Do Cabo ao Cairo, de São Paulo a Madagascar, por uma África livre

Hoje comemoramos o dia da Libertação Africana, criado em homenagem à criação da Organização da Unidade Africana, hoje União Africana. Fundada em 1963 em meio a uma década turbulenta onde muitos dos seus países passavam por processos de descolonização e de luta por independência, essa organização almejava, como o proprio nome diz, alcançar um continente Africano que superasse o imperialismo, o (neo)colonialismo e que pudesse se enxergar como uma terra livre, soberana e responsável por seus destinos.

62 anos depois da criação dessa importante ferramenta, temos uma África muito diferente daquela, mas ainda efervescente, ansiosa por reinvindicar sua autonomia, e que ainda luta com novas e velhas armas contra muitos dos problemas históricos que sofrem os países chamados “subdesenvolvidos”. Mas não nos enganemos: esses problemas podem ser históricos e duradouros, porém de forma alguma são problemas que possamos considerar como “naturais”, pois sempre que seguimos o rastro do endividamento, subdesenvolvimento ou terrorismo, chegamos nos mesmos agentes ocidentais e aliados, responsáveis pela colonização, escravidão e sistemas de apartheid/segregação racial que assombraram África e sua diáspora nos últimos 4 séculos.

A aqueles que de nós que reconhecem a importância de memorar, celebrar e dar continuidade ao significado dessa data, é importante estar conectado não só com as lutas históricas, mas com as lutas atuais do continente e diáspora que precisam de nossa voz, nosso suor e acima de tudo nossa solidariedade onde seja possível empregá-la.

Sahel

Hoje, talvez o maior símbolo da continuidade da luta dos povos africanos por um novo presente e futuro esteja em Burkina Faso, Mali e Níger, recentemente unidos na Aliança dos Estados do Sahel (AES na sigla em francês). O processo atual se inicia em 2020, quando uma junta militar toma o poder do Mali, removendo o então presidente alinhado com os interesses franceses e ocidentais.

Burkina Faso e Níger seguiram o exemplo do vizinho e desde então os três países tem assumido a linha de frente de uma luta ferrenha contra o Ocidente organizado.

Dentre as muitas conquistas alcançadas pela Aliança estão: a nacionalização do ouro em Burkina e do Urânio no Mali; o abandono nos três países do francês enquanto “idioma oficial” convertendo-o em língua de trabalho; investimento na agricultura e na indústria (com o exemplo de Burkina Faso investindo não apenas no plantio de tomates como na criação de fábricas pra produção de extrato/molho de tomate); a expulsão imediata de tropas francesas do território, assim como das equipes diplomáticas e das empresas de notícias e imprensa da antiga colônia; e a assinatura de diversos acordos de colaboração econômica e militar tanto entre os três países quanto com velhos inimigos do Ocidente, como Rússia e China.

Com direito até a crítica aberta do departamento militar americano, o carismático Capitão burkinabe Ibrahim Traoré declara que lidera em seu país uma Revolução Popular Progressista, e agremia apoio em seu continente e com seus irmãos na diáspora, que olham atentamente os passos que a AES dá rumo a um amanhã mais brilhante para o Sahel e para a África.

República Democrática do Congo

Se vemos no Sahel um farol de esperança, temos hoje na República Democrática do Congo uma situação quase oposta. Desde os tempos de Lumumba, o colonialismo nunca perdoou o Congo por ousar lutar por independência, ainda mais quando o país é uma das maiores reservas do mundo em cobre,ouro, zinco, diamante, cobalto, germânio, paládio e outros minerais de alto valor e preciosidade, sendo os dois ultimos citados sendo de alto interesse na industria de condutores que move a atual revolução industrial.

Após décadas de instabilidade política e econômica (muito bem aproveitada pelas grandes indústrias mineradoras multinacionais, diga-se de passagem), o país se encontra hoje refém de diversos grupos terroristas nacionais e estrangeiros, em especial a milícia ruandesa M23, que hoje tem sob seu controle pelo menos quatro grandes regiões que somadas são 8 vezes maiores que o território da Bélgica.

Hospitais superlotados, mais de 1,1 milhão de pessoas removidas de suas terras e 7 mil mortos, em sua maioria civis pegos no fogo cruzado ou deliberadamente assassinados pelas milícias ou pelo próprio governo, que hoje é inapto a resolver essa crise.

Por todo o continente africano, campanhas de solidariedade são criadas e movimentadas por diversas organizações sociais, porém não chegam aos ouvidos da comunidade internacional, que parece cega ou ignorante mais uma vez aos problemas que, não fossem em território africano, seriam motivo de comoção de todos os órgãos de direitos humanos do mundo.

Brasil

Ainda há muito a se falar sobre os movimentos que hoje lutam em solo africano por soberania e autodeterminação. Porém, não é apenas no continente que se luta pela Libertação Africana. Somos o país com maior população negra/afrodescendente fora da Nigéria, temos uma raiz africana que se manifesta em nossa música, culinária, religiosidade e em nossa cultura como um todo, e ainda hoje a população negra, em especial os imigrantes africanos, são tratados como cidadãos de segunda (ou pior) classe.

Tivemos em São Paulo, no mês de abril, o assassinato a sangue frio e em plena luz do dia do vendedor ambulante e imigrante senegalês Ngange Mbaye pela Polícia Militar de São Paulo, e isso ocorre no mesmo mês que um batalhão da PM celebra a conclusão de um treinamento fazendo alusão à simbologia da Ku-Klux-Klan e do Neo-Nazismo; temos na Bahia, estado com maior presença afrodescendente do país e governado pelo campo da centro-esquerda, o assassinato pelas mãos da polícia de uma pessoa negra a cada 7 horas, culminando em 90% de mortalidade negra nas ações policiais no estado; no Rio, a abordagem violenta de dois meninos negros de 12 e 13 anos de idade está movimentando a cidade contra a brutalidade policial e o racismo institucional carregado há séculos pelo Estado brasileiro.

É necessário que os Movimentos Negros, Movimentos Sociais e de luta por Direitos entendam que a libertação africana não é um tópico apenas do continente, uma vez que não haverá liberdade para a África até que todos os africanos, descendentes e a diáspora como um todo estejam livres e soberanos também.

Precisamos que nossos países sejam territórios seguros para essa população, que ela tenha acesso a moradia, educação de qualidade e trabalho digno. E que sejam tratados como cidadãos plenos e com seus direitos, em especial o direito à vida.

Afrika Moja, Afrika Huru

África livre, África unida!

*Lucas Assis é diretor de Articulação Politica da Soweto Organização Negra e militante da CONEN

** Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a opinião do Brasil de Fato.

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