O alimento é uma ferramenta política transformadora, e não é à toa que ele é convertido em um artifício descaracterizado, desterritorializado, ultraprocessado, até ser completamente desmantelado da sua essência, negado.
O alimento de verdade não é mercadoria, por isso, não parte de uma escolha individual baseada apenas em informações e nas opções de adquirir alimentos orgânicos e frescos nas dietas rotineiras. É um assunto complexo, que requer um olhar atento às dinâmicas interseccionais dos sistemas alimentares – considerando gênero, raça e classe – que permita tecer estratégias e soluções integradas, enraizadas na incidência política e na mobilização coletiva.
É importante refletirmos que o alimento move a humanidade em diversas dimensões (ambientais, sociais, econômicas, políticas) e, hoje, é mais um fruto que avoluma as angústias contemporâneas e escancara contradições sociais.
É incrível pensar como o neoliberalismo, exaustivamente, cooptou e fetichizou o que é um direito, transformando-o em mercadoria. O alimento bom, limpo e justo foi convertido em objeto de consumo.
Nosso sistema agroalimentar hegemônico nos desnutre com seus longos fios de asfalto, marcados por hierarquias e uma total falta de lógica. Alguns dizem que é moderno, a tal eficiência do mundo contemporâneo, mas ela esconde a fome sob o brilho cintilante dos pacotes, nas infinitas gôndolas entupidas de algo que está longe de alimentar nossos corpos, quem dirá nossa alma.
Nunca se teve tanta disponibilidade de “alimento”, em contraponto, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mais de 33 milhões de brasileiros enfrentavam insegurança alimentar grave em 2022, ou seja, estavam passando fome.
Além disso, cerca de 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar, o que inclui dificuldades de acesso a alimentos em quantidade ou qualidade adequadas. O cenário vem mudando, para melhor, dados mais recentes indicam uma melhora significativa nesse cenário. Segundo o Relatório da ONU sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), divulgado em julho de 2024, a insegurança alimentar severa no Brasil caiu 85% em 2023, passando de 8% para 1,2% da população. Isso representa uma redução de 14,7 milhões de pessoas nessa condição
O conceito de alimentação adequada e saudável é o seguinte: “O direito à alimentação adequada é um direito humano inerente a todas as pessoas, garantindo acesso regular, permanente e irrestrito, seja diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais de seu povo, assegurando uma vida digna e plena, livre do medo, nas dimensões física, mental, individual e coletiva” (Alimentação Adequada e Saudável).
A alimentação adequada e saudável vai além do discurso da saudabilidade individualista que inunda as publicidades e redes sociais. Ela é pensada sob as dimensões de saúde coletiva.
Um olhar sobre o nosso chão
Vivemos em um dos países mais agrobiodiversos do mundo, guardião de enormes bacias hidrográficas, com terra suficiente e uma cultura alimentar extremamente diversa. Por que ainda falamos em fome? Para quem tem acesso, o prato de comida diário dos brasileires é diverso (famoso arroz e feijão), quando pensamos nas refeições, 70% dos alimentos são produzidos pela agricultura familiar.
Importante dizer que este modelo de agricultura está em constante ameaça, soma-se ao caldo o slogan “Brasil, o país do AGRO”, sendo líder na liberações de agrotóxicos, queimadas, desmatamento e mortes por conflito de terra.
Asseguramos o nosso lugar cativo no pódio, pois o Brasil continua liderando mundialmente no consumo e registro de agrotóxicos, com um aumento significativo nas aprovações de novos produtos nos últimos anos sendo que estes não pagam impostos. Nos anos de 2019 a 2022 foram aprovados 2.181 novos registros de agrotóxicos, com uma média de 545 por ano. Já no ano de 2023 foram 555 novos registros. Em 2024 houve um aumento, foram aprovados 663 produtos agrotóxicos, sendo que 541 são genéricos de substâncias já existentes, 15 correspondem a novas moléculas e 106 são bioinsumos, incluindo produtos biológicos e voltados para a agricultura orgânica (mercado que vem crescendo).
Atualmente, o Brasil consome cerca de 7,3 litros de agrotóxicos por pessoa por ano, incluindo muitos produtos proibidos na União Europeia. Por que nossas vidas valem menos do que as pessoas que nasceram no norte global? Somos conhecidos por ser o “lixão dos agrotóxicos do planeta”, o que sustenta impactos trágicos na saúde (física, mental, territorial) em um cenário de curto, médio e longo prazo.
Nosso modelo agrícola exportador destrutivo – e altamente subsidiado- evidencia a insustentabilidade e fragilidade da nossa produção de alimentos em tempos de emergência climática. Esse é o desenho da nossa contradição enquanto país, uma rachadura entre a nossa majestosa socioagrobiodiversidade – que abrange biomas tão incríveis que vão do Pampa à Amazônia, soprando os ventos da Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pantanal.
Dói dizer que, quanto maior a importância socioecológica dos biomas para a manutenção da vida no planeta, maior é a ameaça exponencial de sua extinção.
Larissa Lombardi compartilhou em seu livro Colinialismo Químico:
“O Brasil é o maior consumidor mundial dessas substâncias, com mais de 700 mil toneladas por ano. Este livro compila dados alarmantes que nos permitem começar a compreender a gravidade do problema representado pelo uso massivo de herbicidas, pesticidas e fungicidas para a saúde humana e para o meio ambiente, uma consequência direta da globalização da agricultura, da concentração fundiária brasileira e da onipresença do agronegócio no país. Da leitura, emerge a certeza de que produção agrícola deixou de ser sinônimo de produção de alimentos e que a saída está na agroecologia.”
Se 2020 foi marcado pela pandemia, o ano de 2024 foi marcado por eventos climáticos extremos. Ficamos – e ainda estamos- alagados, sem casa, sem ar e sem água para beber. É urgente repetir que a emergência climática está diretamente associada à base produtiva dos alimentos e da base industrial capitalista.
Qual a relação da emergência climática com a nossa boca?
Já estamos cansados de ouvir que “você é o que você come”, mas, se não sabemos o que comemos, quem estamos nos tornando? Diversos discursos estão em voga: primeiro, o nutricionismo e a eterna busca pela saudabilidade individual; em seguida, movimentos éticos, e agora gritam pela via do olhar climático.
Está claro que nossas escolhas individuais não conseguem sobrepor o enorme poder da indústria e do agronegócio, baseados na produção de commodities para exportação, monoculturas e uso intensivo de agrotóxicos e transgênicos (e suas novas variações, ainda mais aterrorizantes).
É importante marcar que, quando falamos em alimento e comida que está nas nesse momento adornando e aquecendo panelas e pratos país afora, não estamos tratando de meras combinações de ingredientes, tampouco de um conjunto de alimentos aleatórios desprovidos de cultura e política. Nesse alimento, está constituída uma teia (quase invisível), porém significativa de longas trajetórias influenciadas por políticas, lobbies e muito interesse econômico.
Agroecologia como caminho
A Agroecologia pode ser compreendida como um tripé ciência-prática-movimento. Como ciência, ela dialoga entre saberes tradicionais e acadêmicos; como prática, se manifesta no saber fazer das comunidades que têm terra debaixo das unhas e pele batizada pelo sol; e, como movimento social, está enraizada nas lutas e nos laços comunitários que sustentam as resistências da América Latina e os países do Sul Global.
Quando falamos em alimento de verdade, promoção de saúde, justiça social e climática, a Agroecologia se apresenta como um caminho necessário, capaz de redesenhar esses fluxos problemáticos e trazer de volta ciclos virtuosos, da horta à mesa.
A resistência habita na encruzilhada: entre o Estado e o mercado
Curioso pensar como na agroecologia podemos encontrar elos que resistem, pressurizados e irreverentes meio à dois gigantes: a institucionalização (estado) e a mercantilização (capital). Reflito sobre o papel da Luta e da Encantaria associada aos povos que foram/são historicamente excluídos, estes são indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores camponeses, mulheres, jovens, LGBTQIA+.
Reforço que agroecologia ainda se mantém firme como uma luta social legítima que busca a soberania alimentar dos povos, como um exemplo a Teia dos Povos, movimento enraizados na sabedoria ancestral, na autonomia e luta por terra e território.
A Teia dos Povos é uma articulação de comunidades, territórios, povos e organizações políticas, rurais e urbanas. Extrativistas, ribeirinhos, povos originários, quilombolas, periféricos, sem terra, sem teto e pequenos agricultores se juntam, enquanto núcleos de base e elos, nessa composição com o objetivo de formular os caminhos da emancipação coletiva. Ou seja, construir solidariamente uma Aliança Preta, Indígena e Popular.
Na poção de Encantaria, diversas são as observações, conhecimentos e vivências sensíveis que brotam dessa relação íntima das pessoas com a natureza e seus ciclos.
Trago um relato, recorte de um diálogo que tive com uma agricultora que se dedica à Agricultura Biodinâmica. Ela comenta como o uso dos preparados biodinâmicos na cultura da videira auxiliam nas diferentes fases da planta e das estações, e no caso, esta sílica moída traria doçura e luz do sol. É na observação-interação com a natureza que família expande e guarda a sabedoria popular da terra e das estrelas.
Nesse mesmo espírito de resistência e construção coletiva, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma referência no mundo, ao ser um dos protagonistas na construção da agroecologia popular no Brasil. No início de maio, o MST realizou a 4ª Feira Nacional da Reforma Agrária, no Parque da Água Branca, em São Paulo (SP), reunindo mais de 1.500 agricultores de 23 estados, com a comercialização de mais de 500 toneladas de alimentos saudáveis, sem veneno e produzidos em assentamentos da reforma agrária. A feira é uma expressão potente do que significa produzir comida de verdade, com justiça social, cultura e encantamento.
Como garantir alimentos agroecológicos frente aos desafios atuais?
Convenhamos, não há potência que resista à pressão destrutiva do agronegócio, do capitalismo predatório e da negação de direitos fundamentais, como o acesso à terra e à água, além da violência contra comunidades tradicionais, quilombolas, povos indígenas e ribeirinhos.
Por mais que um grupo de resistência esteja exaustivamente regenerando, nossos rios estão contaminados, nossas nascentes secando, e nosso solo sob condições de alagamento, fogo, nus. Me angustia ao perceber que ainda são escassas as políticas estruturantes. O campo da agroecologia deve ser um projeto político, com subsídios adequados, como crédito, apoio e assistência técnica (ATER) especializada, insumos (sementes, mudas, ferramentas, etc), formações e informações de qualidade para todas as pessoas que queiram produzir de forma agroecológica.
Durante as minhas idas a campo pelo interior de Santa Catarina, me deparei com inúmeros relatos que concordam que as mudanças climáticas são um dos maiores desafios que estão enfrentando na produção agroecológica. São diversas as perdas causadas pelo clima extremo, e as plantas “nãos estão dando conta” com tamanhas variabilidades hídricas e de condições de luz e temperatura.
Na foto, uma propriedade agroecológica em Biguaçu (SC) que produz hortaliças para uma feira agroecológica em Florianópolis. Nessa estufa tinham centenas de pés de rúcula, que foi devastada por uma enxurrada. O desafio se agrava pela ausência de seguros agrícolas que protejam contra as perdas causadas por eventos climáticos extremos na produção de base agroecológica.

Políticas públicas: o que isso tem a ver com a nossa vida?
Eis que brota a dúvida esmagadora: como quebrar a monotonia alimentar nas prateleiras dos supermercados por alimentos agroecológicos produzidos de forma popular, coerente, plural e diversa? Sem dúvidas, são necessárias políticas públicas.
Destaco duas que são um exemplo importante e referência no mundo: a primeira foi criada em 2003, chamada Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), tem como objetivo comprar diretamente produtos da agricultura familiar (30%) para distribuir a populações em situação de insegurança alimentar e nutricional. o segundo, chamado Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), estes são os alimentos que são servidos nas escolas e há preferência por alimentos produzidos de forma agroecológica ou orgânica (embora não seja especificado um percentual obrigatório). Agora que já lembramos podemos sim buscar informações sobre o andamento na sua escola/cidade e cobrar das prefeituras que estes programas sejam implementados.
É impossível avançar na Agroecologia sem um programa de redução de agrotóxicos em nosso cultivos. O movimento agroecológico vem defendendo o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA). Esta é uma iniciativa que visa promover práticas agrícolas que busquem reduzir a dependência de agrotóxicos. Toda a sociedade deve conhecer esta política, e temos como necessidade garantir que ela seja efetivada em prol da saúde pública. Além disso, o programa busca fortalecer a autonomia dos agricultores, permitindo que adotem práticas que respeitem a biodiversidade e melhorem a qualidade de vida no campo. PRONARA JÁ. Adiciono a lista de necessidades a criação de fundos de apoio para enfrentamento aos impactos e perdas decorrentes das mudanças climáticas, que seja elaborado com cuidado abrangendo as especificidades da agroecologia, os povos e os territórios.

Se a AGROECOLOGIA é capaz de transformar nosso futuro, então precisamos de apoio para somar as nossas redes que já são fortes e coesas. E para ajudar o Seu Paulo, a Dona Cida, a Marcele… e um tantããão de pessoas, camponesas/es Basilzão afora.
Comida é direito, cultura, presente e futuro
É crucial assumir que a desigualdade tem suas raízes adventícias, que começam e terminam no acesso à terra e ao alimento.
Aqui está uma questão crucial: o alimento é capaz de nos deslocar da proposta falha de enxergarmos apenas a humanidade como centro; ele nos convida a ter uma percepção de organismo, do todo. O alimento de verdade não brota das gôndolas.
ALIMENTO é CULTURA, é RESISTÊNCIA, e deve ser tratada com a importância que merece. É na sua tessitura que encontramos as mais diversas histórias, culturas e contextos que o compõem — para além do que se vê. A complexidade encontrada nesse esmiuçar, a meu ver, é uma potente alternativa estruturante de combate às desigualdades fabricadas pela necropolítica, especialmente em um momento de urgências extremas, onde o direito ao alimento é negado. Estarão nossos corpos, de fato alimentados? A população está com fome de vida, de direitos, de afeto e de dignidade. A população está com fome de vida, de direitos, de afeto e de dignidade.
Precisamos fazer um convite à reflexão para ampliar nossa compreensão sobre o universo dos sistemas alimentares, pois todos nós estamos sendo afetados. Somente por meio de um envolvimento massivo em defesa do acesso a alimentos de qualidade, livres de agrotóxicos e transgênicos que assegure o direito à terra, à moradia, à água e ao ar limpo, tanto para quem produz quanto para quem consome, nos permitirá um presente e um futuro viáveis como sociedade nesse planeta.
Meio a devaneios, vislumbro um dia em que todes possam ter acesso regular, permanente e irrestrito aos alimentos agroecológicos e que ao deliciar-se com a cocada de cacau, fruto do trabalho coletivo da reforma agrária, sintam que a luta tem sabor, e que vale muito a pena.
