Em tempos de crise climática, insegurança alimentar e esgotamento dos recursos naturais, iniciativas que conciliam produção agrícola, preservação ambiental e fortalecimento dos territórios camponeses ganham cada vez mais relevância. É nesse contexto que surgem os “corredores agroecológicos” — sistemas produtivos baseados na diversidade de culturas, no uso de sementes crioulas e na cooperação entre os saberes populares e científicos.
Nesta entrevista, conversamos com Ana Cláudia de Lima Silva, engenheira agrônoma com doutorado em Agricultura. Com uma trajetória dedicada à agroecologia e ao trabalho com comunidades camponesas, Lima e Silva é professora de Extensão Rural e Agroecologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ela explica o que são os corredores agroecológicos, os desafios para o seu estabelecimento e o papel estratégico que cumprem na disputa por outro modelo de agricultura para o Brasil.
Wallisson Rodríguez: O que são corredores agroecológicos e qual a importância deles para territórios camponeses e para o meio ambiente?
Ana Cláudia de Lima Silva: Os corredores agroecológicos são colocados como uma alternativa aos roçados tradicionalmente manejados com base em monocultivos e em uma única variedade genética. Caracterizam-se como faixas intercaladas de plantas no mesmo tempo e espaço, compondo uma paisagem de policultivo que combina espécies de acordo com o interesse dos/as agricultores/as, produzindo alimento para as pessoas e para o solo.
Esses arranjos podem ser diversos. Mas a ideia central é a combinação de plantas com diferentes hábitos de crescimento, funções e usos, como adubadoras verdes, gramíneas, leguminosas, aromáticas, oleaginosas, tubérculos, entre outras. As plantas exercem funções que vão além da produção de alimentos e sementes: atuam de forma integrada e sinérgica no sistema.
Por exemplo, o girassol atrai polinizadores, como abelhas e mariposas; o gergelim pode ajudar no controle de formigas e servir de hospedeiro para a mosca-branca, protegendo em consórcio o feijão. As leguminosas contribuem com a fixação de nitrogênio; as gramíneas, com a produção de biomassa orgânica. Além disso, os corredores promovem o resgate e a introdução de sementes crioulas, fortalecendo a soberania alimentar e a autonomia camponesa.

O diálogo com as comunidades é essencial. Não há uma combinação única de plantas — há princípios, não regras. Espaçamento, materiais disponíveis e a experiência dos agricultores são fatores importantes no processo de implantação. Para o meio ambiente, os corredores contribuem com a diversificação da paisagem agrícola, aumentam a fertilidade do solo, promovem a ciclagem de nutrientes, o acúmulo de carbono e o crescimento de microrganismos benéficos.
WR: Qual é a diferença entre os corredores agroecológicos e os sistemas agroflorestais (SAFs)?
ACLS: A principal diferença é a ausência do estrato arbóreo nos corredores agroecológicos. No entanto, eles podem ser conduzidos dentro de SAFs, dependendo da idade das árvores e da necessidade de luz das espécies cultivadas. A concepção dos corredores dialoga com os princípios dos SAFs — cultivo em faixas, diversidade de espécies, recomposição de matéria orgânica — mas sem o manejo intensivo de podas.
Os corredores foram pensados para áreas de roçado, onde havia predominância de cultivos únicos. Assim, tornaram-se uma estratégia de transição agroecológica para comunidades com pouca familiaridade com o policultivo. Eles também podem anteceder a implantação de um SAF e funcionar de forma complementar ou como alternativa de roçados voltados para cultivos anuais, sempre promovendo a diversificação dos sistemas.
WR: Por que os corredores são chamados de “escola a céu aberto” de práticas agroecológicas?
ACLS: Os corredores agroecológicos promovem princípios básicos da agroecologia, como a diversificação da paisagem e a valorização da diversidade genética — tanto entre espécies quanto dentro de uma mesma espécie. Estimulam o resgate de cultivos tradicionais do território.

Durante sua condução, ocorrem práticas de manejo do solo, como o uso de matéria orgânica e adubação verde. Isso melhora a qualidade do solo, reduz a dependência de insumos externos e favorece a sanidade vegetal. As interações entre plantas — como o uso de espécies atrativas e repelentes — contribuem para o controle de pragas e doenças.
Além disso, os corredores são espaços de aprendizado coletivo. São implantados em mutirões, com rodas de conversa para tomada de decisões. Tornam-se uma verdadeira escola prática para a agroecologia, indo além da dimensão ecológica-produtiva, fortalecendo laços comunitários e a construção de autonomia.
WR: Como se dá, na prática, a construção de um corredor agroecológico? Que atores sociais costumam estar envolvidos no processo?
ACLS: Os corredores agroecológicos são, preferencialmente, implantados de forma coletiva, por meio de mutirões. Mas há etapas fundamentais antes disso, como a sensibilização da comunidade para a importância das sementes crioulas. Realiza-se um levantamento das culturas existentes no território e das sementes disponíveis. Quando não há sementes locais, podem ser inseridas sementes crioulas de outros territórios, observando-se sua adaptação.
Define-se a área de plantio, o espaçamento entre linhas (dependendo da experiência da família e da presença de maquinário) e o número de faixas. Com as plantas selecionadas, são feitos croquis participativos para definir a organização do plantio. O desenho do corredor é simétrico, começando e terminando da mesma forma.
É preciso também definir o objetivo principal do corredor: produção de alimentos, multiplicação de sementes para comercialização ou adubação verde. O preparo do solo com insumos orgânicos e a organização das sementes são fundamentais para o sucesso do mutirão de plantio.

Após a implantação, realiza-se uma roda de conversa para avaliar o processo e orientar os próximos passos. Nos ciclos seguintes, recomenda-se a rotação de culturas e o uso das sementes colhidas no próprio corredor, promovendo a adaptação genética e a agrobiodiversidade local.
WR: Que tipo de conhecimentos e práticas agrícolas são necessárias para consolidar esses corredores?
ACLS: A experiência com roçados é um bom ponto de partida, mas é importante estar aberto ao aprendizado sobre consórcios e rotação de culturas. As famílias vão lidar com plantas de diferentes hábitos de crescimento no mesmo espaço, o que exige atenção e manejo adequado. Áreas com vegetação nativa ao redor ajudam na saúde do sistema. A cobertura do solo pode ser feita com matéria orgânica trazida de áreas adjacentes, o que ajuda no controle de plantas espontâneas e na retenção de água e nutrientes.
No caso de sementes de milho, por exemplo, é importante isolar os corredores e as lavouras com variedades comerciais para evitar a contaminação genética. A seleção de sementes deve começar no campo, escolhendo as melhores plantas. Técnicas como a seleção massal, no caso do milho, contribuem para garantir a qualidade do material propagativo. As sementes devem ser armazenadas em locais secos, limpos e ventilados.
O registro do manejo e das observações durante o ciclo do corredor é fundamental para orientar decisões futuras. As práticas técnicas devem sempre dialogar com o conhecimento local.
WR: Quais os principais desafios enfrentados pelas comunidades que querem fortalecer ou implantar corredores agroecológicos?
ACLS: Os desafios variam conforme o grau de maturidade agroecológica da comunidade. Em agroecossistemas ainda dependentes de insumos externos, com poucas sementes disponíveis e baixo engajamento coletivo, as dificuldades são maiores. O acesso a sementes crioulas é um dos principais obstáculos. A articulação com movimentos sociais, como o Movimento Camponês Popular, pode facilitar o processo. O manejo de diferentes espécies em consórcio pode gerar insegurança inicial, mas com o tempo os benefícios se tornam evidentes.

A limpeza das áreas também é um desafio. Como não se usa herbicidas, é necessário controlar o banco de sementes de plantas espontâneas com práticas como cobertura morta, capinas manuais ou uso de roçadeiras. O armazenamento e a seleção das sementes exigem cuidado. Ter uma rede de apoio — entre agricultores e técnicos — ajuda a superar essas dificuldades, socializar experiências e buscar soluções conjuntas.
WR: Na sua visão, qual é o papel dos corredores agroecológicos na disputa de modelo agrícola e na construção de um projeto popular para o campo brasileiro?
ACLS: Os corredores agroecológicos representam, na prática, a possibilidade de produzir alimentos e sementes de forma autônoma, resiliente e sustentável. Ao diversificarem a paisagem e promoverem interações ecológicas, rompem com o modelo de monocultura que empobrece os ecossistemas.
A produção de sementes adaptadas fortalece a autonomia das famílias e pode gerar renda, seja por meio de trocas entre vizinhos ou de políticas públicas de comercialização. A produção de alimentos saudáveis também contribui para a segurança alimentar local.
Com esses princípios, os corredores agroecológicos tornam-se pilares de um projeto popular para o campo: criam sistemas produtivos mais justos, biodiversos e sustentáveis, fortalecendo a soberania dos povos do campo e a viabilidade de outra agricultura possível no Brasil.
O post ‘Corredores agroecológicos criam sistemas produtivos justos, sustentáveis e com soberania no campo’, defende pesquisadora apareceu primeiro em Brasil de Fato.