A mineração de lítio e o controle empresarial sobre os territórios do Jequitinhonha

A primeira vez que ouvi falar de gestão empresarial do “social” foi em setembro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro, durante um seminário internacional sobre capitalismo extrativo, conflitos territoriais e direitos das populações atingidas por grandes projetos.

A síntese do debate foi a constatação de que, no início dos anos 2000, as corporações transnacionais do setor extrativo passaram a desenvolver com maior fôlego, em especial no sul global, ações sociais que visam antecipar os possíveis riscos que movimentos sociais possam apresentar aos seus negócios.

As ações são feitas com um discurso renovado (“responsável” social e ambientalmente) e práticas de filantropia nos territórios, visando disputar ideologicamente as comunidades vizinhas dos empreendimentos corporativos e diminuir a possibilidade do surgimento de críticas à presença das empresas.

Trata-se da tentativa de cativar uma relação positiva com as comunidades locais por meio de projetos mitigatórios, chamados de responsabilidade social empresarial, executados por organizações do terceiro setor ou pelo Estado e financiados pelas corporações.

Vale do Jequitinhonha

Resgato esta lembrança pois ela esteve muito viva em minha memória nos últimos dias, quando visitei os municípios de Araçuaí e Itinga, no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, e percebi com muita facilidade o quão nocivo pode ser o domínio territorial de uma mineradora sobre os territórios onde ela atua.

Este caso é ainda mais emblemático por se tratar da disputa pelo lítio, um mineral raro, concentrado e apontado como central para o processo de transição energética (mineral essencial na produção de baterias elétricas para carros e eletrônicos, por exemplo).

O que torna o Vale do Jequitinhonha um território único e faz crescerem os investimentos das mineradoras em ações sociais para legitimar sua presença junto à população, criando uma relação de dependência e subalternidade. Afinal, as empresas precisam estar ali, já que não encontram lítio em qualquer lugar!

A Sigma Lithium e a gestão empresarial do “social”

Nos dias 9 e 10 de abril, respectivamente em Itinga e Araçuaí, a mineradora Sigma Lithium S.A realizou duas audiências públicas, a pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), cujo objeto era debater com a população os impactos que o Projeto Grota do Cirilo – Pegmatito Xuxa vem causando as famílias que vivem nas imediações da mina de lítio.

O pedido de audiência ocorreu em meio ao processo de licenciamento ambiental que visa ampliar o projeto e licenciar uma pilha de rejeito/estéril e estruturas de abastecimento.

Para subsidiar as discussões, durante as audiências públicas o MPMG apresentou um estudo que fez sobre o caso, mapeando e visitando 119 residências, aplicando 82 questionários e visitando as estruturas da empresa junto com a Polícia Militar de Meio Ambiente.

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A pesquisa identificou diversos impactos provocados pela Sigma aos moradores das comunidades Ponte do Piauí, Piauí Poço Dantas, Taquaral Seco e Santa Luzia, como poluição do ar, ruídos e vibrações provocados por explosões e associadas a rachaduras em casas e comprometimento de atividades econômicas, como o garimpo artesanal. Porém, infelizmente estes impactos não se tornaram o objeto real da audiência.

Ao invés de ser espaço de busca de soluções para os impactos que a mina vem gerando às pessoas que vivem em suas imediações, as duas audiências públicas foram transformadas em palanques onde a mineradora apresentou suas ações sociais desenvolvidas em Itinga e Araçuaí como uma espécie de salvo-conduto para não promover mudanças em sua atuação e ampliar suas operações.

Trabalhadores diretos e terceirizados da mineradora, bem como beneficiários das ações sociais, ambientais, culturais e econômicas desenvolvidas pela Sigma na região foram mobilizados pela empresa, de forma organizada, e fizeram inúmeras intervenções nas duas audiências públicas, fugindo completamente de seu objeto e elencando a quão “benéfica” a empresa tem sido para a região. Um claro recado de que ela pode seguir operando e expandindo seu empreendimento mesmo que para tal siga violando diversos direitos.

A Sigma Lithium vem desenvolvendo uma clara estratégia de controle territorial, ou, como mencionado no começo deste artigo, de gestão do “social”. O objetivo é se antecipar à levantes e impedir qualquer tipo de organização popular que aponte para a constatação de como o lítio vem sendo roubado do Vale do Jequitinhonha em troca de poucos projetos mitigatórios.

Como dito por uma moradora de uma das comunidades atingidas pela Sigma em Itinga: “O lítio é nosso, não da empresa. Portanto, ela precisa de nós e não o contrário!”.

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Defesa da Chapada do Lagoão

Ainda que a Sigma busque a narrativa de que as histórias de Itinga e Araçuaí começam com sua chegada e de que os moradores de ambos os municípios estão em total acordo não só com ela, mas com a forma de atuação das demais mineradoras que visam explorar lítio na região, a resistência ainda segue muito viva e tem se manifestado no último período sobretudo em torno da luta em defesa da Chapada do Lagoão.

As últimas mobilizações populares em Araçuaí em defesa desta importante Área de Preservação Ambiental (APA), muito visada pela mineração de lítio, evidenciam o sentimento de uma população que entende a importância das reservas minerais para o desenvolvimento da região, mas que de forma alguma querem entregar esta riqueza para o capital estrangeiro em troca de migalhas.

Marcelo Bruno Ribeiro Barbosa é engenheiro agrônomo (UNIFESSPA), mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) e militante do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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