Saberes ancestrais e a origem da agricultura sintrópica: quilombolas e povos indígenas como precursores de uma agricultura regenerativa

A agricultura moderna frequentemente ignora o acúmulo de conhecimentos desenvolvidos por comunidades tradicionais ao longo de séculos. No entanto, diante das crescentes crises ambientais, climáticas e alimentares, emergem propostas de agricultura regenerativa e ecológica que, muitas vezes, redescobrem práticas já consolidadas entre os povos indígenas e quilombolas. Este artigo defende a tese de que as bases conceituais e práticas da chamada “agricultura sintrópica contemporânea” têm raízes profundas no manejo tradicional praticado por esses povos, os quais desenvolveram sistemas agrícolas dinâmicos, adaptativos, biodiversos e profundamente integrados ao funcionamento dos ecossistemas tropicais.

Fundamentos da Agricultura Sintrópica e os Sistemas Tradicionais

A agricultura sintrópica é baseada em princípios ecológicos como a sucessão natural de espécies, a estratificação vegetal, a ciclagem de nutrientes, a regeneração do solo, a valorização da biodiversidade e a produção integrada de alimentos, fibras e madeira. Esses princípios não são invenções recentes, mas expressam práticas milenares desenvolvidas por povos originários da América do Sul e por comunidades africanas que, ao resistirem à opressão colonial e fundarem os quilombos, adaptaram seus conhecimentos aos biomas brasileiros.

Ao longo de gerações, tanto indígenas quanto quilombolas aprenderam a manejar a paisagem com inteligência ecológica, respeitando os ciclos da natureza e promovendo o que hoje chamamos de sistemas agroecológicos complexos.

Sistemas Indígenas de Cultivo e a Lógica da Sucessão

Os povos indígenas do Brasil sempre compreenderam a floresta como um organismo vivo em constante transformação. A lógica agrícola tradicional desses povos está baseada na sucessão ecológica: após o uso agrícola de uma clareira, o espaço é deixado em repouso para regeneração natural da vegetação secundária (capoeira), o que favorece a recuperação da fertilidade do solo e o retorno da biodiversidade.

Durante esse processo, há uma transição gradual de espécies pioneiras para espécies secundárias e clímax, imitando os processos naturais de regeneração. As lavouras indígenas geralmente combinam culturas alimentares como milho, mandioca, feijão, batata-doce e abóbora com plantas medicinais, aromáticas, frutíferas e madeiráveis.

A seleção de espécies não é aleatória, mas respeita a estratificação ecológica, com culturas rasteiras, médias e altas ocupando diferentes níveis do dossel, e a função ecológica de cada planta no sistema. Além disso, os sistemas de cultivo indígena integram o conhecimento sobre fauna polinizadora, ritmos lunares, épocas de coleta e os sinais da floresta.

Quilombos: Territórios de Resiliência Agroflorestal

As comunidades quilombolas são territórios de resistência cultural, social e ecológica. A experiência agrícola dessas comunidades resulta da combinação do saber africano com as condições do ambiente tropical sul-americano. Os quilombolas desenvolveram sistemas agroflorestais adaptativos, com plantios consorciados e sucessivos, que incluem espécies alimentares, medicinais, ornamentais, florestais e forrageiras.

Em muitas comunidades, os roçados são implantados de forma rotativa, com longos períodos de pousio que permitem a regeneração natural da vegetação e do solo. Culturas como milho, mandioca, cará, banana, café, cana, inhame e frutas nativas são combinadas com árvores de sombra, leguminosas e adubos verdes. Esses sistemas favorecem o controle natural de pragas, a conservação hídrica, a produção contínua de matéria orgânica e a alimentação diversificada.

Além disso, os quilombolas praticam o manejo ecológico do mato, onde a vegetação espontânea não é eliminada, mas controlada por roçagens seletivas, picagem, acamamento ou incorporação como cobertura morta. O mato, longe de ser um problema, é compreendido como um recurso essencial para a fertilidade do solo e abrigo de polinizadores.

A integração funcional e a regeneração como eixo condutor

Em ambos os contextos, indígena e quilombola, percebe-se que o manejo agrícola está baseado em processos regenerativos, não apenas produtivos. Isso significa que o solo não é um substrato a ser explorado, mas um organismo vivo em constante formação. A produção de alimentos está associada à construção de paisagens ecologicamente funcionais, nas quais as funções ecológicas (como a infiltração da água, a reciclagem de nutrientes, a proteção contra erosão, o abrigo à fauna e a fertilidade microbiana) são consideradas e favorecidas.

Dessa forma, o cultivo se torna uma forma de diálogo com os ecossistemas, e não uma imposição artificial de padrões produtivistas. Essa lógica é compatível com o conceito moderno de agricultura sintrópica, que se baseia na ideia de que a produção agrícola pode ser uma ferramenta para aumentar a complexidade e a saúde do ambiente.

Exemplo de sucessão prática: roçados e quintais florestais

Muitos quintais tradicionais indígenas e quilombolas funcionam como núcleos agroflorestais complexos, com diversidade vertical e temporal. Árvores frutíferas como jabuticabeira, goiabeira, banana, abacate, cupuaçu, além de palmeiras como pupunha, juçara ou babaçu, são cultivadas junto a culturas anuais e medicinais.

Nos roçados, há alternância planejada de espécies, com o aproveitamento dos resíduos vegetais e o plantio de coberturas como feijão-de-porco, mucuna, guandu e crotalária para enriquecer o solo entre os ciclos produtivos. A sucessão agrícola é articulada com o ciclo de vida das plantas e com os usos múltiplos da paisagem, que também incluem coleta, caça e rituais.

Implicações ecológicas e sociais

Reconhecer os povos indígenas e quilombolas como precursores da agricultura sintrópica não é apenas um ato de justiça histórica, mas também um caminho para resgatar modelos sustentáveis de produção agrícola que valorizam a vida, a cultura e a integridade ecológica dos territórios. Suas práticas são adaptadas ao clima tropical, aproveitam a biodiversidade local e operam sob lógica de abundância, não de escassez.

Além disso, esses sistemas estão profundamente enraizados na dimensão simbólica e espiritual do território, promovendo relações respeitosas com a terra, com os ciclos naturais e com os seres vivos. Em um momento em que a agricultura convencional enfrenta os limites de sua expansão predatória, os sistemas tradicionais oferecem modelos viáveis e resilientes de transição agroecológica.

Considerações finais

A chamada agricultura sintrópica contemporânea encontra, nos povos indígenas e comunidades quilombolas, os verdadeiros pioneiros de sua lógica ecológica e filosófica. Suas práticas não apenas anteciparam os princípios que hoje são revalorizados por correntes agroecológicas modernas, como também demonstraram na prática que é possível produzir com abundância sem destruir.

Ignorar essa contribuição é repetir a invisibilização histórica de saberes que foram sistematicamente marginalizados. Valorizar e fortalecer essas práticas, ao contrário, é apostar em um futuro regenerativo, plural e ecologicamente funcional para a agricultura brasileira. É também reconhecer que a inovação agrícola mais promissora do século XXI pode estar justamente na sabedoria dos que sempre cuidaram da terra com humildade, ancestralidade e respeito.

* Afonso Peche Filho é pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC

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