Licuri: o fruto que mudou a realidade no sertão baiano

Um fruto pequeno, ovalado, de casca dura e típico da Caatinga nordestina. O licuri assemelha-se ao popular “coquinho”, mas possui um sabor mais intenso e uma versatilidade de uso que vai da culinária à cosmetologia. No semiárido, costuma-se dizer: “do licurizeiro se aproveita tudo”. A amêndoa é usada na alimentação; a palha da palmeira vira itens como chapéus, bolsas e cestos. Já o bagaço é aproveitado como ração animal. 

O licuri está presente nos estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e no norte de Minas Gerais, principalmente nas áreas secas da Caatinga. A Bahia é o estado com a maior concentração da palmeira, sendo também o que mais tem valorizado o “coquinho”.

Cooperadas trabalham na quebra do licuri na comunidade de Alto Capim – ©Fred Rahal/COOPES

Uma das iniciativas do estado que se destaca é a Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina. A Coopes, como é chamada, é referência quando o assunto é valorização cultural do licuri e agroextrativismo sustentável. A cooperativa, sediada no município de Capim Grosso, no sertão baiano, completou neste mês de maio 20 anos de existência e resistência.

Composta majoritariamente por mulheres extrativistas – conhecidas como quebradeiras de licuri – e por agricultores familiares, a Coopes está presente em 15 municípios da região, atuando em 40 comunidades. Foi fundada com o objetivo de defender os interesses econômicos e sociais dos pequenos produtores, que eram desvalorizados no comércio intermediário.

E foi justamente a partir dessa vontade de transformar a realidade local das quebradeiras de licuri que Josenaide Alves deu os primeiros passos para fundar a cooperativa. Josa, como gosta de ser chamada, nasceu no município de Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia. Por conta de suas habilidades na culinária, foi convidada a trabalhar no Projeto Conviver, da Escola Família Agrícola de Jaboticaba, em Quixabeira, no sertão baiano. A ideia era atuar nas comunidades atendidas pela escola na busca por uma convivência harmoniosa com o semiárido.

“Eu comecei um trabalho com as mulheres de processamento de alimentos, e o que mais tinha na região era licuri. Então começamos a fazer várias receitas, vários biscoitos com licuri. Eu me entrosei com as mulheres e vi que elas vendiam o quilo do fruto, em 1998, por R$ 0,40. Não me conformei com aquilo e falei com elas: ‘vamos fazer alguma coisa para valorizar o licuri’”, conta.

Coleta do licuri na comunidade de Alto Capim – ©Fred Rahal/COOPES

Em seis anos, o empenho das mulheres surtiu efeito. Em 2004, Josa, acompanhada de outras agricultoras, foi convidada a participar do evento Terra Madre, na Itália, com o intuito de apresentar o licuri para o mundo. O encontro, promovido pela organização internacional Slow Food, reúne atores da cadeia agroalimentar comprometidos em defender e fomentar modos de produção que respeitem o meio ambiente, a conservação da biodiversidade e a justiça social.

A viagem foi um divisor de águas – o empurrão final que faltava para a fundação da Coopes. Ao todo, a cooperativa participou de seis edições do Terra Madre. Além disso, o licuri foi reconhecido como patrimônio alimentar pelo Slow Food, passando a fazer parte da “Arca do Gosto”, que protege alimentos ameaçados de desaparecimento.

O “coquinho”, que antes era apenas quebrado e vendido a atravessadores por um preço irrisório para a produção de sabão, passou a ter valor agregado. Hoje é transformado em biscoitos, pães, bolos, sorvetes, amêndoas torradas e óleo. O beneficiamento do licuri gerou melhoria na renda e na realidade de muitas mulheres, que passaram a ter no fruto uma fonte digna de sustento.

Tradição, coletividade e valorização

A comunidade quilombola de Alto Capim, no município de Quixabeira, a 18 km de Capim Grosso, é uma das mais antigas parceiras da Coopes – já são 20 anos de colaboração. Cerca de dez mulheres quebradeiras atuam na coleta e na quebra do licuri, produzindo, em média, 350 kg do fruto por mês.

Paulina Pina é quebradeira de licuri na comunidade de Alto Capim – ©Fred Rahal/COOPES

O ofício de “quebradeira” é passado de mãe para filha. Uma tradição que, para essas mulheres, representa mais do que uma fonte de renda complementar à aposentadoria rural de um salário mínimo: é também um elo de convivência e fortalecimento comunitário.

Tanto a coleta quanto a quebra são realizadas coletivamente. As quilombolas saem duas vezes por semana, por volta das 6h da manhã, para a “roça” de uma das cooperadas, onde fazem a coleta do fruto. A atividade costuma durar toda a manhã. Após o almoço, elas se reúnem para separar, ou como gostam de dizer: “tirar o licuri da casca”, que será quebrado no dia seguinte.

Um cesto cheio de licuri bruto pesa, em média, de 15 a 20 kg. Após a quebra, restam cerca de 2 kg de amêndoa. Atualmente, a Coopes paga R$ 10 pelo quilo do fruto – R$ 6 a mais que o valor pago pelo comércio intermediário.

“O licuri ajuda muito, em tudo dentro de casa. Dependendo da quantidade que a gente pega, dá pra fazer uns R$ 200, R$ 300. Quem adianta mais, faz até mais. Dá pra ajudar bastante, porque a outra renda que a gente tem é de mês em mês”, comenta Paulina Pina, quebradeira e agricultora.

A média de idade das mulheres que trabalham com o licuri varia entre 50 e 80 anos. Segundo elas, as gerações mais novas demonstram pouco interesse pela prática da quebra, mas as extrativistas são firmes ao afirmar que “a tradição não vai acabar”.

“Não acaba. Só se nós ‘tudo’ morrer de uma vez. Se não, se morrer uma, as outras vão ficando e vai continuando”, afirma Arionete Souza, responsável por organizar o trabalho com o licuri em Alto Capim.

À medida que as quebradeiras resistem por meio da tradição, novas tecnologias vêm sendo incorporadas à cadeia produtiva do licuri, com o objetivo de aprimorar a qualidade dos produtos e aumentar a renda dos cooperados. 

Uma conquista recente da Coopes foi a entrega, em 2023, da Unidade de Beneficiamento do Licuri, construída com apoio do governo do estado da Bahia. Embora o investimento em infraestrutura e maquinário ainda não seja suficiente, ele já aponta um caminho promissor. 

Quebra do licuri é feita manualmente por mulheres cooperadas da comunidade de Alto Capim – ©Fred Rahal/COOPES

“Apesar de ser cultural, e as quebradeiras gostarem de fazer isso, é um trabalho árduo, que com o tempo vai machucando. Chega um momento em que elas já não aguentam mais quebrar o licuri. A tecnologia nova vai ajudar muito no processamento da amêndoa”, ressalta Davi Santos, presidente da Coopes.

Em duas décadas de atuação, a cooperativa se estruturou no mercado nacional. São 182 associados e, somente em 2023, a Coopes produziu 15 toneladas de licuri quebrado. O óleo para cosméticos e o licuri torrado sem sal estão entre os produtos mais vendidos. 

Para Robenol Araújo, um dos idealizadores da cooperativa e responsável pela articulação com as comunidades, a ampliação da capacidade produtiva e a conquista de novos mercados de consumo do licuri impactam diretamente num dos principais desafios do campo: o êxodo rural.

“Se conseguirmos mostrar o valor que o licuri tem e pagar um preço justo por ele, conseguiremos manter uma nova geração de jovens no campo, trabalhando com o licuri e vivendo dele com dignidade”, destaca.

Promovendo a cultura do licuri

A Coopes também é uma das responsáveis pela Festa do Licuri. O evento, uma parceria da cooperativa com associações e sindicatos, está em sua 14ª edição. Em 2025, a festa ocorre no município de Várzea da Roça, localizado no Piemonte da Chapada Diamantina. O evento começou nesta sexta-feira (23) e vai até domingo (25).

A programação do encontro é extensa: inclui feira de economia solidária, concurso de quebra do licuri, oficinas de produção de artesanato a partir do “coquinho”, manejo agroecológico dos licurizais, produção de mudas e debates sobre o uso do fruto na indústria.

Santos explica que a festa foi pensada para incentivar a preservação ambiental do licurizeiro, promover a cultura do fruto na alimentação e valorizar o saber tradicional das quebradeiras. Segundo ele, nesta edição, o principal objetivo será destacar a importância nutricional do licuri e mostrar como ele pode ser incorporado à alimentação escolar.

“A novidade deste ano é que vamos abordar com mais força a questão da alimentação institucional, que é o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar]. Teremos uma palestra da Superintendência de Agricultura Familiar voltada a nutricionistas que elaboram o cardápio escolar, além de diretores e prefeitos da região, para mostrar que o licuri é um alimento saudável e que vários pratos podem ser feitos a partir dele. Os próprios alunos consomem o licuri em casa – por que não podem consumi-lo também na alimentação escolar?”, conta o presidente da cooperativa.

A expectativa é que o evento atraia agricultores, extrativistas, estudantes das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) – unidades de ensino autogestionadas com foco no desenvolvimento rural sustentável – e universitários de dentro e fora da Bahia. A festa ocorre anualmente, e há uma rotatividade entre os municípios do centro-norte do estado, com o objetivo de fortalecer a economia local.

*A jornalista Jaqueline Deister e o fotógrafo Fred Rahal estão viajando de forma independente pela Caatinga, com o objetivo de promover a preservação e a valorização do bioma e de seus povos por meio de um processo colaborativo e participativo. 

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