Vitória do Vietnã sobre EUA é fruto de décadas de resistência anterior; leia trecho de livro clássico sobre a guerra

Nesta quarta-feira (30) o Vietnã celebra 50 anos da unificação do país após a vitória do norte socialista sobre as tropas do sul, apoiadas pelos Estados Unidos. Meio século antes, os tanques da Frente de Libertação Nacional do Vietnã, o Viet Cong, cruzaram as ruas de Saigon e entraram no palácio presidencial, derrotando definitivamente o governo do Vietnã do Sul e desferindo um severo golpe moral e militar nos Estados Unidos.

“Estou orgulhoso de ter contribuído para a libertação do sul”, disse à AFP Tran Van Truong, um veterano de 75 anos em uniforme militar que viajou da capital Hanói, no norte, que participou das celebrações em Saigon.

A guerra vencida pelos vietnamitas, após mais de 20 anos de envolvimento dos Estados Unidos, foi o resultado da ampla experiência da população em técnicas de resistência, que derrotaram o exército que era, então, o mais poderoso do mundo. Para marcar a data, o Brasil de Fato traz abaixo trecho do livro A Guerrilha Vista Por Dentro, do jornalista Wilfred G. Burchett, considerado um dos principais livros reportagens sobre conflitos, ao lado de clássicos como Dez Dias que Abalaram o Mundo. de John Reed, sobre a Revolução Russa em 1917. No Brasil, ele é publicado pela Expressão Popular.

A resistência histórica do povo vietnamita

A resistência é, praticamente, um componente de identidade do Vietnã. As inúmeras invasões estrangeiras ao longo de quatro mil anos – chineses, mongóis e, finalmente, franceses –, assim como sucessivas guerras civis e disputas dinásticas forjaram, em vez da submissão, uma consciência nacional e uma experiência de luta popular, pois enraizada e difundida por entre todo o povo.

Prova disto é que a ocupação francesa, iniciada em 1858, precisou de trinta anos para consolidar seu domínio, enfrentando ainda outros quinze anos de rebeliões, greves e manifestações anticoloniais. A Indochina francesa – formada pelo Vietnã, o Camboja e depois o Laos – era destinada para a exportação de matérias-primas, principalmente o arroz, a borracha e minérios. Nas fábricas, nas minas e seringais, se formou uma classe proletária significativa, enquanto, ao mesmo tempo, a presença francesa agravava a questão agrária e a pobreza no campo ao garantir a manutenção de relações feudais e ao distribuir as terras entre as elites colaboracionistas.

O Partido Comunista da Indochina (PCI), fundado em 1930, foi formado justamente com bases entre operários, camponeses e a classe média baixa. Enraizado nos movimentos populares, o PCI conseguirá combinar um marxismo didático com a criatividade das massas, construindo uma estratégia de luta anti-imperialista e antifeudal, que implicava reconquistar a independência nacional e promover uma ampla distribuição de terras aos camponeses.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, decorrente do conflito entre o eixo – constituído pelas forças nazifascistas capitaneadas pela Alemanha – e os aliados – que reunia num primeiro momento França e Reino Unido, e, posteriormente, Estados Unidos e União Soviética – levará ao enfraquecimento do domínio francês no Vietnã, tanto pelo avanço de uma nova ameaça imperialista com a invasão japonesa nos outros países asiáticos quanto pela França ter sido derrotada e ocupada pelos nazistas alemães. Assim, além de anticolonial, ali a luta torna-se também antifascista. 

Em 1941, o PCI junta-se ao Viet Quoc (Partido Nacionalista) para fundar a Liga pela Independência do Vietnã (Vietnã Doc Lap Dong Minh), popularmente conhecido pela abreviatura Viet Minh, uma frente anti-imperialista e com grande penetração popular e regional, que se tornará o instrumento político fundamental para a libertação do país, defendendo a independência nacional combinada com uma revolução social. Uma das principais características do Viet Minh é a organização, sobretudo da população rural, para a resistência contra a ofensiva militar que consistia na preparação de autodefesa e a construção de uma administração paralela. Essa tática será a base de toda a luta do povo vietnamita até o triunfo da revolução em 1975.

O ano de 1945 traz várias mudanças na conjuntura, com o fim da Segunda Guerra Mundial. No que toca ao Vietnã, a ofensiva japonesa impõe uma derrota aos franceses; há uma deserção em massa dos soldados, que abandonam seus postos e suas armas e ficam à disposição para as forças do Viet Minh. Entretanto, o ataque dos EUA com bombas atômicas a Hiroshima e Nagasaki sela a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e possibilita à França restaurar seu domínio sobre o Vietnã. Porém, a invasão japonesa havia destruído as estruturas coloniais francesas e, agora, os colonizadores tinham diante de si uma poderosa organização de resistência popular, que cria um governo provisório e funda, neste ano, a República Democrática do Vietnã. O conflito entre essas duas forças trava-se até 1954, a chamada Primeira Guerra da Indochina, que termina com uma nova derrota dos franceses e com a assinatura dos Acordos de Genebra.

A principal luta travada contra os franceses se dá no campo militar, e o Viet Minh se utiliza da tática das insurreições locais que consiste em organizar a autodefesa das aldeias e a guerrilha para combater o inimigo; juntamente com isso iniciava o trabalho de criação de comitês populares revolucionários entre os camponeses. A vitória da Revolução Chinesa em 1949 será bastante importante para o avanço da luta vietnamita, rompendo o isolamento de setores da resistência, sobretudo os comunistas. 

O Viet Minh impõe derrotas militares aos franceses a partir da sua tática de guerrilha, e inicia a criação de zonas livres em que consolidam reformas como a jornada de trabalho de 8 horas, o confisco das terras de colonialistas e colaboradores e distribuição para os camponeses, a promoção de uma gigantesca campanha de alfabetização, que contemplou dois milhões de pessoas em um ano, e a instituição de novas formas de participação popular. Além disso, sua luta ganha uma nova qualidade ao unificar a resistência armada no Exército de Libertação.

Em 1954, ocorre a batalha decisiva de Dien Bien Phu, o golpe de misericórdia nas pretensões da França. Mais de duzentos mil trabalhadores foram mobilizados na estratégia de isolar as tropas francesas na base aérea desta localidade. Após 55 dias de combate, 112 mil soldados franceses foram derrotados e renderam-se ao povo vietnamita. O golpe final fora planejado para acontecer exatamente na véspera da realização da Conferência de Genebra, quando as Nações Unidas discutiriam a situação da Indochina. Assim, quando a Conferência foi iniciada, o Vietnã já era uma república livre e a independência, um fato consumado.

A Conferência de Genebra terminou por reconhecer a independência tanto do Vietnã quanto do Laos e do Camboja. Porém, o país foi divido em dois: o Vietnã do Sul e do Norte, cortado pelo paralelo 17. Ao norte, a jovem república independente e socialista. No sul, um governo liderado pelo rei Bao Dai, herdeiro da dinastia Nguyen. Era previsto ainda que em dois anos seriam realizadas eleições gerais e a unificação dos dois territórios.

Porém, a Segunda Guerra Mundial legou ainda ao mundo um novo contexto bipolar, dividido entre o alinhamento a duas grandes potências políticas, militares e econômicas, os Estados Unidos, à frente dos países capitalistas, e a União Soviética, liderando o bloco socialista. A Guerra Fria, tensão permanente entre os dois blocos e potências, determinou as disputas geopolíticas do pós-guerra.

Neste contexto, a independência do Vietnã significava um importante avanço do socialismo entre os países asiáticos, somando-se à China e Coreia do Norte, e ameaçando os interesses do capitalismo neste continente. Por isso, os Estados Unidos, que já eram responsáveis, em 1954, por quase 80% do financiamento das forças francesas durante a Primeira Guerra da Indochina, não apenas se recusaram a assinar os acordos da Conferência de Genebra, como apoiaram militar e economicamente a ascensão ao governo do Vietnã do Sul do ditador Ngo Dinh Diem, o latifundiário que derrubara o rei Bao Dai em 1955. O suporte estadunidense servia para combater tanto a república democrática do Vietnã do Norte quanto a resistência nacionalista, formada pelos soldados apelidados pela mídia estadunidense de “Viet Cong” (diminuitivo para “vietnamita comunista”). Entre 1957 e 1962, o número de oficiais e assessores estadunidenses treinando e armando o governo diemista saltará de 760 para 12 mil.

Ainda que a revolução vietnamita seja efetivamente resultado da ação e da participação das massas, é preciso citar a contribuição de dois dirigentes fundamentais neste processo. Um deles é Nguyen Sinh Cung que, depois de trabalhar como cozinheiro de navio, se instala na França, aos 21 anos, onde trabalha como jardineiro e garçom; participa da fundação do Partido Comunista Francês e mais tarde se transfere para Moscou, onde se destaca como jornalista e integrante da Internacional Comunista. Funda o PCI e adota o nome de Nguyen Ai Quoc (Nguyen significa “o patriota”). Em 1941, dirige a fundação do Viet Minh. No mesmo ano, é preso pelo governo nacionalista chinês de Chiang Kai-shek por dezoito meses. Libertado, adota o nome de Ho Chi Minh (Ho significa “aquele que ilumina”) e se torna a principal liderança vietnamita, assumindo a presidência do Vietnã após a independência do país.

O outro é o professor de História Vo Nguyen Giap, responsável pela organização militar, desde as brigadas de agitação e propaganda armadas até a consolidação do Exército de Libertação, tendo organizado a estratégia da batalha de Dien Bien Phu, entre outras dezenas de batalhas onde emergiu uma genialidade militar reconhecida inclusive pelos adversários ocidentais. Após a proclamação da República, assumiu o Ministério da Defesa. Nesta tarefa, terá papel fundamental tanto na defesa do norte, dirigindo a estratégia de guerra total do povo inteiro, até a decisiva Campanha de Ho Chi Minh, que unificou o país em 1976.

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