Ambulante é executada após PM matar senegalês no Brás em SP; trabalhadores dizem viver ‘panela de pressão’

Dezesseis dias depois de um policial militar (PM) matar o trabalhador senegalês Ngagne Mbaye no bairro do Brás, em São Paulo, Edineide Aparecida Rodrigues, ambulante da mesma região, é executada com um tiro na cabeça na frente de casa. Meses antes, ela depôs à Polícia Civil sobre um esquema de milícia e extorsões na Feira da Madrugada, do Brás. Era testemunha protegida pelo Estado.

Três dias depois do assassinato de Edineide, uma comissão de trabalhadores ambulantes formada a partir dos protestos contra a morte de Ngagne chega à prefeitura de São Paulo. Era véspera do Dia dos Trabalhadores e a reunião com o vice-prefeito, o coronel da PM Mello Araújo (PL), estava previamente marcada. Do grupo formado por brasileiros e imigrantes, apenas quatro puderam entrar. Mas só para serem informados que Mello Araújo tinha saído. Foram embora sem uma nova data.

No Brás, uma fileira com dezenas de policiais se forma e atravessa a praça da Concórdia, com as mãos apoiadas nas armas. As fardas são da PM, mas o pagamento é da prefeitura. Pela Operação Delegada, trabalham para o município enquanto estão de folga do serviço para o governo estadual. Metros à frente, barracas são desmontadas com velocidade. 

Sem conseguir sair a tempo, uma mulher negra é rodeada pelos PMs. Percebe a câmera da reportagem, que inibe a violência. Altiva, bota os produtos devagar sobre o carrinho e sai. Na esquina, outra mulher senta no chão e chora, diz que não aguenta mais, que não podem trabalhar e que o amigo africano foi morto na sua frente. Dia comum no Brás. 

Trabalhadores alegam que repressão policial se intensificou após protestos por morte de Ngagne – Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

“Olha como o [prefeito] Ricardo Nunes [MDB] mais o governador [Tarcísio de Freitas (Republicanos)] estão fazendo. Que política suja. Tirando mercadoria de pobre para levar para revender. Piorou depois que atirou no cara. Eles estão correndo atrás de nós mais ainda. Spray de pimenta, arma na mão. A polícia está cada vez pior”, denuncia Rita Silva, camelô há 20 anos. “Como é que um policial chega aqui segurando arma para trabalhador?”, fala alto, em direção aos agentes.

“O Brás é essa panela de pressão. Corre muita grana e faz com que todo mundo trabalhe sempre temendo alguma coisa”, define José Pedro Neto, vendedor de água e membro do Fórum dos Ambulantes de São Paulo, ligado ao Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. “É um território dominado por muitas forças e muita gente ganha em função do trabalho dos outros, percebe?”, explica.

Ao Brasil de Fato, vendedores alegam que a pressão piorou a despeito da repercussão do assassinato de Ngagne. O cotidiano, resume Pedro Neto, é de um “campo minado” entre a violência policial e o achaque de milícias. “Às vezes a polícia não recebe dinheiro nosso, mas recebe dos lojistas para não deixar a gente trabalhar”, ilustra. “Toda hora tem alguém se dizendo dono do território”, sintetiza.

A milícia delatada por Edineide

Edineide foi uma das 25 testemunhas cujos depoimentos embasaram a denúncia que prendeu e tornou réus, em janeiro, três sargentos e um cabo da PM por formação de milícia. São eles o cabo José Renato Silva de Oliveira e os sargentos Wellington Stefani, Humberto de Almeida Batista e Lucia Ferreira de Oliveira. 

De acordo com o Ministério Público de São Paulo (MPSP), feirantes tinham que pagar até R$ 300 ao grupo por semana, além da “luva”, uma taxa de cerca de R$ 15 mil para usar o ponto. Quem não tinha como pagar era obrigado a pegar emprestado de agiotas. Se o pagamento atrasasse, a “cobrança” era feita por policiais. Segundo a investigação, as principais vítimas eram imigrantes.

“Havia uma época que a milícia queria que a gente pagasse. A gente não pagava, pelo menos no território onde a gente tinha nossos pontos. A polícia aos poucos foi se envolvendo e quando dei fé, setores da polícia também recebiam. Isso foi aumentando. Teve um momento que chegaram a vender pontos, o valor foi ficando mais alto e houve denúncia. Aí saiu na imprensa e pronto. A partir daí foi avançando no sentido de dizer que a gente não ia trabalhar”, relata Neto.

De acordo com o vendedor, a violência praticada por policiais da Operação Delegada se acirra desde 2023. Certo dia, Pedro foi abordado por policiais que abriram todas suas garrafas e despejaram a água no chão, na sua frente. Resolveu não ter ponto fixo e se deslocar, carregando a mercadoria na sacola. “Antes eu voltava com uma diária média de R$ 200. Hoje volto com R$ 50, R$ 70, é muito incerto”, expõe.

“Aqui na parte do [Largo da] Concórdia, conseguimos combater para não pagar milícia, mas nas ruas para baixo o pessoal paga. Aqui a gente trabalha mais na correria e tem policial que se não vai com a tua cara, te marca e não te deixa trabalhar”, conta Laís*, que vende cuecas, meias e guarda-chuvas.

“Tem aquele trabalhador que é perseguido por não concordar com os abusos de autoridade da polícia. Tem racismo, xenofobia: quando você contraria tudo isso, você é violentado ou psicológica ou fisicamente”, diz a vendedora de 27 anos. 

Prefeitura expande Operação Delegada 

Criada em 2012 por Gilberto Kassab (PSD), na gestão que também inaugura a militarização das subprefeituras paulistanas, a Operação Delegada cresce sob o governo Nunes. 

Em 2022, o convênio entre prefeitura e governo estadual ofertava 1.234 vagas por dia para policiais militares. Atualmente são 2.400 – o dobro. Só nestes primeiros meses de 2025, 210.320 vagas foram preenchidas, segundo a prefeitura. Para praças, a remuneração é de R$ 355,36 por 8h de jornada. Para oficiais, R$ 426,40.

O foco da Operação Delegada é coibir o comércio ambulante na região central da cidade. Só ali o efetivo é de 1.500 PMs todos os dias. Além disso, os subprefeitos destes distritos são também policiais militares.

A subprefeitura da Mooca que abarca, além do bairro de mesmo nome, Água Rasa, Belém, Brás, Pari e Tatuapé, está sob comando do coronel da Reserva da PM Marcus Vinicius Valerio. Já a da Sé, que abrange oito distritos e, com R$ 137 millhões, tem o maior orçamento das 32 subprefeituras, está sob gerência do coronel da Reserva da PM Marcelo Vieira Salles (PSD).

Com as mercadorias embaladas, ambulantes observam e criticam atuação da polícia – Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

Questionada sobre as denúncias de violência e extorsão praticadas por policiais militares, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) do governo Tarcísio (Republicanos) alegou que, em relação à Operação Delegada, a responsabilidade é da prefeitura. Esta, por sua vez, declarou que “a conduta dos policiais” é “reportada diretamente ao Comando da Polícia Militar”, ligado à SSP-SP.

Segundo a administração municipal, “a subprefeitura Mooca reafirma seu compromisso com a integridade e a segurança dos cidadãos durante a atuação de suas equipes e destaca que as ações de fiscalização na região do Brás são acompanhadas de orientações permanentes aos ambulantes sobre os procedimentos de regularização e os locais autorizados para atuação”.

“Sai lixo”, “volta para o seu país”: é assim que Ketele Charles, haitiana que vende roupas masculinas pelas ruas do Brás desde 2019, diz ser tratada cotidianamente pela polícia. Em cada peça que vende, tem um lucro de cerca de R$ 3. É assim que dá um jeito de, com o marido, sustentar dois filhos no Brasil e outros dois que seguem no Haiti.

Ketele trabalha como vendedora nas ruas de São Paulo desde 2020 – Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

A prefeitura informou, ainda, que “todos os pertences apreendidos são liberados mediante comprovação de situação regular da mercadoria, com apresentação do lacre e da nota fiscal”.

Não foi o que aconteceu com Laís. “Prenderam meu carrinho aqui e a polícia chegou batendo. Então a gente correu. Quando a gente foi pegar a mercadoria no galpão, se negaram a dar. Tinha documentos pessoais até. Abri denúncia na ouvidoria para ir lá pegar minhas coisas. Quando fui ver, a mercadoria estava incompleta. Blusa de marca roubada, maquininha de cartão roubada”, conta.

“No momento da apreensão, eles têm que lacrar ali na sua frente e te dar um lacre para que você possa retirar, mas na maioria das vezes isso não acontece”, descreve Laís.

Junto com PMs da Operação Delegada, fiscais da prefeitura apreendem mercadorias no Brás – Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

“Aí agora a maioria das pessoas trabalha correndo, né? A gente corre do rapa 24 horas por dia”, resume Laís. Segundo ela, os ambulantes têm dificuldade para adquirir o Termo de Permissão de Uso (TPU) e acessar o programa Tô Legal, destinado à regularização do comércio ambulante na capital paulista. “Todo trabalhador ambulante quer se legalizar, mas não é oferecido”, critica.

“Não abaixam a cabeça”

Inconformado com a apreensão de seus produtos anos atrás, o senegalês Mamadou Ka aprendeu o burocrático caminho para reavê-las. “Eu falei não, cada dia você tem que procurar seu direito. Aqui no Brasil tem que ter lei para recuperar. Porque eu não estou fazendo crime, não estou roubando, não estou fazendo nada errado, estou tentando trabalhar”, diz.

Foi assim que, ao longo dos anos, se tornou uma referência entre os trabalhadores para ajudar nos trâmites do tipo. Foi ele quem conseguiu recuperar, três semanas depois do assassinato, as mercadorias de Ngagne Mbaye e entregá-las à família.

Protesto pede justiça por Ngagne Mbaye no centro da capital paulista /

Laís estava presente quando, no último 11 de abril, Ngagne foi agredido por oito policiais que queriam apreender seus produtos, fechados em cima de um carrinho. Ele revidou com um cabo de guarda-chuva, tentou fugir e tomou um tiro fatal no abdômen. “Naquela rua tem um posto de saúde, vieram enfermeiros prestar primeiros socorros, a polícia não permitiu. Ele morreu ali tratado como lixo desde o começo ao final. Foi agredido, sofreu racismo, xenofobia e foi morto”, denuncia.

Brasileira, Laís percebe uma diferença na forma como os imigrantes africanos enfrentam a violência de Estado. “O brasileiro aqui se cala, vê alguém sendo agredido, se afasta. Os africanos não, eles não aceitam agressão policial, racismo, eles lutam junto. Se veem um ambulante sendo agredido, vão defender. Eles têm muita união, força e coragem, que muitos brasileiros às vezes não têm, né? Vê o seu irmão ali apanhando da polícia e sai com medo. Não tem coragem nem de gravar a ação policial. Eles não. Eles têm coragem para gravar, para defender o seu irmão”, opina. 

Para Laís e Pedro, a morte de Ngagne estava “anunciada”. “A gente já visitou Ministério Público, ouvidoria, subprefeitura, prefeitura… E dizia: vai acontecer o pior. Não porque a gente tem bola de cristal, mas porque todo dia a gente passa por esse tipo de situação. Há uma opressão e as pessoas têm necessidade de trabalhar”, ressalta Pedrinho, como é conhecido. “A qualquer momento isso pode acontecer novamente”, alerta. 

*Sobrenome omitido para a preservação da fonte.

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