A infância sequestrada pelos algoritmos: por que o Brasil precisa regular já as plataformas digitais

A denúncia realizada pelo influenciador Felipe Brassanim Pereira, o Felca, ao expor a exploração de crianças e adolescentes em conteúdos monetizados pelas grandes plataformas digitais, tornou-se um marco no debate público. O vídeo, com dezenas de milhões de visualizações, não apenas expôs a vulnerabilidade de menores em um ambiente desprotegido, mas também evidenciou a cumplicidade sistêmica das plataformas que lucram com a monetização desses conteúdos. A prisão preventiva de um dos envolvidos, o influenciador Hytalo Santos, reforça a dimensão da gravidade, mas não resolve a questão central: a máquina algorítmica que privilegia engajamento e lucro acima da dignidade humana continua operando sem regulação democrática. Este episódio, que agora impulsiona a votação de um projeto de lei sobre proteção digital de crianças e adolescentes, deve ser interpretado como mais do que um escândalo pontual. Ele é um sintoma de uma sociedade mediada por algoritmos que priorizam a financeirização da atenção em detrimento do cuidado, da ética e dos direitos humanos.

Em meus livros, como Maioria Minorizada (2020) e Comunicação em Disputa (2025), tenho insistido que a comunicação deve ser tratada como um direito público essencial, e não como mera mercadoria submetida às leis do mercado. Quando a comunicação é reduzida a um negócio, as desigualdades estruturais da sociedade brasileira — especialmente as raciais e territoriais — são reproduzidas e intensificadas. Esse caso mostra de forma exemplar que não se trata apenas de liberdade de expressão, mas de proteção da dignidade de crianças e adolescentes. A suposta neutralidade das plataformas digitais, frequentemente evocada por seus executivos, nada mais é do que um álibi para a manutenção de um modelo de negócios extrativista, baseado na captura e monetização de dados e atenções.

O Brasil foi pioneiro com a aprovação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), considerado uma espécie de “Constituição da Internet”. Esse marco estabelece princípios como a neutralidade da rede, a privacidade e a liberdade de expressão como direitos fundamentais. Entretanto, a realidade atual mostra que o Marco Civil, embora avançado, não é suficiente diante da sofisticação das plataformas digitais e de sua lógica algorítmica. O que se vê hoje é que a neutralidade técnica dos provedores de internet pouco se aplica às plataformas, que atuam como curadoras e distribuidoras de conteúdo por meio de algoritmos opacos e orientados ao lucro. Assim, a promessa do Marco Civil de garantir uma rede democrática esbarra na falta de regulação específica para empresas que não apenas hospedam conteúdos, mas definem o que circula, quem é visto e o que é invisibilizado.

O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) é uma das experiências mais ricas de governança multissetorial no mundo, reunindo governo, empresas, sociedade civil e academia para discutir políticas de internet. Contudo, seu papel precisa ser fortalecido. Num cenário em que big techs concentram poder sem precedentes, é fundamental dotar o CGI de maiores instrumentos de regulação, fiscalização e transparência. Hoje, sua atuação é mais normativa e orientadora do que coercitiva. O desafio é transformá-lo em uma instância que efetivamente possa limitar abusos e cobrar das plataformas transparência algorítmica, responsabilidade social e respeito às legislações nacionais. Se o Brasil já foi referência ao criar o Marco Civil, pode novamente assumir protagonismo ao ampliar o papel do CGI.br e propor formas inovadoras de regulação democrática da internet.

A obra Algoritmos da Opressão, da pesquisadora Safiya Umoja Noble, é central para compreender o que está em jogo. Ao analisar o funcionamento dos mecanismos de busca, Noble mostra que os algoritmos não são neutros, mas sim reprodutores e amplificadores de desigualdades históricas, em especial de raça e gênero. Quando uma jovem negra buscava por termos relacionados a sua identidade no Google, encontrava resultados sexualizados, violentos e estigmatizantes. Isso não acontecia por acaso, mas porque os algoritmos foram programados para privilegiar cliques, ignorando os efeitos sociais e simbólicos. Se isso já é devastador para jovens em contextos de maior proteção social, o que dizer das crianças das periferias brasileiras, que muitas vezes encontram nas telas o único espaço de lazer, sociabilidade e aprendizado? Nesse caso, os algoritmos não apenas reproduzem, mas também agravam a exclusão social e racial, moldando imaginários colonizados e precarizados.

Há um aspecto quase sempre invisibilizado nos debates institucionais: o impacto desigual das plataformas sobre crianças e adolescentes pobres, negros e periféricos. Esses jovens vivem em territórios marcados pela ausência de políticas públicas, pela violência policial e pela precariedade da educação e do lazer. Não raro, o celular se torna a principal janela para o mundo. Mas o que esses algoritmos oferecem a eles? Conteúdos que reforçam estereótipos raciais e territoriais; promessas de enriquecimento rápido e fama digital como “única saída”; modelos de masculinidade violenta e sexualização precoce das meninas; normalização da violência como espetáculo de consumo. Esses elementos configuram uma verdadeira pedagogia algorítmica da exclusão, que forma subjetividades conformadas à lógica do mercado e às hierarquias raciais.

O filósofo francês Louis Althusser falava em “aparelhos ideológicos de Estado” para se referir a instituições como a escola, a mídia e a igreja, que moldam subjetividades e legitimam a ordem social. Hoje, poderíamos falar em aparelhos ideológicos algorítmicos, nos quais plataformas digitais desempenham um papel ainda mais penetrante e invisível. Estamos formando uma geração cuja memória, imaginação e linguagem são mediadas por algoritmos que não priorizam a diversidade cultural ou a equidade, mas sim o que gera lucro imediato. O risco é a consolidação de uma sociedade de sujeitos desidentificados, incapazes de reconhecer-se como parte de uma coletividade crítica e transformadora.

A regulação das plataformas digitais, portanto, não é apenas uma medida técnica, mas uma escolha civilizatória. Trata-se de decidir se queremos uma sociedade em que a infância e a adolescência sejam vistas como sujeitos de direitos ou como meros insumos para a indústria da atenção. Nesse sentido, algumas medidas são urgentes: transparência algorítmica, responsabilização social, educação midiática, fortalecimento do CGI.br e políticas de reparação que priorizem territórios historicamente excluídos. O caso exposto recentemente é mais um chamado à ação. Se não enfrentarmos a lógica de que os algoritmos são neutros e inevitáveis, corremos o risco de consolidar uma distopia algorítmica, onde crianças pobres e negras serão as principais vítimas. Mas há também uma utopia possível: a de construir uma sociedade digital regulada democraticamente, na qual comunicação seja um direito, e não um negócio. Essa utopia depende de coragem política, pressão social e de uma visão de futuro que não se submeta à colonização das plataformas. Como tenho defendido em minha trajetória acadêmica e militante, a comunicação é campo de disputa. E, nesse campo, decidir o que circula, o que é invisibilizado e como se forma o imaginário coletivo é decidir o próprio futuro de nossa democracia.

*Richard Santos, também conhecido como Big Richard, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), pioneiro da cultura Hip Hop no Brasil. Coordena o grupo de pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo (UFSB/CNPQ). Está lançando seu novo livro- Comunicação em Disputa: A Luta pelo Imaginário da América Latina na Era Trump (Editora Telha, 2024), no qual analisa os desafios da soberania simbólica latino-americana frente ao colonialismo midiático e digital.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.

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