Neste mês de maio, movimentos cearenses têm se organizado e construído a Marcha da Maconha, espaço de reivindicação para aprovação do uso da Cannabis para fins medicinais, método de tratamento terapêutico alternativo que ganhou destaque no cenário nacional e também estadual nos últimos anos. No Ceará, o mandato do deputado estadual Renato Roseno (Psol), tem liderado a defesa da pauta na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), e em conjunto com outros cinco parlamentares — Larissa Gaspar, Jô Farias, De Assis Diniz, Guilherme Sampaio e Missias Dias, todos do PT — apresentaram ainda em 2023 o Projeto de Lei nº 1014/2023.
Com objetivo de regulamentar o uso de cannabis medicinal no Ceará e possibilitar a oferta de medicamentos à base de canabidiol pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o PL busca implantar a Política Estadual de Cannabis para fins terapêuticos, que engloba ainda o incentivo às associações, o fomento à pesquisa científica e a capacitação dos profissionais da rede pública e de entidades conveniadas à rede estadual de saúde.
O médico e pós-graduado em cannabis medicinal, Eugênio Franco, aborda as principais doenças onde a cannabis é utilizada como terapia alternativa, destacando os casos de epilepsias refratárias, tratamento de ansiedade, insônia e dores crônicas. “Essas são as principais condições com maior evidência, mas existem outras patologias que podem ser tratadas com mais qualidade, mas que ainda possuem um nível de evidência baixo”, afirma. O especialista aponta ainda o uso da planta para o tratamento em pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e revela que tem apresentado cada vez mais evidências de ajuda, apesar de ser uma pequena fração conhecida.
Em entrevista para o BdF Ceará, Robervânia Sousa, mãe atípica, revela que o processo de busca pelo tratamento com cannabis para seu filho, Allanzinho, foi desafiador. “Quando compartilhei a minha intenção com a neurologista que acompanhava meu filho, ela me negou esse direito, pois na época havia muita desinformação e resistência em relação ao uso da cannabis medicinal. Isso me deixou ainda mais determinada a buscar alternativas, pois sabia do potencial dessa planta”. Apesar da negativa médica a mãe não desistiu, e após um quadro de crise intensa de seu filho, Robervânia se viu desesperada e compartilhou nas redes sociais sua história de vida e a luta que travava com a condição de saúde de Allanzinho.
Foi nesse momento que Robervânia encontrou ajuda médica de um terapeuta canábico, e por meio das redes sociais, decidiu embarcar nessa luta e ajudar a mãe. “Nesse ponto, passei a entender que existe um trabalho dedicado e uma comunidade que luta pelo acesso ao tratamento com cannabis medicinal”, afirma. Apesar das dificuldades, Allanzinho hoje faz tratamento à base de cannabis, o que, de acordo com sua mãe, fez toda a diferença na saúde e no bem-estar do pequeno.

Aos 10 anos de idade, Allanzinho possui uma condição médica complexa, caracterizada por uma síndrome rara ainda investigada e um diagnóstico de autismo de nível três, que conferiu ao pequeno a impossibilidade de desenvolver a comunicação e capacidade motora de forma independente. O pequeno apresenta ainda comportamentos de automutilação, auto agressão, tricotilomania e crises sensoriais graves, além da asma. Se no passado Allanzinho fazia uso de uma extensa cartela de medicações, como Rivotril, Risperidona, Neuleptil, Carbamazepina, Neosine e bombas de administração de asma, hoje, com a diminuição do uso dessas drogas, em decorrência do uso da cannabis como tratamento terapêutico, a família vive uma nova realidade.
Com dois principais componentes ativos, o Canabidiol (CBD) e o Tetrahidrocanabinol (THC), ambos interagem com o sistema endocanabinoide do corpo humano, desempenhando papeis significativos na regulação de funções fisiológicas, e por isso, auxiliam no tratamento médico para determinadas doenças como ansiedade e dores crônicas. Vale destacar que os efeitos terapêuticos da cannabis medicinal foram reconhecidos em 2014, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou o uso de medicamentos produzidos à base de CBD. Desde então, o Congresso Nacional vem discutindo sobre o tema da cannabis medicinal no Brasil.
Apesar de liberado, Franco ressalta as dificuldades que grande parte da população que faz uso da cannabis como ferramenta de tratamento encontra diariamente, e afirma que a maioria delas diz respeito a falta de informação de qualidade em como conseguir os produtos medicinais derivados da planta, mas também por questões financeiras, uma vez a qual a cannabis possui custo elevado, mesmo nas opções mais baratas. O médico destaca também que parte dos produtos derivados da cannabis podem ser encontrados em farmácias tradicionais mediante comprovação de receita médica que autorize a compra.
A dificuldade financeira apontada por Franco impactou diretamente no tratamento do pequeno Allanzinho. De acordo com sua mãe, o maior obstáculo mesmo conquistando acompanhamento médico foi o custeio. “Sou mãe solo, e meu filho já seguia uma dieta de alto custo, uma dieta alcalina, o que tornava ainda mais difícil conseguir um segundo vidro de óleo. Muitos dias foram difíceis, até o ponto de faltar coisas necessárias”, aponta. Desde junho de 2021, Sousa tem lutado para garantir o acesso ao tratamento para o filho por meio de associações e desenvolvimento de trabalhos voluntários.
Lígia Duarte, da comissão organizadora da Marcha da Maconha Fortaleza, garante ainda que um grande movimento para importação, produção e distribuição de maconha — que não é a cannabis medicinal — tem se instalado fortemente por grandes monopólios do agronegócio e da indústria farmacêutica, sem trazer reparação no processo. “Um frasco de 20ml, custando uma média de R$ 2.000 não é acessível. Importar uma substância presente em uma planta multibenéfica não é inteligente. Negar o direito ao remédio às pessoas que encontraram nessa planta um alívio e uma melhora significativa de qualidade de vida é desumano”, declara Duarte.
A obtenção do tratamento medicinal com cannabis tem início com a prescrição de um médico habilitado, que recomenda o uso da planta para a condição de saúde específica. Após essa prescrição, é necessário buscar o acesso através de uma associação de cannabis, que oferece suporte para o cultivo ou fornecimento de produtos acessíveis e regulamentados.
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Projeto de Lei nº 1014/2023
Com registro de entrada em 2023, o Projeto de Lei nº 1014/2023 que trata da Política Estadual de Cannabis para fins terapêuticos engloba uma série de demandas, dentre elas, o apoio técnico-institucional para pacientes, seus responsáveis e associações de pacientes, incentivar a pesquisa científica e os projetos de extensão em universidades públicas e privadas e pessoal para prescrição e acolhimento dos pacientes na rede estadual de saúde e a dispensação pelo SUS.
Duarte reflete que o PL é um importante instrumento para a garantia do acesso à quem precisa do medicamento extraído da planta, mas, em contrapartida, teme o atraso se comparado com outros estados brasileiros. “Se compararmos o nosso projeto de lei a outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Santa Catarina e Recife, vemos que estamos atrasados. Legislações estaduais e municipais que não reconhecem o trabalho fundamental das associações para a distribuição do medicamento e para a produção científica, e caem numa armadilha perigosa, que é a importação do medicamento”, reconhece.
Ao longo da semana, o PL voltou a ser pauta na assembleia e gerou tensão entre parlamentares que defendem o tema e os que desaprovam a medida. O autor do PL, o deputado Renato Roseno (Psol), comemorou nas redes sociais o parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) que aguarda agora a tramitação.
Além da comemoração, o parlamentar repudiou ainda os ataques sofridos pela deputada Larissa Gaspar (PT), por também defender a pauta dentro da Alece. Em suas redes sociais, a deputada ressalta que seguirá firme na luta pela saúde, ciência e pelo direito de todas as pessoas terem acesso a um tratamento digno, e apontou ainda que os ataques sofridos são resquícios de hipocrisia, oportunismo e machismo.

Se aprovado, o projeto poderá transformar o Ceará em referência nacional na inclusão da cannabis medicinal no SUS estadual, atendendo pacientes com condições como epilepsia, dores crônicas, ansiedade e autismo. A proposta também reconhece o papel central das associações de pacientes, que historicamente têm sido protagonistas na luta pelo acesso aos derivados da cannabis no Brasil.
Do cultivo
Além da compra direta em farmácias com apresentação da prescrição médica, outra forma de aquisição de produtos medicinais derivados da cannabis é ainda através do autocultivo. No entanto, além do acompanhamento médico, o autocultivo requer ainda uma autorização judicial para que seja permitida de forma legal, sendo necessário a princípio a apresentação do habeas corpus, que por sua vez, requer uma série de documentos para emissão, tais como receitas e relatórios médicos, laudos técnicos, pareceres especializados, certificado de participação em cursos de cultivo e extração, relato pessoal, autorização da Anvisa, orçamento de produtos indicados, documentos pessoais e um laudo agronômico.
Sousa declara que após conseguir o acesso ao tratamento para seu pequeno, percebeu que não tinha condições de custeá-lo continuamente, foi então quando adentrou uma jornada de pesquisas no assunto e até descobrir a possibilidade de solicitar a autorização judicial para o cultivo da planta por meio de habeas corpus para uso próprio. “Todo esse processo durou cerca de dois anos e meio, durante os quais fiz cursos de cultivo e extração, além de buscar um advogado disposto a ingressar com o pedido de habeas corpus por um valor acessível para mim”, alega. A luta de Robervânia passou então a ser acompanhada também pelo Dr. Lucas Perdigão, sensibilizado com a história da mãe atípica, aceitou assumir o caso na justiça.
Hoje, a mãe de Allanzinho reconhece os avanços e as melhorias significativas no quadro clínico de seu filho, e reitera que o mesmo quase não apresenta mais crises sensoriais intensas, além de ter conseguido avanços importantes no controle de ações de automutilações. “Allanzinho também apresentou progressos em sua comunicação, assim como o desenvolvimento motor. Hoje, ele consegue engatinhar, coisa que antes não fazia, pois permanecia apenas sentado”, declara. Por fim, Sousa garante ainda uma redução significativa nas crises do filho, garantido uma melhor qualidade de vida não só para a criança, mas para toda a família.
Feira Canábica
Em busca de construir espaços para debate e construção coletiva sobre o uso da cannabis como ferramenta de tratamento terapêutico, o Movimento Social Marcha da Maconha Fortaleza realiza neste sábado (18), a quarta edição da Feira Canábica do Ceará. Com programação gratuita e aberta a todo o público, a feira acontece a partir das 15h, na Praça da Gentilândia, no bairro Benfica, em Fortaleza.

Duarte assegura que a feira possui um importante papel de informar à população e ser um espaço de trocas e de orientação. “Nos preocupamos em trazer informações relevantes e com base científica e jurídica, pois sabemos que estamos tratando de um tema sensível e ainda permeado de estigmas”, aponta. De acordo com a organizadora do evento, a recepção e o processo de construção desse momento tem sido intenso, e tem recebido muito apoio, em especial da população interessada no tema.
Durante o evento estarão presentes empreendedores, associações, empresas canábicas, além da oferta de atendimentos gratuitos ao público, como orientação jurídica, escuta psicológica, avaliação com profissionais da saúde, distribuição de materiais informativos e rodas de conversa sobre autocuidado e redução de danos. A programação conta ainda com discotecagem, intervenções artísticas, expositores independentes e atividades formativas, conectando saúde, cultura e ativismo.
Marcha da Maconha 2025
Com o tema Paz na favela, maconha no quintal. Queremos reparação e justiça social, a Marcha da Maconha Fortaleza deste ano acontece no próximo sábado (25), e tem concentração marcada para às 15 horas, em frente a Estátua de Iracema, um dos principais cartões postais da cidade e sairá em direção ao anfiteatro da Avenida Beira Mar. O evento integra um movimento nacional, social e político, que defende a legalização da cannabis e discute os impactos da política de drogas no Brasil, especialmente nas populações mais vulneráveis.
“Tivemos diversos avanços nos últimos anos, frutos de muita luta. Hoje, os benefícios da planta já são reconhecidos por uma parcela expressiva da população. Mas ainda não é suficiente. Precisamos de uma reforma profunda — e ela só será possível com a legalização dessa planta, tão necessária nos lares de milhares de famílias brasileiras”, explica Duarte. Além da tradicional marcha, o mês de maio será marcado por uma intensa programação descentralizada em diversos territórios da cidade, que marcam o Maio Verde, mês dedicado à luta antiproibicionista.

A Marcha da Maconha de Fortaleza reúne ativistas, artistas, pesquisadores, coletivos e usuários de cannabis em um espaço de diálogo, protesto e celebração. Com palavras de ordem, intervenções culturais e manifestações políticas, a mobilização reforça a urgência de repensar o atual modelo de guerra às drogas, responsável por encarcerar em massa jovens negros e pobres, alimentar a violência nas periferias e negar direitos fundamentais.
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