Ato cobra justiça por Antonio Tavares, camponês Sem Terra morto pela PM do PR há 25 anos

Há 25 anos, o trecho do quilômetro 108 da BR-277 em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, ganhou um novo sentido para a história do Paraná. Na manhã de 2 de maio de 2000, o asfalto da rodovia que atravessa o estado de leste a oeste foi o cenário do que ficou conhecido como o “Massacre da BR-277”. A Polícia Militar do governo Jaime Lerner barrou uma caravana de ônibus que levava mais de 2 mil trabalhadores Sem Terra até a capital, e assassinou o camponês Antonio Tavares. Ele tinha 38 anos, era casado e pai de cinco filhos. Mais de 200 pessoas ficaram feridas, entre homens, mulheres, crianças e idosos. 

Na manhã desta sexta-feira (2), como tem ocorrido ao longo destas mais de duas décadas, militantes se uniram em torno do monumento erguido nas redondezas de onde ocorreu o crime. A escultura imponente tem mais de 10 metros de altura, moldada em concreto e com o desenho de um homem em pé, com o braço esquerdo erguido, empunhando uma foice. Logo abaixo está gravada a sigla do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, do qual Tavares fazia parte. A obra foi projetada pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, e inaugurada um ano após o massacre, em 2001, resultado do trabalho de organizações sindicais e populares, e de mutirões feitos pelos próprios militantes Sem Terra. 

O cultivo da memória e o grito por justiça é o que move centenas de pessoas até o monumento, todos os anos. Neste ano, a principal reivindicação apresentada na mobilização é o cumprimento total da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), publicada em março de 2024. O organismo internacional condenou o Estado Brasileiro pela intensa violência e omissão de Justiça no episódio, e também determinou a revisão da competência da Justiça Militar para investigar e julgar crimes cometidos por militares contra civis; a divulgação ampla da condenação; a indenização e amparo psicológico a familiares de Tavares e vítimas; a proteção do monumento na BR-277, entre outras medidas. 

Ao todo 185 pessoas ficaram feridas durante a repressão à comitiva do MST
Trabalhadores desceram dos ônibus e foram revistados pela PM

A sentença deve ser cumprida a partir da atuação conjunta entre o governo federal e estadual, no entanto, caminha a passos lentos. Durante o ato, Roberto Baggio, integrante da direção nacional do MST, enviou um pedido à ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, e para o secretário da Casa Civil do Paraná, Rafael Ortega: “Nós clamamos e pedimos para que vocês sentem o mais rápido possível para cumprir a integralidade da sentença dada pela Corte. Já deveria ter sido cumprida”. O prazo para execução era de um ano após a divulgação, portanto, março de 2025.   

Uma carta foi enviada à Corte Interamericana nesta semana, atualizando as informações sobre como o governo tem agido para cumprir a sua parte, conforme explicou Darci Frigo, coordenador da organização de direitos humanos Terra de Direitos: “Algumas indenizações foram feitas, para a famílias e alguns trabalhadores rurais Sem Terra. No entanto, a maior parte da sentença não foi cumprida […]. Nós esperamos que se realize uma reunião aqui no Paraná, para que seja colocado em prática aquilo que foi determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que o Brasil, já que o Poder Judiciário, já que o Sistema de Justiça não garantiram o direito humano que as pessoas têm de acesso à justiça”, completou.  

Foto: Lizely Borges / Terra de Direitos

Jaqueline Andrade, advogada popular da Terra de Direitos, reforçou a importância do cumprimento da sentença no que diz respeito à adequação do ordenamento brasileiro para que a Justiça Militar deixe de julgar os casos de crimes cometidos por militares: “Isso é muito necessário, diante das diversas injustiças e falta de responsabilização que tem desses violadores, infelizmente. Desde que a gente teve a redemocratização em 1988, a gente não deveria ter uma Justiça Militar como a gente tem hoje, que é um resquício da Ditadura Militar. Isso permanece até os dias de hoje”. 

Quando o assunto é a proteção do monumento erguido em homenagem a Antonio Tavares e a todos os mártires da luta pela terra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é um dos responsáveis. Fabiana Moro Martins, superintendente do Iphan no Paraná, participou do ato e garantiu o esforço em cumprir a determinação da Corte, também por estar em sintonia com a postura do governo do presidente Lula no que diz respeito à valorização da memória das lutas populares. 

“A nossa principal missão nessa gestão é justamente reconhecer e valorizar o patrimônio que ainda não foi reconhecido institucionalmente. A gente tem muito representado o patrimônio das elites, do colonizador, e tem pouco representação do patrimônio dos povos originários, dos povos negros, das comunidades tradicionais, e porque não, os camponeses”, garantiu a representante do Iphan. O monumento já é reconhecido como patrimônio municipal histórico cultural, pelo município de Campo Largo. Para a preservação e garantia da permanência da obra no local, o terreno precisa ser desapropriado pela União. A obra passará por reforma para que seja revitalizada, ganhe acessibilidade e sinalização. 

Ato desta sexta-feira reuniu militantes do MST, do coletivo Marmitas da Terra, da Terra de Direitos, do Partido dos Trabalhadores e sindicatos. Foto: Ana Clara Lazzarin

Roberto Baggio propôs um compromisso coletivo para o 2 de maio de 2006, para a organização do grande ato de cumprimento da sentença, naquele mesmo local, em torno do monumento. “Esse ambiente expressa a nossa memória coletiva. É um espaço comum, comunitário. Vamos manter o ideário do nosso projeto, terra pro campesinato, um mundo mais igual e mais humano. Vamos manter o nosso espírito de um povo resistente há 500 anos, massacrados, mas também vitoriosos. Vencemos. Apesar do aparato poderoso estatal e privado, vencemos”. 

Foto: Ana Clara Lazzarin / MST

Contexto de violência e reação popular massiva

O Paraná viveu um período de grande mobilização camponesa e também de extrema violência no campo durante os governos do arquiteto Jaime Lerner, entre 1995 e 2002. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) registraram os números alarmantes: 16 trabalhadores Sem Terra assassinados, 49 ameaçados de morte, 325 feridos e 135 ações de despejo em ocupações camponesas. 

Em âmbito federal, a criminalização contra o MST chegou ao auge com o que ficou conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, quando 21 trabalhadores Sem Terra foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar do Pará. A data era 17 de abril de 1996, mesmo dia em que ocorria a maior ocupação de terra do MST até o momento, com cerca de 10 mil homens, mulheres e crianças ocuparam uma parte da área grilada pela madeireira Giacomet Marodin, atual Araupel. 

Com a continuidade da repressão, o MST então decide iniciar um acampamento em frente ao Palácio das Araucárias, no Centro Cívico, sede do governo do Paraná, no dia 8 junho de 1999. Mais de 400 camponeses e camponesas do MST de todo o estado montaram uma “cidade de lona preta” em frente ao Palácio, com o objetivo de denunciar e estancar a violência do governo Lerner. A mobilização acabou 172 dias depois, em novembro, alvo da mesma violência que denunciava. A PM iniciou o despejo ainda de madrugada, agrediu e prendeu camponeses/as e aliados, e impediu a cobertura pela imprensa.

A ocupação em frente ao Palácio se tornou uma pequena cidade, com espaço para sala de aula, alojamento, produção de pães e refeições e até uma horta suspensa. Foto: Arquivo MST no PR

A marcha planejada para iniciar seis meses depois, naquele 2 de mais de 2000, trazia como principal bandeira o fim da violência e da criminalização da luta pela terra, e a efetivação da Reforma Agrária. Nilton Bezerra Guedes, atual superintendente do Incra, era servidor do órgão à época e relembrou o período em que ocorreu o massacre da BR-277. “Era o Incra fazendo um trabalho contra a sua própria natureza, atuando contra a Reforma Agrária. É um momento que marcou o Incra do Paraná. Um momento do qual temos vergonha”. 

Antonio Tavares: um homem de luta e de fé

“Durante a sua vida, Antonio lutou pela dignidade, com a fé e a esperança de um mundo melhor”, relembrou o irmão do camponês assassinato, Antonio Tavares Pereira Irmão, que também participou do ato, ao lado da esposa e do filho. 

Ele relembrou os tempos da infância, quando o irmão indicava vocação para ser padre, mas pela falta de conclusão dos estudos, o sonho ficou pelo caminho. “Depois fomos crescendo e ele começou a fazer catequese e ajudar em educação de base na liturgia” relatou, sobre a continuidade do vínculo de Tavares com a igreja católica.  

A família de Tavares era parte do povo tradicional Ilhéus do Rio Paraná que foi atingido pelo alagamento formado pela hidrelétrica Itaipu. Expulsos de suas terras, ele e a família se somaram a outras famílias na luta pelo reassentamento. Depois de alguns anos de mobilização, a família de Antonio Tavares foi assentada na Ilha do Cavernoso, em Candói. Ali, o camponês passou a fazer parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.

“Antonio se forma dentro da luta do Movimento Sem Terra, com grandes conhecimentos e grande sonhos, de libertar o seu povo. Ele saia da ilha do Cavernoso, muitas vezes a pé. São 35 quilômetros da Ilha até a BR. A imagem dele com a sacolinha nas costas, a pé, às vezes pegava carona, pra buscar melhorias para a sua comunidade, por amor aos demais, pessoas da comunidade, e por sonhar com um mundo melhor, e que a terra fosse um espaço para que todos tivessem vida, e vida em liberdade”, relembra o irmão. 

Antonio Tavares Irmão, durante o ato realizado em torno do monumento, nesta sexta-feira (2). Foto: Ana Clara Lazzarin / MST-PR

Mesmo religioso, ele incentiva a luta coletiva para melhorar a vida: “Só conseguimos as coisas se a pessoa for pra luta. Se a pessoa ficar rezando, falando e não fazer nada, as coisas não acontecem. Antonio tinha uma dedicação e um preparo para conseguir se expressar. A grande esperança dele é que o povo e as organizações que se engajaram nas lutas pudesse conseguir os seus objetivos, uma terra pra sobreviver, plantar, colher e comer aquilo que realmente produz”, conta. 

O irmão de Antonio Tavares encerrou o seu depoimento durante o ato falando diretamente à militância presente: “Eu sou grato ao Movimento Sem Terra, às organizações de base e organizações sociais por manter viva essa memória. Porque vejam todas as pessoas que vivem e continuam a luta de Antonio. Meus irmãos na caminhada da luta pela libertação e pela continuação do sonho de Antonio Tavares Pereira”. 

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