Crise climática, colapso urbano e ficção científica se encontram no espetáculo ‘Fuga’, em cartaz em SP

Inspirado no romance Parábola do Semeador, da escritora afro-americana Octavia Butler, o espetáculo Fuga parte de um cenário de colapso ambiental para refletir sobre desigualdade social, relações de trabalho e os impactos da crise climática nas grandes cidades. A montagem é uma criação da Frente Coletiva, formada por artistas de diferentes linguagens, e está em cartaz até o dia 3 de agosto no Sesc Belenzinho, em São Paulo.

No palco, três mulheres — uma educadora, uma segurança e uma bombeira — enfrentam as consequências de um temporal extremo que atinge a cidade. Presas dentro de um museu ficcional, elas representam tantos outros trabalhadores que se veem obrigados a se arriscar mesmo diante do caos climático. “Quando há crises de chuva na cidade de São Paulo, os trabalhadores têm pouca possibilidade de optar por não ir aos seus trabalhos”, afirma Jennifer Souza, que assina a dramaturgia com Beatriz Barros, em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato. “Nós queremos gerar incômodos, porque os incômodos geram reflexão”, explica.

Para Barros, o espetáculo também aponta para a conexão direta entre o colapso ambiental e o sistema econômico vigente. “Nós queríamos abordar o sistema para além de destroçar a natureza: como esse sistema está, ao mesmo tempo, destroçando o que nós vivemos e a vida dos trabalhadores”, diz a artista, que também dirige a peça. “Fuga percorre esse mundo que está colapsando e perpassa uma tragédia contemporânea”, resume.

Fuga está em cartaz no Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1000, Belém – SP), de quinta a sábado às 20h, e aos domingos às 18h30. Os ingressos variam de R$ 15 a R$ 50 e podem ser adquiridos pela internet, no site do Sesc SP, ou presencialmente em qualquer unidade do Sesc na cidade.

Leia a entrevista na íntegra:

Conexão BdF: O espetáculo é parte do romance Parábola do Semeador, da escritora afro-americana Octavia Butler, que é uma referência central do afrofuturismo, que se passa num mundo devastado pela crise climática. Por que escolher esse ponto de partida para dialogar com o contexto brasileiro de 2025?

Beatriz Barros: Esse projeto, nós pesquisamos ele faz dois anos e meio. É um processo de pesquisa teatral, onde nós, em conjunto com a Frente Coletiva, um coletivo de outras artistas de diferentes áreas, mas focado principalmente nas artes da cena, pesquisamos essa temática, esse debate sobre as questões ambientais ao longo de toda essa trajetória. O livro Parábola do Semeador, foi um ponto de partida para iniciar esse debate. A peça não é sobre Octavia Butler, mas ela permeia a filosofia do espetáculo.

A peça se passa, na realidade, dentro de um museu ficcional que nós inventamos, o Museu de Artes e Invenções. É um dia das trabalhadoras desse museu. Tem uma educadora, uma segurança da sala expositiva e uma bombeira que, dentro de um momento caótico, apocalíptico, por conta das chuvas na cidade de São Paulo, têm muita dificuldade de chegar no trabalho ou chegam e ficam presas ali. A peça vai se degringolando a partir dessa circunstância primária.

Jennifer Souza: Escolhemos falar sobre mudanças climáticas e ambientais porque é necessário falar sobre esse assunto, porque ele está acontecendo e nós, enquanto artistas, precisamos colocar isso no palco, colocar isso também antes do nosso trabalho, como pesquisa. Escolhemos a perspectiva dessas trabalhadoras porque a peça se passa em São Paulo e nós sabemos o quanto as chuvas castigam a cidade quando acontecem. E não só os centros, mas as periferias da cidade também.

Trazer essa trajetória dessas trabalhadoras que saem das suas casas, mesmo em um dia de crise climática muito grande, para chegar ao trabalho, fala muito sobre a perspectiva de como o trabalhador ainda está em função do seu trabalho e coloca, às vezes, a sua vida à frente disso para não perder o trabalho, para que possa ir até o trabalho. Então, pensamos em colocar isso nessa perspectiva do trabalhador paulistano porque quando há essas crises de chuva, os trabalhadores têm pouca possibilidade de optar por não ir aos seus trabalhos. E eu acho que isso está à frente, é importante falar sobre isso.

Escolhemos também a Octavia como esse ponto de partida porque a Parábola do Semeador é um livro que ela escreveu e que acontece em 2025, então não teria como nós não colocarmos isso. Octavia, como uma escritora de ficção científica, prevê o que aconteceria aqui de fato em 2025, por isso nós ficamos tão amarradas à Octavia, com essa ideia dela.

BB: Outra coisa, nesses longos estudos ao longo de todos esses anos, é essa relação direta entre a devastação que o ser humano está aplicando à Terra e o sistema econômico, sociológico em que nós vivemos, que é o capitalismo. Mas queríamos abordar o sistema para além de destroçar a natureza, como esse sistema está, ao mesmo tempo, destroçando o que nós vivemos e destroçando a vida dos trabalhadores.

O Fuga percorre esse mundo que está colapsando. É uma peça que perpassa uma tragédia contemporânea, sobre essas tragédias que vêm acontecendo. Infelizmente, cada vez mais essas tragédias climáticas estão presentes na nossa sociedade.

Na peça, vocês utilizam muitos sons da natureza. Essa composição criada por vocês foi intencional?

BB: Eu sou diretora e encenadora do espetáculo. Nós pensamos numa equipe de artistas que também são multidisciplinares. Quando nós convidamos Lua Oliveira para fazer a direção musical, tanto eu quanto Jennifer e todas as outras atrizes, o diretor, nós pensávamos muito nesse espaço imersivo. A peça se passa dentro de um museu e o público é convidado a entrar nesse museu e assistir a essas obras que passam ali, dentro dessa sala expositiva.

Há muitas obras contemporâneas que seguem essa estética da imersão. Se você vai à Bienal de Arte de São Paulo, há uma série de obras em que se adentra e se aprofunda. Isso é uma coisa que nós queríamos trazer, e Luana foi muito refinada, na realidade, na construção desse ambiente sonoro. O tempo todo o som é um estímulo, tanto para a plateia quanto para as intérpretes. Esses sons, tanto da natureza quanto dos colapsos que vão acontecendo, anunciam essa tragédia.

JS: Os sons urbanos também são muito presentes. Não só os sons da natureza, mas esse som da metrópole está o tempo inteiro intervindo na cena, no espectador. Quisemos trazer essa parte sensorial, que Beatriz conduziu muito bem na direção, que é trazer as técnicas para dentro do espetáculo como algo para provocar também o público. É um espetáculo provocativo pela sua temática e pela técnica, como ela é conduzida sonoramente, visualmente.

Temos videografia na peça. Nossa iluminação também é composta para ser sensorial. Temos essa parte imersiva do espetáculo, exatamente como se fosse uma obra de museu. É importante trazer esse incômodo, queremos gerar incômodos porque os incômodos geram reflexão. Quisemos esse espetáculo dessa maneira.

momento em que políticas ambientais estão sendo drasticamente flexibilizadas, como é o caso do PL da Devastação, qual é o papel do teatro na resistência e na denúncia socioambiental?

BB: Nós acreditamos, e não só nesse trabalho, que nossa feitura artística em todos os trabalhos é política. Creio que a Frente Coletiva, trocando há tantos anos artisticamente e eticamente com esses artistas, acredita no teatro enquanto um espaço de reflexão coletiva. É um momento de encontro de uma sociedade, uma comunidade, um público que não se conhece para refletir essas temáticas. O teatro, por si só, é uma arte que, em diferentes culturas, desde os tempos antigos, enquanto ferramenta coletiva, tem esse papel de reflexão crítica, social. Isso perpassa o trabalho de todos os artistas que estão presentes hoje.

Não é um espetáculo que tem uma temática fácil, alegre, mas o teatro tem esse espaço de reflexão, de questões extremamente urgentes, difíceis, complexas e emergenciais de serem elaboradas, não só no argumento, mas esteticamente falando. O teatro possibilita uma elaboração sensorial do mundo, que é fundamental para novas elaborações de quais são os outros mundos possíveis.

JS: O nosso fazer artístico é um fazer político. Nós pensamos arte, pensamos teatro politicamente: para quem estamos fazendo, por que estamos fazendo teatro. Então também é falar dessa perspectiva, do ponto de vista das pessoas que são as trabalhadoras, que saem das suas casas. É para essas pessoas que queremos comunicar, que também queremos tocar. Por isso fazemos teatro: para pensar essa ampliação do público, em como nós comunicamos através da nossa arte, como podemos levar temas tão sensíveis, emergenciais, para a maior parte da população, para que sejam tocadas por isso.

Esse é o papel do nosso fazer artístico neste momento. É como nós podemos contribuir: pensar em como colocamos nossa arte a serviço da sociedade, de prestar esse trabalho que é tão importante, que é apontar, colocar o público para refletir junto conosco. Então o que nós estamos fazendo aqui é político também: o nosso trabalho é colocar a arte a serviço da sociedade.

BB: E o quanto também a ausência do poder público em se responsabilizar pela qualidade de vida da população, não só uma população que sobrevive, mas uma população que tem direito à escola, à educação, à cultura, é fundamental de ser reivindicado a todo momento no nosso país. Creio que olhar para a perspectiva de como um desastre ambiental reflete na vida do sujeito, da personagem, de trabalhadoras. É muito importante para nós concretizarmos essas narrativas, expormos essas narrativas, e o público se reconhecer nessas perspectivas porque isso não está nada distante de nós.

É um momento histórico em que nós estamos passando por violências tão absurdas; não só nós, mas o planeta. É emergencial, em alguma instância, acharmos caminhos onde o público se engaje e fale: “Nossa, eu me vejo, isso pode acontecer comigo, com a minha filha, com os nossos vizinhos”. A água está subindo na cidade de São Paulo.

JS: Não só pode acontecer como já acontece. É trazer, aproximar a narrativa de quem é. Nós pensamos muito nisso quando colocamos o Fuga no mundo, quando pensamos em colocar o Fuga no mundo, no nosso fazer artístico.

Para ouvir e assistir

O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.

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