
Clínica foi interditada
Ascom/ PC-AL
Um ambiente que deveria oferecer tratamento e acolhimento para pessoas em vulnerabilidade, acabou se transformando em palco de dor e sofrimento. Essa é a realidade narrada por ex-pacientes de uma clínica, chamada de comunidade terapêutica, em Marechal Deodoro, região metropolitana de Maceió.
O local foi interditado pela Polícia Civil nesta segunda-feira (25) e é investigado pela morte da esteticista Cláudia Pollyanne Farias de Sant’Anna, de 41 anos, além de denúncias de maus-tratos, cárcere privado, abusos sexuais e até estelionato. Uma vistoria foi feita pela comissão de delegadas que investiga o caso, além da Polícia Científica e da Vigilância Sanitária.
“A gente percebe que o ambiente é muito pequeno, é insalubre e não tinha como 20 pessoas viverem aqui com o mínimo de dignidade de sanidade mental e física”, disse a delegada Ana Luiza Nogueira.
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No local foram encontradas manchas na parede de um dos quartos e ficou comprovado que se tratava de marcas de sangue. “Esse cômodo era chamado pelos internos de quarto da tortura, onde havia uma reiteração de condutas delitivas”, relatou a delegada.
Na casa ligada aos proprietários, presos durante as investigações, a polícia encontrou um facão, uma arma de choque e medicamentos de uso controlado. De acordo com a delegada, há indícios de que os objetos eram usados para torturar os internos.
A maioria dos Boletins de Ocorrência foi registrada após a morte de Cláudia Pollyanne vir à tona. A Polícia Civil reforça a importância de fazer a denúncia, que pode ser de forma presencial ou mesmo através da Delegacia Virtual. Os relatos serão incluídos no inquérito após a vítima ir até a delegacia com o BO registrado.
O casal de proprietários, Maurício Anchieta e Jéssica da Conceição Vilela, já está preso. Ele foi capturado em um motel, após ser considerado foragido, e ela responde também a acusações de abusos sexuais contra uma adolescente internada. Ambos negam as acusações, e a defesa afirma que Jéssica teria apenas emprestado o nome para abertura da clínica.
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Rotina de abusos
Em um dos boletins, um homem descreveu o período de internação como “um esquema de tortura”. No documento, ele conta que permaneceu na clínica entre dezembro de 2024 e fevereiro de 2025. Segundo ele, os internos eram dopados diariamente, sofriam ameaças constantes e eram obrigados a se submeter a castigos físicos.
O relato cita ainda que os banhos eram cronometrados em apenas dois minutos, a alimentação era “como lavagem” e qualquer tentativa de comunicação com a família era controlada. Ele afirmou que apanhou do proprietário e chegou a ter três costelas quebradas.
“Ao acordar, precisávamos correr ao redor da piscina, em jejum e sob efeito de medicamentos. Depois vinham exercícios forçados sob o sol, como polichinelos, uma verdadeira tortura diária”, disse o denunciante.
Segundo ele, homens e mulheres viviam juntos, todos dopados, sem acompanhamento médico. A permanência, que começou como voluntária, se tornou forçada. “Era cárcere privado disfarçado de tratamento”, acrescentou. Ele conseguiu sair do local após uma foto dele chegar até o irmão, que percebeu que não estava bem e foi retirado do lugar pela família.
Abuso sexual
O Boletim de Ocorrência de uma ex-paciente também relata possíveis crimes praticados na clínica. Ela conta que em 2023, após uma crise, foi internada na clínica de forma não voluntária, sendo obrigada a assinar uma declaração dizendo o contrário. Segundo ela, logo nos primeiros foi orientada pelo dono da clínica, de forma ameaçadora, a não falar com ninguém, sob os argumentos de que a achariam louca e que ninguém acreditaria em seus relatos.
Ao contestar as ordens, ela foi agredida fisicamente, ficou amarrada durante três horas e obrigada a tomar uma medicação. As agressões continuaram nos dias que se seguiram, sempre com tapas, empurrões e enforcamento.
“Parei de ir de encontro das ordens para evitar sofrer as mais agressões. Ele acrescentava outras medicações ao tratamento e eu era agredia sexualmente, várias vezes. Não podia receber visitas dos meus pais ou amigos”, disse a ex-paciente que relatou ainda sofrer violência psicológica por parte da esposa do dono.
Mata-leão e soco nas costelas
Um ex-alcoolotra ficou internado no local por oito meses. Ele disse que conseguiu rejeitar a medicação oferecida e por isso, não foi dopado como os outros pacientes. Quando completou seis meses de internação, tentou deixar a clínica, mas foi impedido e sofreu a primeira agressão.
“Fui arrastado para o quarto, levando joelhadas, sendo xingado. Quando cheguei, levei um soco nas costelas e quase desmaie. Na maioria das vezes, as agressões aconteciam sem motivos. Presenciei algumas como um companheiro que teve as unhas cortadas com alicate, apertando, e deixou os dedos dele todos roxos. Ele ficou cinco dias sem comer porque não conseguia mexer as mãos”, relatou.
Isso teria acontecido, segundo o ex-paciente, em um período em que todos apresentaram coceiras. Uma enfermeira chegou a levar remédios escondidos, mas o dono cortava as unhas para que ninguém pudesse se coçar.
Ainda segundo a vítima, as mulheres eram agredidas pela esposa do dono da clínica. Quando os pacientes ligavam para a família, o casal ficava do lado, monitorando as conversas e eles eram obrigados a fingir que estava tudo bem, conseguindo assim estender a estadia dos pacientes na clínica.
Estelionato e propaganda enganosa
As denúncias não param nos maus-tratos. Uma mãe relatou ter sido vítima de propaganda enganosa ao procurar vaga para a filha. Segundo o boletim de ocorrência, o dono da clínica prometeu estrutura médica e transporte especializado até o local, mas apareceu sozinho em um carro comum para buscar a paciente em casa, e ofereceu remédios sem receita.
Ao chegar no local, a mãe percebeu que não havia equipe médica, o ambiente era precário e desistiu da internação. “Fui enganada e me sinto lesada”, declarou.
Hematomas e morte suspeita
O caso da clínica ganhou repercussão após a morte de Cláudia Pollyanne, no dia 9 de agosto. Familiares relataram que a vítima apresentava hematomas pelo corpo, inclusive um grande no rosto. O dono da clínica disse que ela teria tido um surto de abstinência e foi levada à UPA, mas médicos informaram que ela já estava morta há pelo menos quatro horas quando deu entrada.
Nesta segunda-feira (26) o Instituto Médico Legal divulgou o laudo que aponta a causa da morte da esteticista. Segundo os legistas ela faleceu por insuficiência respiratória decorrente de agressões e intoxicação por medicamentos.
No exame cadavérico, o perito médico-legista Lucas Emanuel identificou lesões em diferentes regiões do corpo da esteticista, em estágios variados, o que indica episódios anteriores de agressão.
“Diante dos achados, o laudo pericial conclui que a causa terminal do óbito foi insuficiência respiratória aguda, com participação contributiva de traumatismos cranianos e intoxicação medicamentosa, no contexto de episódios reiterados de violência”, afirmou o perito.
O laudo do exame toxicológico apontou vários medicamentos presentes no corpo da esteticista, como antidepressivos, antiepilépticos, antipsicóticos, benzodiazepínicos e anti-histamínicos.
“Essa combinação de medicamentos pode levar a coma profundo, parada respiratória, arritmias fatais, convulsões e morte, principalmente se houver abuso, erro de dose ou interação não monitorada”, disse o chefe do Laboratório Forense, o perito criminal Thalmanny Goulart.
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