica — foi, em grande parte, o fracasso dessa promessa. O século XXI, com os seus algoritmos que antecipam desejos, as suas guerras que banalizam a morte e os seus mercados que devoram tudo, não nos dá alternativa: ou inventamos o humano, ou desaparecemos com a máquina que construímos. Não se trata de preservar o que fomos, mas de romper com o que nos desfigurou. De fazer do humano não um dado, mas um ato: o gesto lúcido, solitário e comum, de recusar o mundo como está. Só então, talvez, seremos — por fim — dignos do nome que há tanto dizemos sem o ter sido: humanos.
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