Do desafio africano da filosofia, ao desafio africano da teologia

texto de Samuel Joina Ngale

Resumo

Este ensaio propõe uma revisão crítica e sistemática dos principais paradigmas da teologia africana desenvolvidos nas últimas cinco décadas, a partir de uma estrutura triádica inspirada na memória histórica do continente: a África do Sofrimento, da Grandeza e da Promessa. Combinando análise teológica, provocação escatológica e referências bíblicas contextualizadas, o estudo questiona até que ponto a teologia africana — tal como articulada nas escolas clássicas (Kinshasa, Nairóbi, libertação sul-africana, culturalismo ganês) — foi capaz de conduzir o povo africano a uma verdadeira transformação teológica, social e espiritual.

Através da crítica interna, o ensaio expõe as contradições de uma teologia frequentemente confinada ao espaço académico e incapaz de enfrentar os Faraós internos da pós- colonialidade: elites opressoras, patriarcado estrutural, corrupção institucional e teologias da prosperidade que distorcem a escatologia cristã. Propõe-se, assim, uma superação das fronteiras entre inculturação, libertação, reconstrução e espiritualidade popular, em favor de uma abordagem teológica integrativa, prática e profética. O texto defende que a teologia africana não deve apenas traduzir o Evangelho para as culturas africanas, mas reencarnar a fé como instrumento de justiça, reconciliação e esperança concreta.

Ao ancorar-se em figuras como John Mbiti, Mercy Amba Oduyoye, Desmond Tutu, Jesse Mugambi, Kwame Bediako e Lamin Sanneh, o ensaio reimagina a missão teológica como vocação pública, comunitária e espiritual — um caminho entre o sofrimento de ontem, a dignidade de hoje e a promessa escatológica de um Reino de Deus incarnado no solo africano.

Palavras-chave: Teologia africana; escatologia; inculturação; libertação; reconstrução; ética pública; Reino de Deus; pós-colonialismo; justiça teológica.

Introdução

O Reino de Deus está destinado a florescer na África ou é para sempre adiado pelo deserto da história? Será que a Terra Prometida de justiça e paz se enraízará em solo africano, ou permaneceremos a leste do Éden, vagando e esperando? Tais perguntas provocativas – tingidas de ironia e nascidas da saudade – enquadram o desafio para a teologia africana. Exortam-nos a imaginar utopias de libertação e totalidade, mesmo quando lidamos com realidades brutais.

Este ensaio emerge de um diálogo transdisciplinar entre as ciências humanas, despoletado pelo provocador artigo do filósofo moçambicano Severino Ngoenha, intitulado O Desafio Africano da Filosofia (2025). Nesse texto seminal, Ngoenha estrutura a sua crítica em torno de três conceitos-chave — Sofrimento, Grandeza e Promessa — para interrogar a eficácia da filosofia africana contemporânea a parir verdadeira libertação para os africanos, volvido mais de meio século após as chamadas independências das nações africanas. Inspirando-se nessa grelha conceptual, este ensaio transpõe a pergunta para o domínio da teologia, questionando a sua capacidade transformadora à luz das mesmas categorias. Ao invés de uma fundamentação filosófica, utilizamos aqui uma base teórica teológica, mais especificamente escatológica e libertadora, para avaliar se a teologia africana, tal como tem sido produzida e praticada, conseguiu realizar — ou sequer anunciar com clareza — a promessa de um mundo novo, justo e habitável.

O cristianismo africano, vibrante e numeroso, ainda enfrenta um continente marcado por conflitos, desigualdades e heranças do colonialismo. A tarefa da teologia, portanto, é audaciosa: proclamar boas novas que não são ilusões ingênuas, mas uma utopia realista, para usar o termo de Ernst Bloch. O desafio africano da teologia é manter em tensão o passado ferido da África e o seu futuro prometido – transformar a fé numa força que liberta e cura.

Por mais de meio século, teólogos africanos experimentaram novos paradigmas para inculturar o evangelho e emancipar os oprimidos. Escolas clássicas de teologia africana surgiram na era pós-colonial: a escola de etnoteologia de Kinshasa procurou enraizar o cristianismo na cultura africana; a escola de reconstrução de Nairobi apelou à reconstrução da sociedade após o colonialismo; A Teologia Negra Sul-Africana exigia a libertação da injustiça racial e económica; a escola culturalista Ganesa explorou a interface entre Cristo e a tradição africana; e outras vozes (por exemplo, feminista, ecológica, pentecostal) acrescentaram novas dimensões. No entanto, depois de todos esses esforços, é preciso perguntar com um toque de ironia: por que, depois de 50+ anos, essas teologias entregaram tão pouco por meio de emancipação tangível, esperança duradoura ou libertação estrutural para os povos africanos? À teologia na África não faltam palavras eloquentes e grandes visões de um novo Éden ou de uma Nova Jerusalém. O que falta, talvez, seja o poder de transformar essas visões em realidade. Nas seções que se seguem, revisitamos a tríade da história africana – Sofrimento, Grandeza, Promessa – através de uma lente teológica liberacionista. Interrogaremos os pressupostos de cada escola teológica, exporemos suas contradições e desafiaremos sua eficácia. Fundamentado nas narrativas libertadoras da Escritura (Êxodo, os profetas, a visão dos Evangelhos sobre o Reino, a nova criação do Apocalipse), este ensaio mantém um tom acadêmico ao mesmo tempo em que emite uma provocação profética: Se a teologia africana não pode envolver e transformar as condições reais da vida africana, ela ainda pode reivindicar relevância? O caminho começa com o sofrimento, o cadinho em que a teologia africana ou prova a sua coragem ou falha ao seu povo.

A África do Sofrimento: a Teologia da Libertação em questão

A teologia africana nasceu na fornalha do sofrimento. A história do continente é escrita na linguagem do Êxodo: opressão sob os faraós do tráfico de escravos e do domínio colonial, seguida por andanças pelo deserto através do neocolonialismo, apartheid e violência. É uma história marcada por “séculos de opressão” em que potências estrangeiras arrancaram recursos, culturas e línguas africanas, deixando os povos africanos “praticamente sem os nossos próprios recursos” e tendo de criar e imaginar dentro dos quadros ocidentais impostos. Não admira que os cristãos africanos se identificassem com os escravos hebreus no Egito e ouvissem na Bíblia um Deus que diz: “Vi a miséria do meu povo… Ouvi-os gritar… e preocupa-me o seu sofrimento” (Ex 3, 7). O movimento sul- africano da Teologia da Libertação Negra surgiu na década de 1970 como resposta a este clamor, declarando que Deus está do lado dos oprimidos. Sob o regime brutal do apartheid, teólogos como Desmond Tutu e Allan Boesak pregaram um novo Êxodo – que Jesus Cristo, que veio “para libertar os oprimidos” (Lucas 4:18), estava presente na luta dos negros sul- africanos pela liberdade. A Teologia Negra na África do Sul desafiou explicitamente a igreja a se opor ao racismo e à exploração econômica como heresia, ecoando a insistência dos profetas bíblicos de que a adoração sem justiça é anátema (Amós 5:21-24). Seu grito de guerra era a libertação agora, não apenas no céu. Deste modo, a primeira tarefa da teologia africana era profundamente prática: nomear o pecado da opressão e proclamar que a salvação em Cristo deve significar libertação sócio-política aqui e agora.

No entanto, mesmo no meio dessa luta justa, um debate fervilhava sobre os rumos da teologia africana. James H. Cone, o fundador afro-americano da Teologia da Libertação Negra, criticou a teologia africana (como emergente fora da África do Sul) por ser muito “apolítica” – muito focada na cultura e identidade e muito pouco nas lutas políticas urgentes do povo negro. Por outro lado, John S. Mbiti – muitas vezes chamado de pai da teologia africana moderna – recriminou a abordagem de Cone como excessivamente estreita, muito fixada no racismo e na libertação política em detrimento da mais profunda “alegria salvífica e revelação teológica” do evangelho. Aqui estavam dois teólogos importantes, ambos profundamente cristãos e profundamente africanos em herança, mas puxando em direções diferentes: um para uma teologia da resistência em forma de Êxodo, o outro para uma integração mais ampla da fé e da cultura para além da política imediata. Entra Desmond Tutu, cuja vida e obra encarnavam uma síntese. Com sagacidade característica, Tutu perguntou: A Teologia Negra e a Teologia Africana são almas gêmeas ou antagonistas? Sua resposta: são “almas gêmeas” – círculos concêntricos da mesma realidade. “Eu mesmo”, escreveu Tutu, “acredito que sou um expoente da Teologia Negra vindo da África do Sul. Creio também que sou um expoente da Teologia Africana vinda como venho da África. Eu afirmo que a Teologia Negra é como o círculo interno e menor… que para nós, neste momento, é a teologia africana”. A visão de Tutu era que a luta pela libertação (Teologia Negra) era um subconjunto crucial do projeto maior da teologia africana; no contexto da África do Sul, fazer teologia responsavelmente significava fazer teologia negra, mas isso não esgotou a agenda teológica para toda a África.

Teologias negra e africana em diálogo – Desmond Tutu (centro) fez a ponte entre a politizada Teologia Negra de James Cone (esquerda) e a Teologia Africana (direita) focada na inculturação de John Mbiti, vendo-as como círculos complementares de uma realidade.

O legado da Teologia Negra Sul-Africana demonstra tanto o poder como os limites da teologia do sofrimento. Por um lado, energizou as igrejas para se juntarem aos movimentos de libertação e ajudou a deslegitimar teologicamente o apartheid. Os apelos ao Êxodo e a visão profética da justiça conferiram credibilidade moral à causa anti-apartheid e, de facto, muitos creditam ao ecuménico Documento Kairos (1985) – redigido por teólogos e pastores – a galvanização da resistência cristã. Os textos libertadores da Bíblia ganharam vida: assim como Moisés confrontou o Faraó com “Deixe o meu povo ir”, assim os líderes da igreja confrontaram Pretória com “Assim diz o Senhor: libertem os oprimidos!” Por outro lado, mais de cinquenta anos depois, a prometida “terra do leite e do mel” ainda é, em grande parte, uma terra de falta de terra e fome para as massas. O apartheid político acabou, mas a desigualdade económica, a xenofobia e a violência persistem na África do Sul e em todo o continente. Eis uma contradição dolorosa: a África é uma das regiões mais apaixonadamente religiosas do mundo, mas a opressão, a corrupção e o conflito permanecem profundamente enraizados. Por que a fé abundante do povo não se traduziu na justiça e na paz prometidas por essa fé? O fracasso da Teologia da Libertação em realizar plenamente a libertação estrutural convida à reflexão crítica. Alguns observadores observam que, após a independência, muitas igrejas se voltaram para dentro ou foram cooptadas por poderes políticos; outros, como Cone, apontaram que, além de males óbvios como o apartheid, os teólogos africanos muitas vezes “tinham pouco a oferecer às lutas políticas e existenciais” do povo. De facto, uma vez derrotado o mal espetacular do apartheid, os pecados menos visíveis, mas generalizados – a pobreza, a violência baseada no género, a governação autoritária – revelaram-se alvos mais elusivos para os teólogos e as igrejas combaterem. Em muitos países, o discurso teológico recuou para temas mais seguros de espiritualidade ou inculturação, cedendo a arena pública à política secular ou importando teologias pentecostais da prosperidade.

Mais tragicamente, o genocídio ruandês de 1994 demonstrou a impotência da teologia africana num momento de sofrimento colossal: apesar de o Ruanda ser esmagadoramente cristão, nem a inculturação nem a teologia da libertação impediram os cristãos de se massacrarem uns aos outros em linhas tribais. A teologia não tinha confrontado suficientemente as idolatrias étnicas nem formado consciências contra a violência. Allan Boesak, um importante teólogo negro, perguntou mais tarde se a teologia africana havia perdido sua vantagem profética na era pós-colonial, tornando-se “inocente” novamente diante da injustiça. O desafio para a teologia do sofrimento continua, portanto. Deve ir além do protesto para a reconstrução – além da denúncia do mal para a construção de alternativas viáveis. Como na narrativa bíblica, a viagem do Egito não termina no Mar Vermelho; continua até o Sinai (aliança e reforma moral) e em direção à Terra Prometida (uma sociedade justa sob o reinado de Deus). A Teologia da Libertação Africana, para permanecer relevante, deve alargar o seu âmbito. Deve abordar não só a opressão racial, mas todas as formas de desumanização: corrupção, ódio étnico, destruição ecológica e subjugação das mulheres. Deve falar, por exemplo, contra os “faraós” do desgoverno e da cleptocracia que hoje causam sofrimento de forma tão apaixonada como falou contra os opressores coloniais no passado. Caso contrário, a teologia do sofrimento corre o risco de se tornar uma relíquia de uma época passada – um sermão poderoso à espera de um Pentecostes do mundo real para incendiá-lo.

Em suma, a África do Sofrimento deu origem a um grito de libertação na teologia africana que moldou profundamente a paisagem religiosa do continente. Este grito, ancorado na mensagem libertadora das Escrituras, desafiou o cristianismo a levar a sério a dor africana como dor de Deus. Obteve vitórias notáveis no despertar da consciência da Igreja. No entanto, também revelou tensões internas (libertação vs. inculturação) e fracassos práticos. A Cruz foi pregada; E a Ressurreição? O risco é uma teologia presa na Sexta-Feira Santa – crucificando constantemente os poderes da opressão (com razão), mas não levando à manhã de Páscoa para os pobres e oprimidos da África. O próximo movimento da nossa reflexão, então, volta-se para a Grandeza: recuperar as esperanças e glórias enterradas da herança africana e ver como a teologia africana procurou afirmar que a África não era apenas uma terra de sofrimento, mas também uma terra de dignidade e gênio dados por Deus. Poderia a memória da grandeza passada ser um recurso para a libertação, ou tornou-se um desvio nostálgico?

A África da Grandeza: Inculturação, Identidade e Contradição

Se a primeira tarefa da teologia africana era protestar contra o sofrimento desumanizante, a segunda era recuperar a grandeza africana – a humanidade, a cultura e o gênio dos povos africanos dados por Deus que o colonialismo tentou apagar. A África da Grandeza refere-se aos longos séculos antes da opressão, quando as civilizações africanas prosperaram: o antigo Egito e a Núbia, os impérios de Gana, Mali e Songhai, o reino do Kongo, Grande Zimbábue, Benim e muito mais. Estas civilizações «revelaram a capacidade de organização política, de criação filosófica, de matemática, de arte, de espiritualidade e de diplomacia». No entanto, ideólogos coloniais – de Hegel a Lord Lugard – propagaram o mito racista de que a África não tinha história ou realização digna de nota, justificando convenientemente a “missão civilizadora”. Em resposta, historiadores e intelectuais africanos (Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga, Bethwell Ogot e outros) desconstruíram esta falsificação histórica, provando que a África não é um vazio escuro, mas uma “matriz civilizacional esquecida” que influenciou profundamente a história humana. Teólogos cristãos africanos juntaram- se a este projeto de recuperação. A escola de etnoteologia de Kinshasa, surgida na década de 1970 no Zaire (RD Congo), exemplificou essa tendência: teólogos católicos como Vincent Mulago, Tharcisse Tshibangu e Bimwenyi-Kweshi mergulharam nas religiões tradicionais        africanas,     buscando pontos           de contato                   com          o cristianismo. Eles argumentaram que sob os escombros do desprezo colonial jaziam ricas perceções religiosas – um sentido do sagrado, de comunidade (muitas vezes expresso em conceitos como ubuntu), da continuidade entre os vivos e os antepassados – que poderiam servir como base teológica para o cristianismo africano. John Mbiti afirmou famosamente que os africanos são “notoriamente religiosos”, vivendo em um universo saturado da presença de Deus. Em vez de ser tabula rasa à espera do evangelho europeu, a África já havia experimentado a auto-revelação do Criador em sua própria herança. A tarefa era inculturar o cristianismo – deixá-lo falar a língua materna das culturas, símbolos, provérbios e ritmos da África.

O Arcebispo Desmond Tutu elogiou este esforço de inculturação como essencial para a autoestima africana. Ele observou que os teólogos africanos “começaram a demonstrar que a experiência e a herança religiosa africana não eram ilusórias e que deveriam ter formado o veículo para transmitir as verdades do Evangelho à África”. Essa reabilitação da religião indígena foi vital para o autorrespeito do africano, quebrando o “pressuposto tácito de que a religião e a história na África datam do advento do homem branco”. Mostrou que os africanos tiveram um conhecimento genuíno de Deus, e dos seus próprios modos de comunhão com o divino. Em outras palavras, a teologia da inculturação declarava: “Não éramos indigentes espirituais antes da vinda dos missionários; o Deus de Abraão já era, de alguma forma, o Deus dos nossos antepassados também.” A escola culturalista ganense, representada por teólogos como Kwame Bediako e Mercy Amba Oduyoye, também afirmou que as tradições pré-cristãs africanas poderiam ser uma preparatio evangelica, preparando o caminho para o evangelho tanto quanto a filosofia greco-romana fez para o cristianismo primitivo. Bediako argumentou que os africanos convertidos não deixaram de ser africanos; a sua identidade em Cristo deve integrar-se, não se obliterar, a sua identidade cultural. Ele e Lamin Sanneh (um estudioso gambiano da história da missão) destacaram como a tradução das Escrituras para línguas africanas nos séculos 19 e 20 indigenizou o cristianismo, permitindo que os africanos fizessem o evangelho verdadeiramente seu. Isso é visto, por exemplo, no uso do nome Nungungulu, Mwari, Xikwembu, Nzambi, Mulungu ou Olodumare para Deus – afirmando que o Deus da Bíblia estava em ação na África muito antes do contato europeu.

A teologia da inculturação, então, foi uma tréplica ousada ao cristianismo colonial. Tratava a cultura africana não como um problema, mas como um recurso teológico. As igrejas adaptaram o culto para incluir tambores, dança e liturgia vernácula; teólogos escreveram sobre Cristo como Chefe, Ancestral ou Curandeiro em termos africanos. Um exemplo marcante é a reflexão do falecido teólogo anglicano John Mbiti sobre o ubuntu (a ética pan- africana da comunidade): “Eu sou porque somos, já que somos, logo existo”. Mbiti e outros viram em tais provérbios uma ressonância com temas bíblicos da koinonia (comunhão) e do Corpo de Cristo. A escola de Kinshasa também explorou conceitos como a veneração dos antepassados, ligando-os à comunhão dos santos na teologia cristã, ou reinterpretando os sacrifícios africanos como prenúncio do sacrifício de Cristo. Todos esses esforços visavam mostrar que o cristianismo não é uma importação branca, mas sim uma semente que pode germinar e florescer no rico solo da espiritualidade africana.

Apesar de toda a sua promessa, no entanto, o projeto de inculturação também expôs contradições e enfrentou duras críticas. Uma questão era o romantismo seletivo da cultura africana. Ao procurar passados utilizáveis, alguns teólogos pintaram um quadro excessivamente idílico da África pré-colonial – aldeias harmoniosas unidas na fé e na justiça. A realidade, é claro, era mais complexa: as sociedades tradicionais tinham suas próprias formas de exclusão, patriarcado e violência (por exemplo, sistemas de castas, guerras de clãs, práticas rituais prejudiciais a alguns). Mercy Amba Oduyoye, teóloga ganesa pioneira e matriarca da teologia das mulheres africanas, criticou duramente qualquer teologia que encobrisse a injustiça de gênero em nome da cultura. Escrevendo a partir da perspetiva das mulheres africanas (que muitas vezes sofrem o peso da tradição e da opressão moderna), Oduyoye insistiu que a cultura deve ser criticada mesmo quando é apreciada. “A teologia das mulheres africanas”, escreve, “está a desenvolver-se no contexto dos desafios globais e das situações na cultura religiosa africana que exigem transformação”. Por outras palavras, a inculturação não deve tornar-se uma desculpa para batizar costumes opressivos; pelo contrário, deve capacitar os africanos (mulheres e homens) a transformar a cultura à luz dos valores libertadores do Evangelho. Oduyoye e o Círculo de Teólogas Africanas Preocupadas (fundado em 1989) expandiram a teologia africana trazendo as experiências das mulheres à tona, fazendo perguntas desconfortáveis: quão libertadora é uma teologia que exalta a tradição africana” se essa tradição silencia as vozes das mulheres ou as confina a papéis subservientes? O seu desafio expôs um ponto cego das anteriores escolas teológicas exclusivamente masculinas: o fracasso em ver que a verdadeira emancipação teológica em África deve incluir a emancipação do patriarcado. Como Oduyoye corajosamente afirmou, a “revitalização da teologia africana” é um pré- requisito para outras independências – implicando que somente quando a própria teologia estiver livre dos paradigmas coloniais e sexistas pode contribuir para a plena libertação da África.

Outra crítica veio de teólogos bíblicos e sistemáticos, como o falecido estudioso evangélico Byang Kato e o historiador católico Adrian Hastings. Eles advertiram que, no entusiasmo pela religião tradicional africana, alguns teólogos da inculturação corriam o risco de negligenciar ou diluir as doutrinas cristãs fundamentais. Hastings observou com alguma preocupação que a teologia africana primitiva era “uma espécie de diálogo” com a herança africana, a ponto de “áreas da doutrina cristã tradicional (…) desaparecem ou são marginalizados” – notadamente, uma reflexão robusta sobre a cristologia e a singularidade de Cristo pode diminuir quando o foco muda para a continuidade com os antepassados. Byang Kato, escrevendo na década de 1970, acusou mais duramente alguns teólogos africanos de sincretismo, cunhando a expressão “armadilhas teológicas na África”. Embora muitos sentissem que Kato exagerou no caso, sua cautela subjacente era que o cristianismo africano deve permanecer enraizado nas Escrituras, mesmo quando se adapta à cultura. Os melhores teólogos da inculturação deram ouvidos a isso, visando um verdadeiro engajamento (não fusão acrítica) entre o cristianismo e a cultura africana – o que o teólogo queniano Jesse Mugambi chamou de “hermenêutica da identidade”, buscando uma síntese onde ser autenticamente africano e autenticamente cristão são uma e a mesma coisa.

Talvez a contradição mais irónica do paradigma da Grandeza seja a pouca mudança estrutural que produziu, apesar do seu impacto cultural positivo. A teologia da inculturação certamente ajudou a desmantelar a mentalidade colonial na Igreja. Na década de 1990, era possível encontrar bateristas africanos na missa católica e nomes de Tsonga para Deus em hinos protestantes – importantes vitórias simbólicas. Os cristãos africanos viam cada vez mais o cristianismo não como uma religião estrangeira, mas como a sua. No entanto, no plano sociopolítico, é difícil dizer que a inculturação levou a uma África mais justa ou igualitária. Uma liturgia infundida com dança africana não aborda automaticamente a corrupção governamental ou o ódio étnico. Em alguns casos, os líderes da igreja tornaram-se ávidos promotores dos “valores africanos” enquanto fechavam os olhos às violações dos direitos humanos por parte dos regimes africanos (talvez em nome de não arejar roupa suja em frente ao Ocidente). Além disso, quando o século 21 amanheceu, o cristianismo africano foi varrido por uma onda de movimentos pentecostais e carismáticos enfatizando prosperidade, milagres e salvação individual. Esses movimentos muitas vezes tinham pouco interesse na teologia da inculturação acadêmica – eles já usavam organicamente a língua e a música locais, mas sem o aparato intelectual. O resultado é que a teologia africana acadêmica às vezes se viu isolada: celebrada em revistas e conferências, mas não claramente impulsionando a práxis de fé dos milhões nos bancos ou nas ruas.

No entanto, a recuperação da grandeza africana na teologia não foi em vão. Refundou a fé dos cristãos africanos na verdade de que Deus esteve com a África ao longo dos tempos. Expôs e rejeitou a mentira do colonizador de inferioridade africana. E forneceu um contrapeso necessário ao libertacionismo puramente político: os seres humanos não vivem apenas do ativismo; identidade e dignidade importam. Como Jesus disse, “o povo não viverá só de pão, mas de cada palavra da boca de Deus” – e para a teologia africana, parte dessa “palavra” foi dita nos antepassados, na sabedoria cultural, no próprio ser da humanidade africana feito à imagem de Deus. Integrar pão e palavra, libertação e inculturação, continua a ser um desafio permanente. Os teólogos africanos de hoje reconhecem cada vez mais que precisamos de uma teologia profundamente enraizada na cultura local e corajosamente profética contra a injustiça. Um exemplo promissor é a ascensão da teologia pública africana – estudiosos como Tinyiko Maluleke e NBede Nhlapo (composição hipotética) que argumentam que a teologia deve abordar questões públicas (política, economia, gênero) de maneiras culturalmente ressonantes. Da mesma forma, os teólogos mais jovens recorrem aos recursos da filosofia africana (por exemplo, a ética Ubuntu) para criticar a economia neoliberal ou a degradação ambiental na África. Ao fazê- lo, estão sobre os ombros das escolas de Kinshasa e Nairobi.

Para concluir esta seção, a África da Grandeza na teologia era sobre memória e identidade. Lembrou a um povo ferido que a sua história não começava com dor; começou no Jardim, por assim dizer – no amor e providência de Deus há muito tempo. Proclamou que o património cultural africano pode carregar a arca da fé, não destruí-la. Mas a memória pode ser uma faca de dois gumes: pode inspirar o renascimento, ou pode prender alguém na nostalgia. A questão que a teologia africana tinha de enfrentar era: celebrar a grandeza de ontem nos prepara para enfrentar as crises de hoje? A resposta dependeria de esses tesouros culturais serem aproveitados para a práxis libertadora. Quando nos voltamos para o movimento final – Promessa – perguntamos: Como a teologia africana imaginou o futuro? Depois do Êxodo (Sofrimento) e do Sinai (identidade de inculturação), vemos uma terra prometida pela frente? Ou será que a promessa se tornou um sonho adiado, “um cheque que voltou marcado por fundos insuficientes”, para usar a metáfora de Martin Luther King Jr.? A próxima seção avaliará criticamente a teologia da esperança e da reconstrução na África, e por que o horizonte escatológico ainda nos escapa após décadas de trabalho teológico.

A África da Promessa: Escatologia, Reconstrução e Realidade

O movimento final na tríade é a África da Promessa – a visão orientada para o futuro do que a África poderia ser sob o reinado de Deus. Este tema é inerentemente teológico: é sobre esperança, escatologia e a confiança de que a história tem um objetivo desejado por Deus (muitas vezes descrito em imagens bíblicas como o Reino de Deus ou a Nova Jerusalém). Em África, a promessa tem sido articulada não só nos santuários das igrejas, mas também na praça pública. No alvorecer da independência, líderes políticos e religiosos falaram de uma África em ascensão para criar uma civilização mais justa e humana. De Kwame Nkrumah a Julius Nyerere, do teólogo Kwesi Dickson ao romancista Ngũgĩ wa Thiong’o, um refrão comum era que a luta da África não era apenas para se juntar ao mundo das nações, mas para transformá-lo. Como diz um texto, libertadores e visionários africanos “lutaram contra o colonialismo, mas por um mundo novo, por uma humanidade reconciliada”. Isto faz eco da esperança dos profetas bíblicos de que “a nação não levantará a espada contra a nação, nem aprenderão mais a guerra” (Is 2, 4) – por outras palavras, a promessa da África faz parte de uma promessa universal de paz e justiça. A teologia cristã em África viu-se assim desafiada a articular uma escatologia que falasse com as realidades africanas: o que é a “Terra Prometida” para a África pós-colonial? Como é a salvação do outro lado da libertação política? Na década de 1990, quando o Apartheid caiu e as ditaduras de partido único deram lugar (em alguns lugares) à democracia, esta questão tornou-se aguda. Isso motivou o que hoje é conhecido como a escola de Nairobi de teologia da reconstrução.

O teólogo queniano Jesse N. K. Mugambi emergiu como uma voz principal, pedindo uma mudança de paradigma na teologia africana. Em 1990, pouco depois da libertação de Nelson Mandela e da independência da Namíbia, Mugambi dirigiu-se à Conferência das Igrejas de Toda a África (AACC) com uma proposta provocadora: o cristianismo africano deve “mudar a engrenagem teológica do paradigma da libertação, que enfatizava o motivo do Êxodo, para o da reconstrução, que enfatiza o motivo pós-exílio”. O Êxodo de Israel (significando a libertação da escravidão) tinha sido um modelo poderoso para a teologia africana na era da luta; mas Mugambi observou que na Bíblia, depois do Êxodo e do deserto, veio a tarefa de construir uma nova sociedade na Terra Prometida e, mais tarde, reconstruir após o exílio. Da mesma forma, a África havia cruzado um limiar – formalmente livre do domínio colonial e do apartheid – e agora enfrentava o trabalho mais árduo de construção da nação, desenvolvimento econômico e cura. Mugambi elaborou essa visão em seu livro From Liberation to Reconstruction (1995), essencialmente escrevendo um manifesto para uma teologia que enfatiza Neemias em vez de Moisés – o reconstrutor em vez do rebelde. Em termos bíblicos, foi um chamado para se concentrar em livros como Neemias e Esdras, onde a comunidade retorna às ruínas e precisa reconstruir muros, meios de subsistência e vida religiosa. Teologicamente, a reconstrução significava envolver questões de boa governança, construção da paz, alívio da pobreza e reconciliação como preocupações centrais da fé.

A agenda de reconstrução tinha uma forte e intuitiva chamada. Muitos africanos comuns estavam exaustos por guerras e instabilidade; eles ansiavam por “normalidade” – vida decente, educação, saúde, oportunidade – a proverbial “figueira e videira” sob a qual todos podem sentar-se sem medo (Miquéias 4:4). As igrejas estavam (e permanecem) entre as poucas instituições em funcionamento em muitos países africanos, então era lógico que os teólogos exortassem a Igreja a assumir a liderança na reconstrução social: promovendo a unidade, lutando contra a corrupção, modelando a liderança servidora, e assim por diante. Mugambi foi mais longe ao argumentar que África precisa de novas narrativas inspiradoras (até usou o termo “mitos” num sentido positivo) para substituir as narrativas tóxicas deixadas pelo colonialismo. “O mito de um povo em desaparecimento deve ser substituído pelo mito de um povo ressurgente e resiliente”, escreveu; “O mito das pessoas desesperadas deve ser substituído pelo mito de um povo cheio de esperança. O mito de um povo faminto deve ser substituído pelo mito de um povo capaz de se alimentar”, e assim por diante. Este foi um apelo teológico para reimaginar a identidade africana – para ver os africanos não através de lentes coloniais de vitimização ou falta, mas através de uma lente esperançosa de arbítrio, criatividade e suficiência sob a providência de Deus. Em termos seculares, ouvem-se ecos da retórica renascentista africana (por exemplo, os discursos de Thabo Mbeki) e de iniciativas como a Agenda 2063 da União Africana que sonham com um continente integrado, pacífico e próspero. Em termos teológicos, ouve-se a promessa bíblica de que “Estou prestes a fazer uma coisa nova; você não percebe isso?” (Is 43,19).

No entanto, mais de 30 anos depois do apelo à reconstrução, é preciso confrontar uma verdade preocupante: o edifício de uma “nova África” continua em grande parte em construção – e, por vezes, a construção parece ter estagnado ou mesmo invertido. Os críticos apontaram várias razões pelas quais a teologia da reconstrução não alcançou um sucesso estrondoso. Em primeiro lugar, pode ter sido demasiado otimista quanto à disponibilidade dos líderes políticos africanos para abraçar a mudança. A década de 1990 assistiu a transições esperançosas em alguns países, mas também ao entrincheiramento do poder noutros e à erupção de novos conflitos (Ruanda, Congo, Somália, etc.). As teologias da reconstrução lutaram para responder quando as nações caíram no caos (O que significa “reconstrução” em um lugar como a RDC, onde a guerra nunca para totalmente? ou na Somália, onde o Estado efetivamente entrou em colapso?). Em segundo lugar, a reconstrução exigia uma orientação prática de longo prazo para a qual muitos teólogos não eram treinados. É indiscutivelmente mais fácil escrever um sermão de libertação emocionante contra um regime perverso do que conceber um quadro teológico para o desenvolvimento económico ou mecanismos anticorrupção. A escola de Nairobi forneceu uma visão ampla, mas talvez ferramentas insuficientes. Alguns observaram que os teólogos africanos não se basearam significativamente na doutrina social católica ou em outros recursos que poderiam ter reforçado sua ética social para a construção da nação. O resultado foi que a “reconstrução” permaneceu um tanto vaga – um slogan abraçado em reuniões ecumênicas mais do que um rigoroso programa teológico implementado no terreno.

As próprias igrejas também apresentavam um paradoxo. Enquanto algumas igrejas principais (católicas, anglicanas, presbiterianas, etc.) se alinharam com o tema da reconstrução – envolvendo-se em negociações de paz, administrando escolas e hospitais, defendendo a boa governança – o segmento de crescimento mais rápido do cristianismo africano foi o pentecostalismo, que muitas vezes tinha um foco diferente. O boom pentecostal e neopentecostal trouxe uma ênfase na salvação individual, experiência carismática e, muitas vezes, um “evangelho da prosperidade” que tratava a riqueza e o sucesso como sinais do favor de Deus.

Para muitos destes círculos, falar de pecado estrutural ou de reconstrução nacional soava demasiado político ou simplesmente irrelevante para a fé pessoal. Consequentemente, o discurso teológico africano e o cristianismo popular africano se distanciaram um pouco. Os teólogos acadêmicos falavam do Êxodo e do Jubileu, as massas ouviam os pregadores falarem dos muros de Jericó caindo para o avanço pessoal ou de semear sementes para colher recompensas financeiras. O efeito líquido foi que a visão social transformadora esmoreceu. Em vez de uma marcha coletiva em direção à Terra Prometida, as pessoas estavam tentando “obter as suas” individualmente, às vezes até se aproveitando umas das outras no processo (como visto em certos movimentos religiosos exploradores). Não se trata de descartar os pontos positivos genuínos do pentecostalismo africano (como sua indigenização do culto e seu apelo ao público jovem e urbano), mas evidencia uma desconexão: a teologia da promessa em seu sentido comunitário-estrutural não se infiltrou no imaginário cristão popular tão profundamente quanto talvez o confronto da Teologia da Libertação com o mal óbvio tenha feito em tempos anteriores.

Devemos também escrutinar o conteúdo da promessa da teologia africana articulada. Foi utópico demais, não utópico o suficiente ou mal dirigido? Alguns teólogos, especialmente aqueles influenciados pelas teologias ocidentais da esperança (Jürgen Moltmann, etc.), falavam em termos grandiosos de esperança escatológica – o “Ainda não” que dá sentido ao presente. Eles encontraram ressonância em espirituais e hinos africanos que olham para o céu ou para o mundo vindouro. Há inegável conforto e força na crença de que “os problemas não duram sempre” e que Deus enxugará todas as lágrimas (Ap. 21, 4). Mas se essa esperança se tornasse de outro mundo, corria o risco de se transformar em um mecanismo de enfrentamento em vez de uma força revolucionária. Por outro lado, se a promessa foi formulada em termos puramente mundanos (desenvolvimento, democracia, “soluções africanas para os problemas africanos”), às vezes faltava profundidade teológica ou distinção – essencialmente sobrepondo-se a visões humanistas seculares. O gênio da esperança bíblica é que ela é ao mesmo tempo transcendente (enraizada na nova criação final de Deus) e iminente (entrando na história agora). Encontrar esse equilíbrio na teologia africana revelou-se difícil. Algumas igrejas voltaram a pregar pie-in-the-sky (confortando acriticamente as pessoas com a vida após a morte enquanto toleravam a injustiça agora), enquanto outras se envolveram em ativismo, mas sem bases espirituais sustentadas, levando ao esgotamento ou à cooptação.

Ao perguntar por que a promessa permanece não cumprida, não implicamos que a teologia africana tenha sido fútil. Pelo contrário, a própria articulação destes paradigmas (sofrimento-libertação, inculturação-identidade, reconstrução-esperança) tem sido uma conquista extraordinária do pensamento cristão. E houve sucessos localizados: as igrejas em Moçambique desempenharam um papel fundamental nos acordos de paz (um exemplo de teologia da reconciliação no trabalho), no Gana o Conselho Cristão promove frequentemente a boa governação e medeia conflitos, na África do Sul a Comissão da Verdade e Reconciliação presidida por Tutu foi sustentada por uma profunda teologia do perdão e da responsabilidade. Além disso, o fato demográfico frequentemente citado – que a África é agora o centro de gravidade do cristianismo global – significa que as perspetivas teológicas africanas estão influenciando o cristianismo mundial (por exemplo, questões de comunidade, guerra espiritual e missão holística). Ainda assim, a questão central persiste: por que um continente tão fervorosamente cristão não experimentou mais da “vida abundante” (João 10:10) que o cristianismo promete?

Pode-se responder com frontalidade: talvez a teologia africana tenha proporcionado emancipação espiritual, mas não emancipação econômica – as pessoas são livres para orar, mas não livres da pobreza. Ou que prometia esperança escatológica – o céu está seguro, mas a vida diária ainda é infernal para muitos. As injustiças estruturais – dos padrões comerciais neocoloniais ao desgoverno interno – são formidáveis Golias, que a teologia sozinha não pode matar. No entanto, o papel profético da teologia é manter viva a visão do futuro de Deus e criticar tudo o que fica aquém do reino de Deus. Neste sentido, a teologia africana não deve renunciar à sua promessa. Na verdade, talvez seja necessário reavivá-la, aprendendo com os seus próprios fracassos. Talvez esteja a emergir uma teologia mais integrativa: uma teologia que não se segmente perfeitamente em “escolas”, mas que aborde os desafios de África de forma holística. Tal teologia seria intransigente em relação à justiça (canalizando a Teologia Negra), fundamentada na cultura e sabedoria locais (aprendendo com a inculturação), insistente na igualdade (atendendo às críticas feministas e liberacionistas) e focada na transformação prática (respondendo ao apelo de reconstrução de Mugambi). Basear-se-ia na narrativa completa da Bíblia – Êxodo e Exílio, Cruz e Ressurreição, Criação e Nova Criação. Seu símbolo pode não ser uma única estrada para fora do Egito, mas uma jornada com muitas etapas: lamentar com Jeremias, traçar estratégias com Neemias, proclamando com Amós, regozijando-se com o canto de Miriam e imaginando com Isaías um reino pacífico.

Teologicamente, a África da Promessa é, em última análise, sobre a escatologia, que no pensamento cristão tem um carácter paradoxal: o Reino de Deus já está entre nós (Lucas 17:21) e, no entanto, ainda vem em plenitude. A teologia africana talvez tenha enfatizado demais o “ainda não” em algumas épocas e o “já” em outras. O desafio agora é mantê-los unidos em tensão criativa – inspirar esperança sem complacência e urgência sem desespero. A visão final da Bíblia (Apocalipse 7:9) é uma multidão “de todas as nações, tribos, povos e línguas” reunida em adoração diante de Deus – o que nos assegura que as vozes africanas são essenciais no coro celestial. Esse quadro escatológico afirma a diversidade cultural (cada um traz sua língua e herança) dentro da unidade, e centra-se em torno do trono de Deus (ou seja, as histórias humanas encontram realização na presença de Deus). Talvez a promessa da teologia africana se realize à medida que se apropria mais profundamente desta visão: imaginar os muitos povos africanos reconciliados – uns com os outros e com Deus – contribuindo com as suas danças e tambores, os seus lamentos e louvores, para a tapeçaria da Nova Criação. Tal visão pode fortalecer a ação agora: como diz o Pai Nosso, “Venha o teu reino… na terra como no céu.” Se a teologia africana puder capacitar os crentes a viver uma antecipação desse futuro – construindo comunidades de solidariedade, verdade e amor que subvertem os ódios e divisões – então a promessa não se perde.

Em suma, a África da Promessa continua a ser um trabalho em curso. A escola teológica da reconstrução fez as perguntas certas sobre o que vem depois da libertação, mas dar respostas tem sido árduo. Aprendemos que as boas intenções e as declarações não são suficientes – “é preciso mais do que declarações. É necessário um espírito. Um espírito africano… Que a justiça de um não é suficiente – ou é injustiça”. Estas palavras ecoam a necessidade de o ubuntu – o espírito da humanidade partilhada – animar as nossas estruturas, não apenas os nossos slogans. Sem um núcleo ético-espiritual, a reconstrução é uma concha. Com ela, mesmo pequenos ganhos (uma aldeia reconciliada, uma eleição justa, uma paróquia livre de corrupção) tornam-se sinais do Reino. A promessa da teologia africana reside precisamente em acender esse núcleo espiritual em busca de mudanças tangíveis. A próxima secção concluirá sintetizando estas ideias e colocando de novo o desafio: pode a teologia africana, integrando o sofrimento, a grandeza e a esperança, ajudar verdadeiramente a conduzir a África à “plena liberdade” dos filhos de Deus (Rm 8, 21)?

Conclusão

Ao traçar o desafio africano da teologia através dos motivos de Sofrimento, Grandeza e Promessa, nos envolvemos em uma auditoria crítica de mais de cinco décadas de reflexão teológica africana. O quadro que emerge é de ideais elevados e realidades duras, de sucessos parciais e fracassos pungentes. A teologia africana tem sido ousada na imaginação: ousou declarar que Deus estava do lado dos oprimidos da África, que a cultura africana carrega a imago Dei e que um novo amanhecer para a África é divinamente desejado. Produziu pensadores ilustres – Mbiti, Tutu, Oduyoye, Mugambi, Bediako, Cone (honorariamente africano em sua influência), Sanneh, Boesak e muitos outros – e um rico corpus de escritos envolvendo as Escrituras com as realidades africanas. E, no entanto, o impacto destas escolas teológicas na experiência vivida pelos povos africanos permanece frustrantemente limitado. Ainda não nos encontramos no Reino de Deus na terra. As massas de cristãos comuns podem nunca ler um livro de teologia acadêmico, mas formam suas próprias teologias a partir de sermões, canções e sobrevivência. Há um fosso entre a academia e o banco, e um fosso ainda maior entre o banco e a praça pública. Se a teologia é, como foi para Gustavo Gutiérrez, da América Latina, “reflexão crítica sobre a práxis à luz da Palavra de Deus”, então a teologia africana deve perguntar em que práxis está refletindo – e se essa práxis está transformando ou apenas mantendo o status quo.

Uma observação impressionante é que as escolas clássicas da teologia africana têm operado um pouco isoladas umas das outras, cada uma enfatizando uma verdade crucial, mas parcial. A escola de Kinshasa/etnoteologia celebrava a identidade africana, mas muitas vezes evitava questões de injustiça. A escola sul-africana de Teologia Negra enfrentou o racismo e a opressão econômica, mas às vezes prestou pouca atenção à cultura ou ao gênero. A escola culturalista Ganesa (e outras influenciadas por ela) aprofundou a inculturação e a missão, mas pôde tornar-se distante da luta política. A escola de reconstrução de Nairobi lançou uma visão para o futuro, mas talvez tenha subestimado a profundidade das feridas históricas e dos conflitos em curso que inviabilizam a reconstrução. O resultado foi como um coro em que os sopranos, altos, tenores e baixos cantam poderosamente, mas nem sempre em harmonia.

Uma teologia africana verdadeiramente emancipatória pode exigir que essas vozes se misturem – uma inculturação libertadora que combata a opressão usando os recursos da cultura e religião africanas; uma teologia negra reconstrutiva que não apenas derruba estruturas malignas, mas constrói estruturas justas, inspirando-se em valores comunitários e incluindo mulheres e todos marginalizados. Em termos práticos, isso poderia significar, por exemplo, programas de teologia na África que treinam pastores e líderes leigos tanto em hermenêutica cultural (entendendo provérbios, costumes, arte como Mídia teológica) quanto em análise social (entendendo economia, política e como defender a justiça). Pode significar currículos da igreja que ensinam tanto a vida de santos e heróis africanos quanto as técnicas de construção da paz e resolução de conflitos. Pode significar uma espiritualidade que encontra Cristo tanto na mesa da comunhão como no campo de refugiados, tanto na dança da máscara como nas lágrimas dos abusados.

Outro ponto saliente é a necessidade de honestidade e arrependimento dentro da própria teologia africana. As gerações anteriores criticaram, com razão, o empreendimento missionário colonial por sua cumplicidade com a opressão. Mas o cristianismo africano tem agora de enfrentar as suas próprias falhas. Por que ainda vemos ódios étnicos explodindo sob a vigilância das igrejas? Por que o evangelho da prosperidade – que indiscutivelmente reimpõe uma espécie de exploração capitalista espiritualizada – se espalha sem controle enquanto vozes proféticas são deixadas de lado? Por que as mulheres (que formam a maioria na maioria das congregações) ainda estão sub- representadas na liderança da igreja e na erudição teológica? Estas são perguntas incómodas, mas uma teologia da integridade deve fazê-las. A Bíblia fornece um modelo nos profetas e no próprio Jesus, que implacavelmente expôs a hipocrisia e chamou a comunidade de fé para uma justiça mais profunda. A teologia africana deve submeter-se periodicamente à autocrítica para evitar tornar-se uma instituição complacente e não um movimento de renovação. A este respeito, a emergência de novos paradigmas como a teologia feminista africana, a teologia queer africana, e a ecoteologia são sinais de que a teologia na África não é estática. Eles desafiam os modelos mais antigos a expandir suas tendas (Is. 54:2). Por exemplo, uma perspetiva eco-teológica poderia revisitar a inculturação para perguntar como a reverência tradicional à terra e à criação pode ajudar a combater as crises ambientais atuais na África (desertificação, poluição, impactos das mudanças climáticas). Uma perspetiva feminista poderia revisitar a opção preferencial da Teologia da Libertação pelos pobres e perguntar: metade desses pobres não são mulheres e meninas – então como é a libertação para eles especificamente? Essa polinização cruzada de ideias pode revigorar a cena teológica e conectá-la mais diretamente com a transformação da sociedade.

Em última análise, a terra prometida a que aspira a teologia africana não é uma utopia realizável pelo nosso próprio génio ou esforços – é, no entendimento cristão, um dom de Deus. Mas Deus convida a cooperação humana no desdobramento dessa promessa. A teologia, portanto, serve como bússola e catalisadora: ela aponta o caminho (bússola), mantendo a visão das intenções de Deus sempre diante de nós, e energiza a ação (catalisador) inspirando fé, coragem e compromisso. O desafio africano da teologia é garantir que essa bússola seja calibrada para as próprias estrelas e cicatrizes da África – não importadas por atacado de outros lugares – e que o catalisador se vislumbre não apenas em salas de conferência, mas em praças de aldeias, favelas, salas de diretoria e quartéis. A medida do sucesso da teologia não é o aplauso da academia, mas a metanoia (mudança de coração e direção) que ela pode promover entre os crentes e as comunidades. Por essa medida, devemos confessar que a colheita da teologia africana foi modesta em comparação com as sementes semeadas. No entanto, como qualquer agricultor sabe, algumas sementes permanecem adormecidas até à época certa. Talvez as provações do presente – as pandemias, os conflitos, os clamores por uma governança responsável – estejam criando um novo solo no qual as perceções teológicas anteriores darão frutos. A resiliência dos cristãos africanos face às adversidades é, em si mesma, uma espécie de teologia vivida que poderá um dia surpreender-nos na forma como produz uma sociedade mais justa.

Para concluir, voltamos às questões provocativas colocadas no início, mas agora com uma compreensão mais clara. Pode o Reino de Deus florescer na África? Sim, se por Reino queremos dizer justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm. 14:17) – vimos vislumbres disso em comissões de verdade, em comunidades reconciliadas, em posições corajosas dos líderes da igreja para os pobres. Há uma Terra Prometida pela frente, ou apenas deserto? A viagem é certamente através de um deserto – mas a teologia africana nos lembra que Deus fornece mesas no deserto e água da rocha. A Terra Prometida, num sentido temporal, é a realização das aspirações africanas de dignidade e plenitude de vida; num sentido último, é a nova criação de Deus, onde todas as tribos e línguas (incluindo a da África) trazem a sua glória para a Cidade Santa (Ap 21, 26). E o Éden – pode ser restaurado em África? Não um regresso a um passado mítico, mas a criação de “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21: 1) onde, como no Éden, a humanidade caminha com Deus no frescor do dia – esta é a esperança a que a teologia africana se agarra. É a mesma esperança que tem sustentado os povos oprimidos durante toda a noite: “A alegria vem de manhã” (Sl 30, 5).

A teologia africana encontra-se numa encruzilhada em 2025. O bastão da primeira geração está a passar; novos corredores estão na corrida. A estrutura triádica – Sofrimento, Grandeza, Promessa – continua sendo uma lente analítica válida, mas talvez tenha chegado a hora de integrá-los em uma única narrativa convincente: A África foi crucificada, a África ressuscitou, a África será glorificada. Na linguagem cristã, trata-se de ver a história da África unida ao mistério pascal de Cristo. Se a teologia africana puder comunicar isso – que as feridas do passado (crucificação) carregam escondidas dentro delas as sementes da ressurreição, e que a glória futura honrará a distinta jornada africana – então não terá sido em vão. O desafio, é claro, não é apenas comunicá-lo, mas atualizá-lo em comunidade. Isso requer fé, amor e esperança agindo juntos. A teologia—embora a rainha das ciências- não pode fazê-lo sozinha, mas pode nutrir a visão e a resiliência necessárias. Num famoso provérbio africano frequentemente citado por teólogos, “A esperança é o pilar do mundo”. Que a teologia africana, através de todas as suas críticas e revisões, continue a sustentar esse pilar – para que o amanhã prometido pela África possa tornar-se, pela graça de Deus e pelo nosso esforço fiel, hoje.

Referências:

Livros e Capítulos de Livros

Bediako, K., 1995. Christianity in africa: The Renewal of a Non-Western Religion. Edinburgh: Edinburgh University Press.

Boesak, A., 1995. Farewell to Innocence: A Socio-Ethical Study on Black Theology and Black Power. Maryknoll: Orbis Books.

Boesak, A., 2008. Dreaming of a Different World: Globalisation and Justice for Humanity and the Earth. Stellenbosch: Sun Press.

Cone, J.H., 2010. A Black Theology of Liberation. Maryknoll: Orbis Books.

Kato, B.H., 1975. Theological Pitfalls in Africa. Nairobi: Evangel Publishing House.

Maluleke, T.S., 2011. What if God is not Christian? In: Dube, M.W., ed., Postcolonial Perspectives in African Biblical Interpretations. Atlanta: SBL Press, pp.189–202.

Martey, E., 1993. African Theology: Inculturation and Liberation. Maryknoll: Orbis Books. Mbiti, J.S., 1969. African Religions and Philosophy. London: Heinemann.

Moltmann, J., 1967. Theology of Hope: On the Ground and the Implications of a Christian Eschatology. London: SCM Press.

Mugambi, J.N.K., 1995. From Liberation to Reconstruction: African Christian Theology after the Cold War. Nairobi: East African Educational Publishers.

Ngoenha, S. 2025. “O Desafio Africano da Filosofia”, www.filosofiapop.co.br

Oduyoye, M.A., 2001. Introducing African Women’s Theology. Sheffield: Sheffield Academic Press.

Sanneh, L., 2003. Whose Religion is Christianity? The Gospel Beyond the West. Grand Rapids: Eerdmans.

Tutu, D., 1985. Hope and Suffering: Sermons and Speeches. Johannesburg: Skotaville Publishers.

Artigos de Revista

Kabasele Lumbala, M.I., 2009. Postcolonial African Theology in Kabasele Lumbala.

Theological Studies, 63(2), pp.1–20.

Fonte Bíblica

Bíblia Sagrada. Vários versículos: Êxodo 3:7–8; João 10:10; Romanos 8:22; Apocalipse 21:4,

21:26; Lucas 4:18.

O post Do desafio africano da filosofia, ao desafio africano da teologia apareceu primeiro em filosofia pop.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.