Flávio Dino e uma aula de democracia

Na manhã desta segunda-feira, 5 de maio, estive na UFPE para um acontecimento singular: a outorga do título de Doutor Honoris Causa a Flávio Dino, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A outorga foi seguida de uma aula magna do próprio recém doutor.

Presidida pelo reitor Alfredo Gomes, a cerimônia contou, ainda, com a participação de várias autoridades universitárias e da República, dentre as quais, a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, e a senadora Teresa Leitão. O lugar de realização da festa, por assim dizer, não poderia ser mais apropriado: a Concha Acústica Paulo Freire.

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Desnecessário dizer que, neste texto, não pretendo sintetizar a cerimônia e, muito menos, a aula de Flávio Dino, que, de resto, foi transmitida pelo canal do YouTube da UFPE e lá se encontra, na íntegra, à disposição de todas as pessoas interessadas. O que vou tentar transmitir ao leitor e à leitora, nestas poucas linhas, é um pouco dos temas que foram abordados e que me pareceram de grande relevância para a reflexão democrática contemporânea.

A concessão do título de Doutor Honoris Causa ao ministro foi plenamente justificada pelo diretor da Faculdade de Direito do Recife, o prof. Torquato Castro Júnior, e pelo próprio reitor. Salientou-se, inicialmente, o pertencimento do agraciado à própria comunidade acadêmica da UFPE, pois foi nela que ele realizou seu mestrado em Direito Constitucional, e, sobretudo, a sua presença na cena jurídica e política brasileira nas últimas décadas.

Não faltou, é claro, menções à sua firme atuação no caso das famigeradas emendas secretas e da punição das pessoas que participaram da malograda tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023.

A aula magna proferida pelo novo doutor foi, também, a abertura do semestre acadêmico da UFPE. Eu nunca havia ouvido o Ministro Dino assim, presencialmente. Ele fala muito bem e demonstrou ser um ótimo professor: acolheu os/as estudantes ingressantes e outras tantas pessoas para lá de veteranas que lá estavam com muita delicadeza e bom humor, dando uma aula que, a meu juízo, pode ser entendida por todas as pessoas.

Eu não sabia o tema da aula e achava que ele falaria sobre algo próximo de “justiça e democracia” ou coisa do gênero. Ledo engano: o tema foi “o impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho”. Mas também foi, sim, sobre justiça, democracia e política, questões às quais o ministro tem se dedicado ao longo da vida.

A aula sobre a democracia começou, na verdade, antes da aula: após a leitura do termo de outorga do título pelo reitor Alfredo Gomes, o recém doutor deveria responder se aceitava ou não a concessão. Neste justo momento, eis que um grupo de trabalhadores sem terra irrompe na concha acústica, tentando chamar a atenção. O agraciado, ao invés de dar prosseguir à solenidade, apenas observa e ouve as pessoas que se manifestam – durante alguns minutos –, e só ao final da manifestação toma a palavra e, então, diz: “viva a democracia!”.

Registre-se, ainda, que o pessoal técnico administrativo em educação (TAEs) da UFPE organizou e manteve, durante toda a cerimônia, uma manifestação pelo cumprimento do acordo assinado com o Governo Federal sem que houvesse nenhum constrangimento por parte da organização.

Tratando do tema, houve um explícito esforço do ministro em transmitir uma posição “de meio termo” sobre o problema: como, ao mesmo tempo, fazer um diagnóstico crítico e contundente sobre os impactos, inclusive os positivos, da inteligência artificial no mundo do trabalho.

Lembrou ele que a inteligência artificial pode escrever texto jornalístico, sentença judicial e uma obra de arte, abrindo uma perspectiva quase inesgotável de colaboração com os humanos e, ao mesmo tempo, retirando postos de trabalho e contribuindo para precarização das condições do trabalho existente. Ou seja, como não jogar fora a criança com a água do banho?

Chamou, a este respeito, a atenção para dois assuntos que estão na pauta do Supremo: a pejotização ou uberização das pessoas que trabalham e a responsabilidade das big techs pelas ações de violência que grassam nas redes.

A respeito do primeiro tema, ressaltou o quanto o processo de transformação dos trabalhadores e das trabalhadoras em empresários/as de seus próprios corpos e, mesmo, a intensificação da ideia do empreendedorismo são faces da mesma moeda que leva à precarização do trabalho e à caracterização da luta pelos direitos trabalhistas como sendo uma coisa negativa.

Ter carteira assinada, ou seja, ter os direitos trabalhistas assegurados, disse ele, passa a ser um desvalor, uma das faces de uma pessoa considerada fracassada socialmente. Neste perspectiva, bom mesmo seria ser empreendedor, ainda que seja para escolher se quer trabalhar 12, 14 ou 16 horas por dia, todos os dias da semana.

Por que as plataformas conseguem fazer um algoritmo que, em tempo real, conseguem identificar e responder às buscas das pessoas por serviços ou mercadorias nas redes e não conseguem, com a mesma eficiência, detectar e deletar conteúdos racistas, sexistas, homofóbicos e antidemocráticos nas mesmas redes? Não seria esta mais uma falta de ética e de compromisso democrático da inteligência natural que produz a inteligência artificial do que uma deficiência desta última?

Eis aí duas das contundentes perguntas postas pelo recém doutor para turma que lotava a concha acústica para ouvi-lo.

A proteção aos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, amplamente comprometidos pela ascensão das big techs e da inteligência artificial, ao lado do controle social sobre as plataformas, são desafios fundamentais para defesa da democracia na contemporaneidade.

Isto, de um modo geral, não é segredo para ninguém, mas ouvi-lo de um ministro do Supremo – e agora Doutor Honoris Causa pela UFPE – dá um certo alento e infunde alguma esperança para os embates já em curso e pelos muitos outros que virão.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele assina a coluna Cidade das Letras: literatura e educação, do Brasil de Fato MG.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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