“Sou um jogador livre!”: o passe livre no futebol brasileiro

Este texto é uma pesquisa e um relato, mas também celebra uma amizade. Cândido e Spencer foram jogadores de futebol se conheceram nas categorias de base do Cruzeiro, onde iniciaram uma amizade que atravessou a vida de ambos. Jogaram também no América-MG antes de seguirem juntos para o Pumas, no México. Suas carreiras caminharam pela segunda metade da década de 1960, 1970 e começo dos 1980.

Até 1970, antes da promulgação da Lei Pelé (BRASIL, 1998), os direitos de transferência dos jogadores no futebol brasileiro pertenciam exclusivamente aos clubes, o que impedia que os próprios atletas pudessem decidir de forma autônoma seus caminhos. A mudança de equipe só ocorria com a autorização da entidade desportiva.

Cândido (1950–1988), vindo de João Monlevade (MG) e maior goleador da história do América em uma edição do Brasileiro, uma espécie de tio para mim, foi um entre tantos jogadores que sofreu com este marco legal que colocava de joelhos os jogadores e os tratava enquanto meras ferramentas de trabalho. Neste texto ele representa as gerações de jogadores brasileiros que, em grande parte negros e vindos das classes baixas, foram silenciados, desautorizados e controlados por clubes e empresários. Cândido é o ponto de partida e o de chegada deste relato.

Este sistema perdurou até março de 1971, quando o jogador Afonsinho, então vinculado ao Botafogo, obteve na Justiça o direito ao passe livre, após processo iniciado nesse mesmo ano.

Um pouco antes, em 1969, o jogador Spencer Coelho — meu pai — havia iniciado um processo judicial contra o Cruzeiro, enquanto estava emprestado ao Araxá, com o mesmo objetivo. No entanto, seu pai havia assinado, sem seu conhecimento, um “contrato de gaveta” com o Cruzeiro, o que resultou na perda da causa. Já em 1971, o clube deixou de pagar seus salários por mais de três meses, o que o levou a retomar o processo pelo passe livre. A causa foi resolvida em novembro de 1971, quando, após três anos de luta, ele finalmente pôde declarar: “Sou um jogador livre!” (PLACAR, 1971).

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Sociologicamente – afinal este texto além de memória é também pesquisa -, podemos perguntar: o que levou especificamente estes dois jogadores a serem os primeiros a iniciar o processo pelo passe livre no Brasil?

Suponho que a orientação política de esquerda de Afonsinho e Spencer os levou a disposições distintas em relação a seus colegas. A perspectiva de questionamento da ordem social e da situação de dominação, identificada com a posição de esquerda os levou a questionar sua situação enquanto jogadores/trabalhadores.

Obviamente a opção pela esquerda traduz condições subjetivas que não são tema deste texto. Dessa forma, as ideias e propostas da esquerda, incluindo o questionamento à situação de subordinação dos jogadores, levou Spencer e Afonsinho a solicitarem o passe livre.

Spencer foi classificado como um homem de esquerda por Telê Santana e considerado “rebelde” por seus colegas de equipe, em parte por se relacionar com nomes importantes da Música Popular Brasileira (MPB).

Tanto Spencer quanto Afonsinho foram pressionados a mudar sua aparência, por transmitirem uma imagem associada a militantes de esquerda. Em 2019, os dois se reencontraram na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), durante uma partida de confraternização organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a presença do então ex-presidente Lula. O evento reuniu figuras da esquerda brasileira para a inauguração do campo de futebol Sócrates Brasileiro.

Nei Conceição, Gustavo (filho do Sócrates), Afonsinho, Spencer e Reinaldo.

Como mencionado, a orientação política de ambos os jogadores os levou a adotar disposições distintas em relação aos demais futebolistas, evidenciando a relação diferenciada entre agência individual e estrutura, quando o agente contraria a própria estrutura social (GIDDENS, 1984; BOURDIEU, 1989), além de ressaltar casos de agência individual em contextos autoritários (DA SILVA, 2018) e de engajamento político de atletas (KUPER, 1994).

Afinal, a luta pelo passe livre foi não apenas um ato jurídico, mas um ato político.

Muitos torcedores costumam dizer que jogadores não se posicionam politicamente, mas, com Afonsinho e Spencer, vemos que o futebol — ainda que capturado por grandes interesses corporativos — possuía e ainda possui margens para a expressão política e subjetiva de jogadores e torcedores (FRANCO JÚNIOR, 2017).

O passe livre representa um dos principais adventos dos jogadores de futebol enquanto trabalhadores. Esse avanço na autonomia dos atletas integra o processo que, mais tarde, culminaria na promulgação da Lei Pelé.

Aqui encerro como comecei: com Cândido, artilheiro silenciado como tantos outros jogadores, a quem o América-MG e o Cruzeiro tanto devem — e a quem este texto/relato/memória é dedicado. Spencer e Cândido sintetizam em suas trajetórias os caminhos do povo brasileiro no futebol.

A vida tem dessas coisas: aproxima figuras inteiras — o rebelde e o artilheiro.

Cândido já não está. Foi levado pela doença de Chagas, enfermidade que, como se sabe, nasce em contextos de miséria e casas de pau-a-pique. Esteja onde estiver, forte abraço, Cândido!

*Texto apresentado no colóquio Estudios del Fútbol en América Latina: Reflexiones sobre el balón, apresentado na UNAM em maio de 2025

Citações:

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

DA SILVA, S. R. A bola e o arame farpado: futebol e ditadura militar no Brasil (1964–1985). 2018.

GIDDENS, A. A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins. 1984. KUPER, S. Futebol contra o inimigo. 1994.

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