A tradição da mística da militância cubana se recusa a dizer que seus lutadores do povo morreram. Eles dizem que houve um desaparecimento físico. E talvez seja essa a melhor maneira de falar sobre José “Pepe” Mujica. Não como quem morreu, mas como quem segue entre nós — como presença, gesto e memória encarnada no corpo coletivo da militância latino-americana.
Mujica foi um homem de palavras simples, mãos calejadas e ética radical
É difícil escrever sobre a sua partida sem tropeçar na tentação da grandiosidade, mas Mujica não gostava de enfeites. Foi um homem de palavras simples, mãos calejadas e ética radical. Não buscava aplauso — buscava sentido. E talvez por isso mesmo sua vida tenha sido tão profundamente revolucionária: porque escolheu ser coerente, mesmo quando o mundo pedia espetáculo.
Como psicanalista, aprendi com Freud que a identificação é um processo fundante. É na relação com o outro que nos constituímos como sujeitos. Mas há identificações que nos alienam e outras que nos despertam.
A figura de Mujica, em sua dignidade imperturbável — na prisão, na presidência, no cotidiano com sua companheira ou no gesto simbólico de dirigir seu fusca —, produz em nós um tipo raro de identificação: aquela que nos convoca à ética, à escuta, à militância da existência.
Mujica não era ídolo. Era um espelho vivo de uma possibilidade de ser no mundo, sem abrir mão da dignidade. Ao contrário do líder narcísico que captura o desejo dos outros para alimentar o próprio ego, ele nos devolvia a pergunta: o que você vai fazer com a sua liberdade?
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Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud alertava para o risco de perder-se no coletivo. Mujica caminhava na contramão desse risco. Não desejava massas, mas encontros. Militava ao lado, não acima. Quando subiu no caminhão de som ao lado de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na última campanha contra Jair Bolsonaro (PL), em 2022, ele estava simples com seu boné e sua saúde já debilitada, como quem sabe da gravidade do momento histórico — e da urgência de sermos muitos.
A vida de Mujica foi um manifesto contra o consumismo, contra a desumanização e contra o esquecimento
Penso também no tempo. No tempo como tecido da vida, Mujica não acelerou o tempo, nem fugiu dele. Pediu privacidade para morrer. E, com isso, nos deu uma última lição: é possível viver até o fim, sem ceder à lógica da performance. Sua vida foi um manifesto contra o consumismo, contra a desumanização e contra o esquecimento. É possível habitar a finitude com serenidade, sem espetáculo, com amor e compromisso.
Celebrar sua vida é não deixar que ela seja reduzida ao obituário. É insistir na radicalidade do desejo, na confiança de que ser militante é, antes de tudo, não desistir da vida. Morrer, dizia ele em gestos, é deixar de desejar, deixar de gestar um projeto coletivo, e deixar de ser livre. E Mujica desejou, lutou e foi livre — até o fim.
Sua história está contada também no cinema, no belíssimo A noite que durou 12 anos. Mas há histórias que não cabem na tela ou em artigos de jornais. A de Mujica se escreve no coração de quem o viu, o ouviu, o leu — e, sobretudo, de quem continua. Porque ele partiu, sim. Mas, como dizem os cubanos, apenas fisicamente. Sua vida, essa, segue entre nós.
Que sua partida nos sirva menos como luto e mais como um chamado: que sejamos, também nós, militantes desta vida.
Júlia Louzada é psicanalista e pesquisadora vinculada ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente representa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Indicação: BRECHNER, Álvaro (Direção). A noite que durou 12 anos. [La noche de 12 años]. Uruguai: Tornasol Films, 2018. Filme (122 min). Drama/Biografia.