A Syngenta Proteção de Cultivos Ltda, umas das maiores multinacionais de agrotóxicos e sementes transgênicas do mundo, está sendo processada na Justiça do Trabalho de São Paulo por assédio sexual e moral, discriminação de gênero e dispensa discriminatória. A ex-funcionária terceirizada e autora da ação contra a gigante do agro pede uma indenização de R$ 2 milhões. A primeira audiência presencial do caso está agendada para 5 de agosto.
De acordo com as alegações iniciais apresentadas pela ex-funcionária no processo, os episódios de assédio teriam começado em 2021, dois anos depois da contratação de Sabrina* como trabalhadora terceirizada para atuar na Syngenta.
A ex-funcionária narra no processo que as investidas de um diretor, com “secadas”, comentários sobre sua aparência e suas roupas teriam chegado no auge durante um evento corporativo em Paulínia (SP), em que ele “a encurralou e fez elogios invasivos, olhando fixamente para sua boca e corpo”. Como seu superior hierárquico, tinha poder de decisão sobre a sua efetivação na empresa.
Sabrina afirma no processo que, em 15 de fevereiro de 2023, registrou uma denúncia anônima no “Help Line”, canal de compliance da Syngenta. “Até hoje estou esperando a resposta”, relatou ao Brasil de Fato. “A empresa não apenas ignorou a denúncia, como adotou uma postura de retaliação contra a reclamante”, alega a ex-funcionária na ação trabalhista, segundo a qual a Syngenta descumpriu a garantia de anonimato das queixas feitas aos órgãos de ouvidoria.
Na petição inicial do processo, o advogado da ex-funcionária afirma que o diretor, “ciente da denúncia, iniciou uma campanha de assédio moral, questionando injustificadamente o desempenho da reclamante e pressionando sua gestora imediata para promover sua demissão”. A defesa da funcionária argumenta também que a “ruptura de trabalho”, em maio de 2024, foi feita “de forma ilegal e arbitrária”.
“Eu não fui protegida por RH [Recursos Humanos], por compliance ou minha chefe”, narra a ex-funcionária. “Fui buscar um arquivo na intranet e de repente acho uma pasta do setor de compliance com várias denúncias feitas por outras mulheres. Aberta, para qualquer um ver. Eu acho que foi algum erro, mas ninguém se importou e está lá. Denúncias supostamente anônimas. Dava para ir lá e ver o nome delas, ver quem que elas estavam denunciando, tudo. Até em gravações de vídeo. Quando vi, pensei ‘não estou acreditando’”, relata à reportagem do Brasil de Fato.
Em contestação, a Syngenta nega a ocorrência dos assédios, a alegação de que sua denúncia anônima teria sido exposta e os fatos ligados à relação de trabalho. “O compliance se trata de área independente, específica e sigilosa, de investigação, de toda e qualquer denúncia que é inserida no canal da empresa”. Em outro trecho, sobre os supostos assédios, a empresa afirma que “a Reclamada não nega que o fato tenha ocorrido na circunstância narrada, ou seja, que o diretor tenha se dirigido a Reclamante e comentado a respeito de sua aparência e elogiando-a fora de contexto. Todavia, as atitudes jamais passaram para além de elogios e comentários”.
Em outro trecho da contestação, a defesa da Syngenta menciona a investigação interna da empresa, a partir da denúncia. “Após a conclusão das investigações, cumpre informar que o investigado […] recebeu como punição advertência direta de seu líder, frisa-se que não havia até então qualquer histórico anterior aos fatos narrados pela autora”.
Luiza Nagib Eluf, advogada e procuradora de Justiça aposentada, destaca que o valor de R$ 2 milhões em indenização é “acima da média das condenações trabalhistas”. Para ela, caso o pedido seja acatado, será uma sinalização para “romper com o padrão histórico de minimização desse tipo de violência na Justiça do Trabalho e criar precedentes para responsabilização efetiva de grandes corporações”.
A história de Sabrina na Syngenta
Formada em turismo, Sabrina foi a primeira pessoa na família a ter um diploma universitário. Foi admitida como trabalhadora terceirizada na Syngenta em janeiro de 2019, no início, de forma temporária, para substituir uma compradora de viagens e eventos. Segundo ela, seu bom desempenho fez com que permanecesse e, ao longo de quatro anos, cobriu a licença maternidade de cinco trabalhadoras de diferentes setores.
Apesar de contratada por outra empresa, a trabalhadora ressalta no processo que se reportava “100%” para a gestão da Syngenta e tinha as mesmas metas e deveres que outros trabalhadores da sua área. Desde a sua chegada, relata que havia um “senso comum de incômodo” das mulheres em relação a Márcio*, que já era seu superior e, em pouco tempo, foi promovido a diretor.
“Voltei aos meus 10 anos, quando fui abusada”
Sabrina afirmou para a reportagem que, em uma tarde de outubro de 2021, em uma reunião a portas fechadas para dar uma devolutiva sobre seu trabalho, “foi a primeira vez que ele veio com um assédio mais agressivo” Ao final da conversa elogiosa sobre o trabalho dela, Márcio teria dito que ia até tirar o crachá para falar uma última coisa. Segundo ela, o diretor afirmou que sempre a achou uma “mulher muito bonita” e que ficou “instigado” com uma conversa que escutou ela tendo com outra colega.
“Eu não esperava e travei. Me vi completamente suscetível porque ele sabia que eu queria ser efetivada. Senti que ele aproveitou isso para impor, de alguma forma, como uma moeda de troca, sabe? Me senti agredida. Voltei aos meus 10 anos, quando fui abusada sexualmente por um professor de matemática”, descreve Sabrina. “Eu respondi: ‘Acho que você está enganado’. Ele viu que eu não ia ceder e falou ‘Foi uma brincadeira’. Eu levantei, peguei meu computador, enfiei na mochila e fui embora às 15h”, diz.
Ao chegar em casa cedo e chorando, a trabalhadora contou a cena ao marido, que sugeriu que ela pedisse demissão. “Eu disse que não. Eu estava me sentindo produtiva, pela primeira vez saí da zona leste e estava ali, trabalhando em um cargo de executiva. Falei: ‘não vou abrir mão disso’”, explica. E assim seguiu, aguentando olhares e piadinhas, relatou.
De acordo com o relato de Sabrina, em janeiro de 2023 teria acontecido o episódio mais grave de assédio sexual, durante um evento no Hotel Vitória no interior paulista. Ao cruzar com Márcio em um espaço pequeno em frente aos elevadores, a executiva afirma ter sido abordada pelo diretor, que olhava fixamente para seu corpo e boca.
“Ele falou ‘Você está maravilhosa hoje, seu marido não tem ciúmes que você saia de casa assim?’ Eu respondi que meu marido é muito seguro. Ele disse: “Você sempre foi muito vaidosa, né?’. E de repente me vi numa posição em que eu estava tendo que dar explicação sobre o meu físico”, afirmou a ex-funcionária da Syngenta.
“E então ele veio para cima de mim, me colocou contra a parede, ficou a 10 cm do meu rosto. Acho que viu minha cara de pavor. Deu risada. Vinha vindo um garçom e então ele se afastou”, relata. Sabrina narra que, tremendo, foi tomar café e contou o ocorrido para duas colegas. Uma delas, estagiária de pouco mais de 20 anos, relatou que no dia anterior, ao comentar que devia ter levado roupa de ginástica para treinar de manhã, teria ouvido dele que “não tinha problema: pode treinar sem roupa que eu vou adorar”.
De acordo com o código penal, assédio sexual é o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.
Em outra ocasião, já efetivada na Syngenta, ao ouvir de Márcio que naquele dia deve ter ido “vestida assim” só para encontrar com ele, Sabrina decidiu que não passaria daquele dia: fez a denúncia supostamente anônima nos canais de compliance da empresa. Cerca de um mês depois, segundo ela, teria começado a perseguição. De acordo com seu relato, o diretor deixou de olhar na sua cara, sua chefe direta passou a cobrar entregas em prazos pouco realizáveis e afirmar ter recebido reclamações de clientes sem nomear quais problemas.
“A equipe inteira evitava falar comigo, mal me dava bom dia. Comecei a sentir minha energia drenada, meu psicológico abalado”, descreveu a ex-executiva para a reportagem. Ao longo deste processo, Sabrina se afastou duas vezes por burnout (distúrbio emocional causado pelo esgotamento ou estresse crônico no trabalho). Após a demissão, teve uma paralisia facial temporária, da qual ainda carrega sequelas.
“Na rede de avaliações de empresas Glassdor”, pontua a petição judicial, outras pessoas noticiam que a Syngenta “tem um canal de denúncias ‘anônimas’ que de anônimas não tem nada” e que é usual que ao prestarem queixas, empregados “ao invés de serem protegidos pela empresa, sejam ato sequente hostilizados pelos denunciados”. Assim, segue a petição judicial da ex-funcionária, a empresa “aparentemente não mantém sigilo sobre o denunciante, bem como, aparentemente, não investiga a situação, servindo, portanto, a denúncia somente para que a empresa, por seus prepostos, persiga o funcionário denunciante”.
No lugar de investigar as condutas relatadas, argumenta a petição do advogado Vitor Moya, a Syngenta “permitiu que o agressor continuasse ocupando posição de poder, perpetuando o ciclo de abuso e, pior, sabendo da denúncia iniciasse uma absurda perseguição contra a reclamante que culminou na sua demissão, após anos de humilhações e assédio moral e sexual. Esse comportamento não apenas viola as normas trabalhistas e penais, como também contraria os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados na Constituição Federal”.
O pedido de indenização de R$ 2 milhões se fundamenta no fato de que a alegada retaliação implementada pela gigante do agro depois da denúncia de assédio sexual e moral “agrava ainda mais” o episódio. “A empresa que negligencia ou reprime denúncias de assédio no ambiente de trabalho assume uma responsabilidade objetiva pelos danos causados”, argumenta a petição.
A resposta da Syngenta
Procurada pelo Brasil de Fato, a Syngenta declarou que “tem por medida não comentar casos judiciais ou apurações de compliance de forma específica”.
Em nota, a empresa diz que “repudia qualquer tipo de assédio e reforça esse posicionamento constantemente junto a todos os seus profissionais”. A companhia alega que “possui um canal específico para recebimento de relatos de situações inadequadas e as apurações são feitas de forma sigilosa, garantindo o anonimato e a não retaliação”.
A Syngenta diz, ainda, tratar com “seriedade, atenção e confidencialidade” os relatos recebidos nos canais de compliance e as investigações internas conduzidas a partir deles. Que culminam, segundo a multinacional, em ações e/ou tomadas de decisão específicas, definidas caso a caso”.
Por fim, a empresa cita fazer treinamentos contínuos para “promover um ambiente de trabalho saudável e seguro”, por meio de uma “campanha de compliance” intitulada “Assédio não se cultiva”.
“Virou um propósito”
Aos 47 anos, Sabrina não conseguiu se realocar no mercado de trabalho. “Eu estava há cinco anos e meio na Syngenta, mas durante quatro fui terceirizada. Eu vinha com uma avaliação melhor que a outra. Entrei na minha segunda faculdade, de técnica em agronomia, porque vislumbrava um futuro promissor ali dentro. Tudo isso me foi tomado”, diz. “Hoje estou devendo para o banco, tive que fazer uma transição de carreira, não fui efetivada em nenhuma outra empresa de novo”, elenca.
A ação movida contra a Syngenta se tornou, segundo ela, “um propósito”. “Além de ser mãe de duas meninas, uma de 8 anos e uma de 15, eu recebi mensagens de outras mulheres que doeram tanto quanto a minha história”, explica.
“Se a Justiça determinar que a empresa pague R$ 2 milhões, R$ 5 milhões, R$ 10 milhões, isso é dinheiro de pinga para a Syngenta. Mas vai fazer barulho no mercado corporativo”, avalia a ex-funcionária. É a reputação que está em jogo, considera. “Uma das coisas que a Syngenta pediu no processo é que eu apague dois posts sobre o caso que fiz no LinkedIn e no Instagram”, ilustra Sabrina.
Em um desses posts, Sabrina denuncia “o silêncio e a conivência” em favor de agressores. “A verdadeira força está em apoiar, acolher e lutar juntas por um ambiente onde nenhuma mulher precise temer denunciar e ser julgada por buscar sua dignidade”, defende.
*Nome alterado por direito a sigilo da fonte
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