Em 1º de setembro de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro, na época sem partido, sancionava com vetos a lei que revogava a Lei de Segurança Nacional e definia os crimes contra a democracia. O texto trazia ainda as assinaturas dos então ministros Anderson Torres (Justiça), Walter Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Nesta terça-feira (2), exatamente quatro anos e um dia depois da assinatura, todas as pessoas citadas neste parágrafo, à exceção de Damares, estarão no banco dos réus para o primeiro julgamento da história do Brasil por tentativa de golpe de Estado.
Bolsonaro, Braga Netto, Torres e Augusto Heleno são quatro dos oito integrantes do chamado “núcleo 1” da trama golpista, o primeiro grupo a ir a julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Além dos quatro, começam a ser julgados, também, Alexandre Ramagem (ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Abin, e hoje deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro); Almir Garnier Santos (ex-comandante da Marinha); Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro); e Paulo Sérgio Nogueira (que, assim como Braga Netto, também foi ministro da Defesa).
Não é exagero dizer que o julgamento é histórico. Em um país com um largo histórico de quarteladas — foram pelo menos nove em pouco mais de 200 anos — e que ainda vive sob as sombras da ditadura encerrada em 1985, pela primeira vez, militares serão julgados pela Justiça comum pela tentativa de implosão da jovem e frágil democracia brasileira. Dois oito integrantes do “núcleo 1”, só Ramagem e Torres não são militares de carreira (ambos são delegados da Polícia Federal).
Os homens que sentam agora ao banco dos réus são integrantes do que a Procuradoria-Geral da República (PGR) classificou como o núcleo crucial da organização criminosa que tentou, segundo a denúncia, virar a mesa após as eleições de 2022 e garantir a permanência de Bolsonaro no poder. Eles são acusados de cinco crimes: organização criminosa armada; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; deterioração de patrimônio tombado; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e, por fim, golpe de Estado. Os dois últimos constam da Lei 14.197, aquela assinada por Bolsonaro, Torres, Braga Netto e Augusto Heleno em 1º de setembro de 2021.
Se somadas as penas máximas previstas para cada um dos crimes, os acusados podem ser condenados a mais de 40 anos de prisão. Mesmo bolsonaristas bastante otimistas dão a condenação como favas contadas, e esperam que haja ao menos algum tipo de divergência nas dosimetrias ou mesmo na absolvição em algum dos crimes, especialmente por parte do ministro Luiz Fux. Não há muita esperança da extrema direita nos demais integrantes da Primeira Turma do STF, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino.
Segundo o Supremo, mais de 3 mil pessoas se inscreveram para acompanhar o julgamento presencialmente. Apenas os 1.200 primeiros que fizeram as solicitações terão autorização para entrar no Palácio do STF (um dos alvos da fúria golpista de 8 de janeiro de 2023). Serão 150 pessoas a cada uma das oito sessões. As duas primeiras acontecem nesta terça-feira, com início às 9h e às 14h. A terceira sessão acontece na quarta-feira (3), às 9h. O julgamento será retomado na próxima terça-feira (9), com uma sessão; outras duas na quarta-feira (10) e as duas derradeiras na sexta-feira (12).
Os acusados
O primeiro a ter a apresentação da defesa será Mauro Cid, que tem papel fundamental no processo, dado que assinou acordo de delação premiada. Filho de um militar (o pai também se chama Mauro Cid), foi figura próxima de Jair Bolsonaro durante os quatro anos de governo. Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), por onde o chefe passou décadas antes, foi instrutor da própria academia e teve destaque em cursos importantes da caserna. No governo, era uma espécie de “faz-tudo” de Bolsonaro. Cuidava de detalhes de agenda, intermediava contatos com autoridades, tinha acesso a informações íntimas e acompanhava o então presidente em viagens pelo Brasil e no exterior. Foi preso pela primeira vez em 2023, durante operação da PF que investigava fraudes em cartões de vacinação da Covid-19.
Na sequência, falarão os advogados de Alexandre Ramagem. Entre os oito acusados, ele é o único que responde a três crimes, e não cinco, já que teve suspensas as acusações de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado (relativas ao 8 de janeiro), já que ele já era deputado diplomado à época, e, portanto, tinha imunidade parlamentar. Formado em Direito, ele é policial federal desde 2005. Próximo da família Bolsonaro, foi escolhido a dedo para chefiar a Abin. Antes, chegou a ser nomeado para chefiar a PF, mas teve a nomeação suspensa pelo Supremo, que levou em conta denúncia de Sergio Moro, que pediu demissão do Ministério da Justiça após o então presidente intervir no comando da PF.
A lista de advogados a se manifestar seguirá, então, a ordem alfabética. Almir Garnier Santos será o terceiro a ter a defesa apresentada. Segundo a delação de Cid, Garnier era, entre os chefes das Forças Armadas, o mais simpático à ideia do golpe. O militar passou pelo Ministério da Defesa, como auxiliar, durante o governo de Dilma Rousseff. Integra os quadros da Marinha desde a década de 1970, tendo passado pela Escola Técnica e pela Escola Naval, ambas ligadas à Força. Assumiu a chefia da Marinha em 2021 e ficou até o fim do governo Bolsonaro. Se recusou a comparecer à posse do sucessor, Marcos Sampaio Olsen, indicado por Lula.
As manifestações seguintes serão as da defesa de Anderson Torres. Entre 2019 e 2021, foi secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública quando o “terrivelmente evangélico” André Mendonça deixou o cargo para assumir uma cadeira no STF. Como delegado da PF, Torres trabalhou em investigações contra o crime organizado em Roraima e em ações de inteligência contra o tráfico internacional de drogas.
Augusto Heleno, cujos advogados vão apresentar defesa a seguir, foi um dos primeiros generais a abraçarem a ideia de Bolsonaro na presidência da República. Os dois se conheciam desde a década de 1970, quando foram contemporâneos na Aman. Ganhou destaque ao cantarolar “Se gritar ‘pega Centrão’, não fica um meu irmão”, ainda durante a campanha, em 2018. Anos depois, cerraria fileiras com os deputados do grupo. No Exército, foi instrutor da Aman; ajudante de ordens do (hoje extinto) Ministério do Exército; comandou a Escola Preparatória de Cadetes (Espcex); foi adido militar na França e na Bélgica e comandante da Força Militar da Missão da ONU no Haiti. Foi promovido a general em 2007 e foi Comandante Militar da Amazônia e, desde 2011, é militar da reserva.
A grande estrela do julgamento é Jair Bolsonaro, que verá seus advogados falarem em seguida. Nascido no interior paulista, entrou para o Exército nos anos 1970, quando foi aluno da Aman. Não durou tantos anos na caserna. Foi para a reserva na década seguinte, quando chegou a ser condenado (e posteriormente absolvido, após recurso) pela elaboração de um suposto plano para explodir bombas em quartéis do Rio de Janeiro. Entrou, então, para a política. Primeiro como vereador do Rio, em 1989. Em 1991 assumiu o primeiro mandato como deputado federal, e seguiu na Câmara por sete mandatos. Deputado do chamado baixo clero, ganhou notoriedade pelo discurso inflamado e chegou à principal cadeira do país após vencer as eleições de 2018 com um discurso de antipolítica, mesmo tendo passado 28 anos como deputado — e criado uma verdadeira dinastia, com (na época) três filhos políticos (hoje são quatro). Está em prisão domiciliar desde 4 de agosto, por descumprimento de medidas cautelares impostas pela Justiça.
Paulo Sérgio Nogueira é o sétimo acusado a ter os advogados ouvidos pelo Supremo. No Exército, chefiou o Comando Militar da Amazônia e foi promovido a general em 2014, tendo passado por outras posições de comando na Força. Em 2021, foi promovido por Bolsonaro a comandante do Exército e, no ano seguinte, assumiu o Ministério da Defesa — foi o último a ocupar o cargo no governo Bolsonaro. Em depoimento na ação do golpe, chegou a afirmar que alertou Bolsonaro sobre a gravidade das discussões sobre o assunto dentro do governo. Ele é acusado de endossar críticas ao sistema eleitoral e instigar a tentativa de golpe.
O último nome da lista é o de Walter Braga Netto. Outro militar de alta patente a abraçar o projeto bolsonarista, foi ministro da Casa Civil e da Defesa. Em 2022, concorreu a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, derrotada por Lula. Está preso desde dezembro de 2024, acusado pela PF de atrapalhar as investigações sobre o processo de golpe. Para a PGR, é um dos mentores da intentona bolsonarista. A PF entende que ele teve participação relevante nos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023, além de ter coordenado ações ilícitas de outros militares, nomeadamente os “kids pretos”.
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