Com disputa interna e crise econômica, Bolívia tem eleições com maior risco para esquerda em 20 anos

O projeto do Movimiento Al Socialismo (MAS) que transformou a Bolívia nos últimos 20 anos está em xeque. Depois dos governos de Evo Morales e Luis Arce, os bolivianos vão às urnas neste domingo (17) em uma eleição presidencial que tem candidatos da direita como favoritos e o risco de a esquerda deixar o poder após derrotar tentativas de golpes de Estado e ingerências estrangeiras no país. 

O empresário Samuel Doria Medina, da Aliança Unidade, e o ex-presidente Jorge Quiroga Ramírez, da Aliança Livre, lideram atualmente as pesquisas de intenção de voto e são indicados como os principais nomes para disputar um inédito segundo turno. Eles aparecem com 21% e 20% respectivamente nos levantamentos. 

Nas eleições bolivianas, vence quem receber mais de 50% dos votos ou mais de 40% dos votos com uma diferença de 10 pontos percentuais para o segundo colocado. Se ninguém conseguir essa maioria, os dois melhores votados vão para um segundo turno, algo que nunca aconteceu no país. Antes de 2009 não havia segundo turno na Bolívia e o Congresso era responsável pelo desempate se nenhum candidato recebesse mais da metade dos votos. 

Ao todo, 7,9 milhões de eleitores estão registrados para votar. Se antes o MAS conseguia aglutinar a maioria desses votos, agora a esquerda tem muita desvantagem e aparece atrás em todas as sondagens eleitorais. O candidato da sigla histórica é o ex-ministro de governo Eduardo del Castillo, que tem menos de 1,5% das intenções de voto. O candidato progressista que aparece melhor colocado é Andrónico Rodríguez, com 5,5%.

Dois motivos foram fundamentais para que a direita hoje tenha vantagem depois de gestões exitosas do MAS: a divisão na esquerda e o desempenho econômico recente.

Disputa interna

O racha no partido foi, pouco a pouco, minando as candidaturas de esquerda para essas eleições. E essa disputa teve dois campos muito bem definidos. De um lado, estão os apoiadores do ex-presidente e liderança cocalera, Evo Morales; do outro, os seguidores do atual mandatário Luis Arce.

Depois do golpe de 2019 que derrubou Evo, o ex-presidente foi exilado na Argentina e voltou em 2020, quando Arce foi eleito. No entanto, o líder histórico do MAS começou a criticar algumas decisões do atual presidente e seus apoiadores, disputando espaço pela candidatura do MAS nas eleições presidenciais.

O estopim da desavença na corrida pela liderança do partido se deu em outubro de 2023, quando apoiadores de Morales organizaram um congresso em Lauca Eñe, no distrito de Cochabamba. A região é seu berço político e reduto eleitoral. No evento, ele chamou os apoiadores de Luis Arce de “traidores”. Já o MAS determinou a expulsão de Arce da sigla , justificando que o atual mandatário, como representante do partido no Executivo, não compareceu ao evento. 

A tensão escalou e os bolivianos passaram a ver uma troca de declarações cada vez mais ríspida entre os dois lados. 

Outro capítulo importante nessa cronologia foi a decisão da Justiça boliviana de impedir Evo de concorrer. O Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia decretou, em dezembro de 2023, que presidentes e vice-presidentes só poderiam exercer o cargo por dois mandatos, de forma seguida ou não. Com a sentença judicial, Evo Morales, que foi presidente por quatro mandatos, não poderia voltar ao poder.

Ele ainda tentou criar um partido e inscrever sua candidatura, mas foi vetado pela Justiça eleitoral boliviana. Evo então adotou uma postura ainda mais crítica a Arce, que também usou espaços institucionais para rebater o ex-mandatário.

O aumento da temperatura levou Arce a desistir de tentar uma reeleição em maio. Nesse momento, a esquerda passou a apostar no presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, que, além de um perfil conciliador, também era visto como “sucessor natural” de Evo Morales. Essa relação está muito vinculada ao fato de o jovem ter tido uma formação política como dirigente cocalero, assim como o ex-presidente.

Andrónico tentou capitalizar o apoio da esquerda e adotar uma distância tanto de Arce quanto de Evo, mas a estratégia não surtiu efeito. O MAS seguiu apoiando Eduardo del Castillo enquanto Evo começou a pedir voto nulo aos seus apoiadores. 

Agora, nenhum dos dois desponta e a esquerda parece ter perdido força eleitoral. O cientista político e professor da Universidade Católica de La Paz, Marcelo Arequipa, entende que há ainda uma esperança dos militantes, apostando que as pesquisas não representam de maneira fiel o voto dos eleitores de zonas populares e de bolivianos que estão fora dos centros urbanos, a principal base de apoio do MAS.

“Há uma expectativa na esquerda porque as pesquisas não conseguem atingir o anseio da população e do conglomerado de progressista. Esse grupo ainda espera subir ao menos 10 pontos percentuais em relação ao que está sendo divulgado nas pesquisas. Mas isso também mostra o êxito da campanha de Evo pelo voto nulo, que conseguiu surtir efeito”, afirmou ao Brasil de Fato.

Ele explica que também há o efeito rebote para a oposição, que vê a possibilidade de vencer e tem “mais incentivo” para votar. Arequipa entende que o risco da direita é de “destruir” uma série de direitos conquistados ao longo de 20 anos de políticas inclusivas e focadas no desenvolvimento da sociedade.

“A campanha foi marcada por uma extrema divisão de todos os setores. Ninguém deu sinal de esforços de unidade. O bloco conservador e liberal agora tem mais incentivo para votar porque a esquerda tem chance de perder. Tudo que tem a ver com a política social, a direita deve promover um atraso. Tirar todas as políticas conquistadas ao longo de 20 anos com esforço coletivo e que tinham em Evo uma liderança importante para todo um projeto de políticas inclusivas e plurais na Bolívia”, disse.

Economia instável

Um outro problema para a esquerda é a crise econômica que o país atravessa, elevando a inflação anual a 25%. Isso prejudicou a avaliação do governo entre os setores que não são eleitores fiéis do MAS. 

Apesar da crise atual, as gestões do MAS promoveram uma estabilização profunda na economia boliviana. As políticas sociais conseguiram reduzir a pobreza extrema que, em 2006, atingia 38,2% da população, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Depois de 15 anos de governos de Evo e Arce, esse dado caiu para 11,2% da população. 

O governo também investiu em programas para ampliar o acesso dos bolivianos a água e energia, aumentar a alfabetização, ampliar a cobertura das aposentadorias, reconhecer a informalidade dentro da legislação trabalhista e manter os preços baixos dos combustíveis.

Esse último foi resultado da nacionalização da produção de recursos minerais em 2008. A reestatização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) em 2006 permitiu que os investimentos e as exportações na área fossem voltados à estrutura pública do país. 

Tudo isso garantiu uma inflação controlada e um câmbio estável. Segundo o Banco Central (BC) do país, o índice de preços acumulado em 12 meses sempre esteve abaixo dos 8% desde 2011 e, em alguns anos, chegou a registrar 0,5%.

Nos últimos anos, a Bolívia adotou também um sistema de câmbio fixo. O BC manteve a cotação da moeda local, o boliviano em 6,96 por dólar. Isso ajudou a Bolívia a manter uma estabilidade nos preços.

Direita incerta

A falta de unidade na esquerda também é vista na oposição. Ainda que tenha uma maior intenção de voto, os progressistas apostam na divisão dos próprios setores da direita. O grupo tentou uma unidade em dezembro de 2024, em uma reunião que envolveu os ex-presidentes Carlos Mesa e Quiroga, além do empresário Samuel Medina. Mas a ideia de unir esforços durou pouco. 

O primeiro levantamento que deu vantagem para Doria nas intenções de voto foi o suficiente para que Quiroga anunciasse que participaria de maneira independente. O acordo que parecia ter saído daquela reunião foi rasgado com Mesa também afirmando que não participaria do pleito. 

Os dois antagonizam e têm perfis diferentes. Nascido em La Paz, Medina é um empresário e político que construiu sua fortuna no setor de cimento. Herdeiro do grupo Soboce, transformou a empresa em uma das maiores da Bolívia antes de vendê-la parcialmente para o consórcio mexicano Grupo Cementos de Chihuahua.

Sua trajetória empresarial se estendeu e Medina passou a atuar em outros setores da economia boliviana, como hoteleiro, imobiliário e de educação, consolidando sua imagem como um dos magnatas mais conhecidos e influentes do país.

Medina já se candidatou três vezes à presidência do país, mas perdeu para Evo Morales, em 2005, 2009 e 2015. Todas ainda no primeiro turno.

Formado em Economia pela Universidade Católica Boliviana, Medina se vende como um nome mais técnico e moderado em comparação com seu adversário da direita. Estudou nos Estados Unidos e no Reino Unido e iniciou sua carreira política nos anos 1990, ocupando o cargo de ministro de Planejamento no governo de Jaime Paz Zamora. Desde então, se manteve como figura recorrente na política nacional.

Já Quiroga tem 65 anos e é um nome tradicional da política boliviana. Foi presidente do país de 2001 a 2002 depois da renúncia do histórico ditador Hugo Bánzer, que se afastou para tratar um câncer de pulmão. Ele é um dos principais opositores a Evo e sempre foi uma das vozes mais críticas ao governo do MAS. 

Com um perfil mais próximo à extrema direita, “Tuto”, como é conhecido, se formou em engenharia industrial nos Texas e trabalhou em empresas estadunidenses antes de voltar à Bolívia em 1988. Foi integrante da Ação Democrática Nacionalista (ADN), sigla de Bánzer, para retornar ao poder pelas vias democráticas. 

Quiroga foi ministro do Planejamento e da Fazenda de Jaime Paz Zamora. Mais tarde, se candidatou nas eleições presidenciais de 2005, mas também perdeu para Evo Morales. Com o lema “Mudança Radical”, ele defende o “livre comércio” e afirmou que também usará a “motoserra” de Javier Milei na Argentina para “cortar gastos de bens e serviços no país”.

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