‘Vida coerente e longe dos luxos diferenciou Mujica dos outros políticos do mundo’, diz jornalista uruguaio

José Alberto “Pepe” Mujica Cordano não viveu como a maioria dos presidentes. O ex-presidente do Uruguai, morto aos 89 anos nesta terça-feira (13), desprezou os privilégios e ostentações do cargo e seguiu com a mesma simplicidade de antes de chegar ao Palácio Suárez. Para o jornalista uruguaio Marcelo Aguilar, essa coerência de vida virou marca e símbolo do seu legado.

“Uma vida coerente com as suas ideias, com o seu pensamento, e uma vida longe dos luxos. Isso destacou Mujica em relação ao resto dos políticos do mundo, a grande maioria, inclusive as grandes lideranças mundiais”, afirma, em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.

Durante seu governo, Mujica se recusou a morar na residência oficial e manteve-se em sua chácara nos arredores de Montevidéu. “Quando ele se consolidou como candidato, chegaram a dizer que ele parecia mais um feirante do que um presidente. E foi justamente isso que destacou o Uruguai no mundo”, lembra Aguilar.

Além do exemplo pessoal, Mujica deixou como herança uma ferramenta política robusta. O Movimento de Participação Popular (MPP), que ajudou a fundar, se consolidou como a maior força interna da Frente Ampla, coalizão de esquerda que mudou a política uruguaia. O atual presidente do país, Yamandú Orsi, é do MPP e apadrinhado político de Mujica.

Mujica foi guerrilheiro tupamaro, preso por mais de uma década durante a ditadura militar uruguaia. Na prisão, sofreu com isolamento e torturas. Anos depois, transformou sua trajetória pessoal em exemplo de resistência e reconciliação, ajudando a costurar o maior processo de reformas progressistas da história recente do Uruguai.

Seu governo, entre 2010 e 2015, foi responsável por avanços como a legalização do aborto, o casamento igualitário e a regulação da cannabis, decisões que colocaram o país à frente do seu tempo. “Em um mundo cada vez mais individualista, pautado pelo lucro, o exemplo de Mujica vai na contramão da narrativa dominante do mundo atual”, avalia Aguilar.

“Ele deixa um um exemplo filosófico de um mundo mais solidário, mais companheiro”, conclui, ao compará-lo com o presidente argentino de extrema-direita Javier Milei, com ideais opostos aos que Mujica prezou em vida.

Um país em vigília

Apesar da comoção, a notícia da morte de Mujica não foi uma surpresa para o povo uruguaio. Desde que foi diagnosticado com câncer de esôfago e optou por cuidados paliativos, seu estado de saúde passou a ser assunto constante nas rodas políticas e na imprensa.

“O país já estava um pouco esperando essa notícia”, diz Aguilar. “Ele ainda aparecia em atividades políticas, mas já havia uma sensação de que em qualquer momento ele poderia vir a falecer.”

A despedida ocorre em meio a um processo eleitoral ocorrido neste domingo (11), o que deu ainda mais peso simbólico ao momento. Mesmo com sua saúde debilitada, Mujica seguia influente nas articulações e nos bastidores da Frente Ampla. “O papel de Mujica como conciliador, articulador e aproximador de opiniões divergentes era impressionante”, ressalta.

Entre polêmicas e conquistas

Nem tudo, porém, foram acertos. Mujica enfrentou resistência em projetos como o da mineração a céu aberto, que sofreu forte oposição popular e acabou não sendo levado adiante. Também teve embates com movimentos de direitos humanos sobre o tratamento dado à memória dos desaparecidos da ditadura. “Ele tinha uma leitura muito própria da história recente do país, marcada por sua vivência na luta armada e na prisão”, explica Aguilar.

Ainda assim, seu papel na consolidação democrática do Uruguai é incontestável. “O Mujica deixa um legado de progresso social, de avanço e de conquista de direitos, ao mesmo tempo em que deixa um fortalecimento da democracia, porque antes do Mujica, antes da Frente Ampla sempre teva essa ameaça.”

Lula e Mujica: uma amizade de luta

A trajetória de Mujica se conecta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Fundadores de partidos de esquerda, ambos foram presos por regimes autoritários e, depois, chegaram à presidência. Mais do que aliados políticos, cultivaram uma amizade marcada por respeito mútuo e afeto sincero.

“A relação entre eles era de profunda amizade e relacionamento permanente. Acredito que eles ajudaram a fortalecer muito as relações entre o Brasil e o Uruguai”, avalia Aguilar. Meses antes da partida de Mujica, Lula visitou o amigo na chácara onde o uruguaio viveu seus últimos dias com sua esposa, a ex-vice-presidente Lucía Topolansky. “Esse momento é bastante ilustrativo do que foi essa relação”, destaca o jornalista.

Para ele, ambos os líderes se mostraram, nas suas trajetórias, apoiadores dos órgãos de articulação continental e tiveram como horizonte a integração latino-americana, a consolidação do Mercosul e das comunidades econômicas da região. “Sempre tiveram isso como como um objetivo, tanto a curto e quanto a longo prazo.”

Para ouvir e assistir

O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.

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