Dias depois, retorno para o momento em que estava sentada na segunda fileira do teatro Renascença, renascendo lindo depois da enchente, com Clarissa Ferreira e suas ilustres parcerias, para celebrar um ano de ressoar do álbum LaVaca.
O espetáculo me transportou de início a um lugar para onde precisava voltar. Uma reaproximação com algo que existe de bom no Sul. Confesso que viver em Porto Alegre no inverno é depressor. As gestões públicas nos colocam num estado de desespero, de sofrimento crônico, porque não vemos saídas – tudo que é público vai sendo sucateado, vendido. Tudo que envolve grandes corporações vai crescendo por cima das leis e das nossas cabeças, nos fazendo sombra, aprofundando o frio, a umidade, o risco de novas inundações, a desigualdade, a impunidade, a indiferença, o mau humor.
No Sul não valorizamos ou desconhecemos as músicas indígenas, crioulas daqui – para além do galpão crioulo inventado pelos da casa grande real –, e temos poucas festividades populares que resistiram ao racismo brutal, muito trabalho mal pago, muita cobrança de chefes brancos soberbos, muito frio, pouco contato com a vida do campo, do Pampa, dessa terra enaltecida por uma cultura inventada, anacrônica e doente.

Clarissa nos convoca para o centro nevrálgico dessa cultura pampeana, rasgando camadas. Passa pela milonga retomando os múltiplos tambores negros, e anuncia ali no meio do palco, numa realidade produzida mas aterradoramente concreta, a hipocrisia dos que cantam o Pampa ao mesmo tempo que o destroem.
Os gaúchos que orgulhosamente se vinculam ao agro, são os mesmos, portanto que assassinam o Pampa. Que derrubam a Mata Atlântica, que extinguem a floresta de araucária, que matam a pastagem nativa para cultivar soja e envenenar todos os nossos rios, que arrasam com a dignidade das mulheres, dos indígenas, do povo negro. Que grilam as terras do povo quilombola que ergueu e sustenta essa civilização, que segue sem ter terra, sempre de guaiaca nua, quando não sendo escravizado nas colheitas precárias, nos interiores profundos.
Ainda pior, os tais gaúchos que em tese se orgulham desse Pampa que destroem replicam esse mesmo modelo, ignorante, criminoso e predatório, em todo o Brasil. Fazem a fronteira agrícola arrasar todos os biomas, levando soja para o Pantanal, gado para a Amazônia, implementando barragens que fazem desaparecer mundos, como Mariana, como Brumadinho.
Clarissa faz um ato de protesto em seu espetáculo, mas sem perder a graça, sem perder, na verdade, a vibração da arte verdadeira. Ela está conectada a cada palavra que lhe sai, a cada sonoridade que cada corpo produz no palco. Coloca sua arte afiada à disposição da luta contra as injustiças produzidas por esse modelo genocida, superando fronteiras. E, desde já, ensaia modos melhores de viver a vida, valorizando a admiração entre mulheres e a poética libertária de um Pampa que nos andarilha.

Saí do espetáculo LaVaca nutrida de arte. Inebriada de beleza. Tenho pra mim que hoje em dia, mesmo que a arte pela arte nos alegre e nos envolva, a arte que não se demora na fronteira com a controvérsia da vida cotidiana dura pouco em nós. Por outro lado, a arte que nos nutre também nos transforma. Saímos de um espetáculo como o de Clarissa com a sensação verdadeira de estarmos vivendo um momento muito difícil, mas que exige coragem e beleza, seriedade e riso, compromisso e dança.
Além das imagens propostas, do figurino irretocável, da banda excepcional, das convidadas brilhantes, com destaque para Rosa Nika (!), da produção nitidamente engajada, a música de Clarissa sugere cenas que nos ficam. Saí de lá com uma bailarina negra dançando no campo, no meio do Pampa, de dentro de mim.
Atravessei as fronteiras do tempo e do espaço e, entre cinamomos e umbus, me liguei a Eny, quilombola de Von Bock, do interior profundo de São Gabriel, que morreu prematuramente como tantas mulheres negras dos mundos rurais deste país, e que amava dançar. Além de dedicar sua vida inteira à luta pelo território quilombola – que compõe e nutre esse Pampa ameaçado – e pela vida de seus cinco filhos, Eny caminhava quilômetros para ir ao baile, cresceu dançando escondida os passos que assistia pelas janelas dos brancos, para os quais ela trabalhava desde criança, nas festas que seu pai, Seu Homero, entrava apenas para tocar o ‘bandone’.
Por isso, Clarissa Ferreira que é uma mulher branca e corajosa, é necessária. Usa seu espaço e sua notável arte para nos transportar pelas camadas da contradição que sustentam o Sul. Que atravessam nossas gargantas no Sul. Que apertam nosso peito, que nos agridem, no Sul. Que também nos emocionam e movem, para seguir a luta de pessoas como Eny, do Sul.
* Tábata Silveira é dançarina, pesquisadora quilombista, mestra em desenvolvimento rural e advogada.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.
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