No debate sobre a natureza do bolsonarismo, travado dentro e fora da academia, o cientista político Hélgio Trindade não tem dúvidas: o nome mais adequado para o movimento que cavou seu espaço na cena política do país nos últimos anos não é ‘fascismo’. E tampouco tem a ver com o integralismo, a versão local dos fascismos que abalaram a Europa na primeira metade do século 20.
Com a autoridade de quem escreveu Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30, obra referencial sobre a extrema direita brasileira no entre guerras e sua tese de doutorado defendida na Universidade de Sorbonne, na França, ele repara que Jair Bolsonaro (PL), ao contrário de Adolf Hitler ou Benito Mussolini, não lidera nenhum partido nacionalmente e não forjou nenhuma ideologia política coerente, direcionando seu discurso e ações simplesmente à aspiração de um golpe militar para retornar à ditadura de 1964.

“Não basta a adotar a máxima integralista – Deus, Pátria e Família, a qual acrescentou artificialmente um quarto termo – Liberdade – para confundí-lo com a Ação Integralista Brasileira, a AIB”, argumenta.
Pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e integrante da Academia Brasileira de Ciências, ele entende que classificar o bolsonarismo como um fascismo significa olhar mais para as aparências do que para o conteúdo desse movimento autoritário, ou seja, suas bases conceituais e econômicas. Para ele, Bolsonaro não vai além de “uma liderança de extrema direita, oriunda de uma carreira parlamentar medíocre, com uma família de filhos ocupando mandatos no Senado e na Câmara que, de repente, optou por um outro perfil militante”.
Acompanhe:
Brasil de Fato RS: Nos anos 1920/30 houve a eclosão do fascismo e do nazismo em uma Europa que fora devastada pela guerra de 1914/1918. No Brasil, a versão desses movimentos foi o integralismo. Cem anos depois, ocorre novamente uma ascensão de movimentos e lideranças de extrema direita que contestavam tanto a democracia liberal quanto o comunismo. A História se repete hoje com outro figurino?
Hélgio Trindade: A emergência do fascismo italiano e do nazismo alemão são indissociáveis da derrota na Primeira Guerra (1914-1918) e seus desdobramentos. No pós-guerra, os países derrotados tiveram que pagar alto preço aos vencedores, o que criou ressentimentos muito fortes contra os vencedores, estimulando reações nacionalistas radicais e somando-se à ameaça da revolução soviética sobre a Europa. Daí decorre uma das singularidades do nazi-fascismo: a mobilização de ex-combatentes em sua formação mobilizados pela derrota em 1914-18.
Seria excessivo longo recompor todos os fatores que marcaram o perfil desses movimentos, cujas diferenças relação a outros semelhantes na Europa e na América Latina que não conquistaram o poder político, como o fizeram Mussolini (1922) e Hitler (1933).
No Brasil, o Integralismo foi único movimento político de natureza fascista, com o chefe nacional Plínio Salgado, com uma ideologia inspirada na dos modelos europeus, com um partido de massa nacional, com 800 mil membros filiados, numa época em que os partidos brasileiros eram partidos republicanos regionais, cujas bases políticas eram relativamente pequenas na ocasião em que vigorava a ‘política do café com leite’ quando se alternavam no poder nacional – os Partidos Republicanos Paulista e Mineiro, por disporem da maior base eleitoral regional.
Nessa perspectiva, ousaria dizer que a história se repete geralmente como farsa
Essa aliança foi rompida em 1930, quando São Paulo pretendeu permanecer mais um quadriênio no poder, dando origem à Revolução de 1930, em que Minas Gerais se aliou ao Rio Grande do Sul e à Paraíba e que, vitoriosa, levou o governador gaúcho Getúlio Vargas ao poder nacional. Vargas permaneceu na presidência da República de 1930 a 1945, à frente de um governo autoritário, de inspiração positivista, com uma política social, que implantou o sistema sindical a partir do Estado.
Posteriormente, na Europa, movimentos neonazistas proliferaram, sobretudo na Alemanha e Itália, com o objetivo utópico de ressuscitar os regimes fascistas do passado. Não tiveram êxito, reduzindo suas ações a nostalgia de um passado que não tinha mais condições de se reproduzir no presente, salvo na imitação das camisetas e dos rituais.
Hoje, apesar do crescimento, em nível mundial, dos movimentos impropriamente cunhados como ‘fascistas”, atualmente o termo consensual consagrado, ao que sempre me filiei, é o de denominá-los de “movimentos de extrema direita”. Inclusive esse termo já começa a ser utilizado pela mídia brasileira e pelos especialistas no assunto.
Quais as diferenças entre o fascismo e a extrema direita com a qual convivemos hoje no Brasil?
Considero que a ‘ficção’ do fascismo no Brasil a partir da ascensão de Bolsonaro foi criada, em grande medida, pela mídia e obviamente por seus adversários políticos. No meu livro, A tentação fascista no Brasil: Imaginário dos dirigentes e militantes integralistas (Editora da Ufrgs, 2016) discuto essa questão numa perspectiva latino-americana. No exílio mexicano hegemonizado por argentinos, chilenos e brasileiros, a violência repressiva do regime militar do general Augusto Pinochet no Chile e sua articulação com as outras ditaduras do Cone Sul pela Operação Condor, provocou uma discussão entre os exilados de que esses regimes militares poderiam ser denominados por um novo conceito: neo-fascismo e fascismo dependente. Esse debate empolgou muitos grupos de exilados, que introduziram essa questão no centro da discussão.
Atílio Boron rejeita o título de fascismo até para a brutal ditadura de Pinochet
Esse debate prosperou muito até que um exilado argentino, Atílio Boron, que se tornou posteriormente um dos mais ativos teóricos do marxismo na América Latina e teve sua formação prévia em Ciência Política na Universidade de Harvard, escreveu no México, em plena polêmica, um artigo sobre hipótese do fascismo na América Latina, intitulado O fascismo como categoria histórica, onde rejeita o uso dos conceitos de neofascismo e fascismo dependente, inclusive para a mais brutal ditadura militar no Chile de Pinochet.
A partir de uma definição gramsciana, ele critica o uso generalizado do conceito de ‘fascismo’ na América Latina e argumenta que ‘se a força, a violência inerente em cada Estado (…) é sinônimo de fascismo, levaria a conclusão de que a história da sociedade de classes não é senão a história do fascismo”. Acrescenta, porém, em sua análise comparativa, que “o processo de internacionalização dos mercados internos nos países periféricos se realiza de forma diferente do que se deu na Itália e na Alemanha, cujo capitalismo era tardio. Donde conclui que as novas formas que se deu na Itália e na Alemanha, cujo capitalismo era tardio. Donde conclui que as novas formas que se manifestam na América Latina nos anos 1960 e 1970, situam-se num estágio diferente do capitalismo monopolista, quando a burguesia nacional europeia era simultaneamente hegemônica, monopolista e imperialista.”
Como pesquisador do integralismo, quais os valores da Ação Integralista Brasileira (AIB) que vê projetados no bolsonarismo? Deus, Pátria e Família? Anticomunismo e antiesquerdismo? Apelo a uma religiosidade de cunho conservador? Exaltação da liderança máxima (“Mito”)?
Esse uso dos termos “fascismo” e “fascistas” ressurgiu no Brasil, na minha avaliação, para carimbar o movimento bolsonarista, a campanha eleitoral e seu governo de 2019-2022. Apesar de sua vocação golpista ao longo e depois de seu mandato presidencial, tal comportamento não legitima a qualificação de fascismo, por várias razões na comparação com o nazi-fascismo na Europa nos anos 1930, que tinha líderes carismáticos, partidos de massa com mobilização nacional e uma ideologia estruturada.
O bolsonarismo não atende a nenhum desses requisitos. De fato, ele (Bolsonaro) é uma liderança de extrema direita, oriunda de uma carreira parlamentar medíocre, com uma família de filhos ocupando mandatos no Senado e na Câmara que, de repente, optou por um outro perfil militante.
Bolsonaro não lidera nenhum partido organizado nacionalmente e nem forjou uma ideologia coerente
Ao contrário do fascismo original, ele não lidera nenhum partido organizado nacionalmente, não forjou nenhuma ideologia política coerente, focando sua ação na busca nostálgica de um golpe antidemocrático e reacionário tem como modelo o retorno ao regime militar de 1964. O presidente argentino [Javier] Milei foi mais inventivo: cunhou o seu movimento como ‘anarco-liberal’, combinando o anarquismo anti-estado com o liberalismo exacerbado.
Bolsonaro não pode ser alçado a líder de um movimento fascista, como o foi o Integralismo na década de 30. Não basta a adotar a máxima integralista – Deus, Pátria e Família -, a qual acrescentou artificialmente um quarto termo – Liberdade – para confundí-lo com a AIB. Mesmo porque, se retomarmos a evolução do Integralismo no período posterior à queda de Vargas em 1945, constatamos que ele adaptou a ideologia para competir nas eleições presidenciais no período da redemocratização.
Com esse objetivo, Plínio Salgado promoveu, durante seu exílio em Portugal, uma revisão doutrinária de suas obras completas, eliminando todas as palavras de cunho fascista, substituindo-as por novos termos pluralistas: por exemplo, onde se lia “partido único “ou “sindicato único” nos livros originais esses termos foram substituídos, por “partido plural” ou “sindicato cristão”! Donde pode-se inferir claramente que o integralismo existente hoje, salvo a máxima antes referida, pouco tem a ver com sua ideologia fascista do período 1932-37.
Por estratégia política, Plínio Salgado maquiou seus livros no exílio
Hoje, os grupos de integralistas que pretendem, de forma saudosista, manter o Integralismo original, adotam uma versão inteiramente diversa da sua natureza fascista do passado que foi objeto de minha tese de doutorado defendida na Sorbonne, em 1971, e publicada em português, com o título “Integralismo: o fascismo brasileiro dos anos 30” (São Paulo, DIFEL, 1ª edição, 1974).
Lembro fiquei contente quando descobri que, na biblioteca da Maison do Brasil, em Paris, onde morei, havia os 20 volumes das obras completas de Plínio Salgado. Para minha decepção, descobri que essas obras completas haviam sido maquiadas por Salgado no exílio e não tinham nenhum valor histórico. Sua nova estratégia política era para dar continuidade ao Integralismo adaptando-se a fase democrática pós-1945, que transformou a Ação Integralista Brasileira (AIB) dos anos 1930 no Partido de Representação Popular (PRP) para o período de retorno às eleições pós-1945. Dessas Obras Completas, foi vitima um professor que se doutorou na USP [Universidade de São Paulo], que adotando paradoxalmente um enfoque marxista, escreveu uma tese de doutorado, opondo-se a minha interpretação e buscando equivocadamente demonstrar que a AIB era um movimento nacionalista, baseado em valores do Brasil rural e cristão, cujo nacionalismo não tinha relação com a hipótese da minha tese do fascismo do Integralismo. Foi um equívoco lamentável, em que o autor de não teve o cuidado de analisar adequadamente a fonte utilizada.
A historiadora Lorraine Slomp-Giron, em seu livro A Sombra do Littorio (Educs, 2017), nota que, nos anos 1920, era comum a visitação de cônsules ou representantes da Itália de Mussolini às comunidades de descendentes italianos da Serra gaúcha. Segundo ela, como as cidades ainda estavam bastante isoladas do restante do estado (área montanhosa, estradas ruins, comunicações precárias) Roma considerava aquela situação excepcional para a preservação dos laços com a pátria de origem e, em consequência, à pregação favorável ao regime via jornais redigidos em italiano, atuação da Igreja Católica, clubes e associações comunitárias etc. Quando as manifestações de cunho fascista ficaram mal vistas, a população teria encontrado abrigo no integralismo que, até a tentativa de golpe contra Getúlio Vargas em 1938, operava na legalidade em pleno Estado Novo. Qual a sua opinião?
A afirmação da historiadora é correta porque, na década de 1920, o Brasil permitia que imigrantes italianos, nascidos em seu país de origem, pudessem vincular-se ao Partito Nazionale Fascista (PNF), de Mussolini, assim como era também permitido aos imigrantes alemães filiar-se ao partido nazista. Há livros sobre esse período fartamente documentados, pelo Dops da época: no Rio Grande do Sul se intitulava Quinta Coluna no Brasil e, em Santa Catarina, Um punhal no coração do Brasil.
Seria incorreto considerar a AIB como um movimento do Sul do Brasil por adesão dos imigrantes
Essa situação mudou na década de 1930, quando foram proibidas essas filiações a partidos estrangeiros, especialmente com a fundação da AIB, que recebeu a adesão dos descendentes de imigrantes de ambas as etnias. Seria incorreto, porém, considerar que a AIB de Salgado foi um movimento do Sul do Brasil por essa adesão dos imigrantes.
Embora tenham tido uma forte adesão à AIB, esta teve uma presença nacional com adesões significativas na maioria dos estados, tanto no Rio de Janeiro, como São Paulo, e na região nordeste, a partir da Bahia, estendendo-se pelo nordeste e norte do País. Daí a AIB ter sido um movimento e partido de massa, com seu quase um milhão de membros entre aderentes e simpatizantes, o que levou o chefe integralista a candidatar-se à Presidência da República para a sucessão de Vargas. O golpe de 1937, obviamente inviabilizou as eleições presidenciais em curso.
Como o Integralismo participou também das articulações de apoio ao golpe de 1937, com a promessa de que Salgado assumiria o Ministério da Educação. Como esta não foi cumprida, o chefe integralista, através de uma série de artigos em seu jornal A Razão, procurou influenciar o Governo Provisório de Vargas com propostas integralistas. Como essa estratégia não teve sucesso político pratico, grupos de integrantes da AIB começaram a fazer oposição aberta no Rio de Janeiro, o que culminou no ataque ao Palácio da Guanabara, em 1937, para assassinar o presidente. O fracasso dessa tentativa, conduziu o governo a perseguir os integralistas e Salgado foi se exilar em Portugal.
Levantamento do portal g1, do grupo O Globo, com base nos dados do TSE, revelou que, tanto nas eleições presidenciais de 2018 quanto naquelas de 2022, os 10 municípios que conferiram a maior votação a Jair Bolsonaro foram todos da região Sul, sendo que cinco deles situados no Rio Grande do Sul. Nova Pádua, na Serra gaúcha, de colonização italiana, deu mais de 90% dos seus votos a Bolsonaro no 2º turno de 2018 e de 2022, constituindo-se, em ambos os casos, na “cidade mais bolsonarista do Brasil”. Outros três pequenos municípios da Serra figuraram entre os 10 Mais – o quinto foi Arroio do Padre, no Sul do estado, de colonização alemã. É algo que chama a atenção na medida em que um dos pilares do integralismo no Rio Grande do Sul foi a região de colonização italiana. Como vê esse legado e essa sedução por opções de ultradireita hoje?
O Rio Grande do Sul, até o golpe militar de 1964, teve como partido dominante o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1989, foi substituído pelo PT [Partido dos Trabalhadores] com as sucessivas vitórias para a prefeitura de Porto Alegre com Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e Tarso Genro novamente. O PTB de [Leonel] Brizola apoiou Lula nas eleições presidenciais de 1998, o que gerou um acordo político entre PT e PTB.
Hoje, Porto Alegre e a grande maioria dos municípios do Estado foram progressivamente virando à direita após Olívio Dutra (1999-2002) e Tarso Genro (2010-2014) terem sido governadores do estado. O PT vai perdendo fortemente seu capital político eleitoral no Rio Grande do Sul, crescem as opções de partidos à direita e o próprio MDB vai perdendo sua posição de centro-esquerda. Com a eleição de Bolsonaro, esse processo se aprofundou na direção da direita e da extrema direita. Essa mudança profunda que rompe com a tradição política do Rio Grande como ‘estado politizado’, envolve fortemente as zonas de colonização italiana e alemã e atualmente espalhou-se pelo conjunto do estado.
