O show da Lady Gaga e a lógica dos incentivos

O show gratuito da Lady Gaga na Praia de Copacabana reuniu uma multidão histórica, movimentou o turismo, ganhou repercussão internacional e gerou imagens espetaculares que correram o mundo. Foi um marco de entretenimento no Brasil. Mas, depois dos aplausos, é preciso olhar com atenção para o que esse espetáculo revela sobre o uso de recursos — públicos e privados — e como isso se conecta à lógica dos incentivos que rege a atuação do Estado.

Embora promovido como gratuito, o evento custou cerca de R$ 92 milhões. Esse montante foi financiado por grandes patrocinadores e contou com mobilização de estrutura pública, como segurança, limpeza, fechamento de vias, reforço no transporte, comunicação institucional e apoio logístico. Ou seja, mesmo sem cobrança de ingresso, a conta não foi inexistente, só foi paga por outros meios.

Essa é justamente a reflexão que economistas como Milton Friedman insistiam em trazer à tona: não existe almoço grátis. Quando um show é oferecido ao público sem custo direto, é porque os custos foram repassados, direta ou indiretamente, à sociedade.

Quando o Estado entra no jogo

O envolvimento do poder público em eventos com esse perfil levanta uma questão: essa é a melhor forma de utilizar recursos e estrutura do Estado? É justo que a máquina pública se mobilize para beneficiar um evento que, por si só, já tem apelo comercial e capacidade de atrair investimentos privados?

Claro que há benefícios. O comércio local faturou, a rede hoteleira operou com alta ocupação, a cidade ganhou visibilidade e os fãs viveram uma experiência única. Mas é preciso ir além da euforia e perguntar: o que mais poderia ter sido feito com a mesma estrutura mobilizada?

Quando o Estado entra para facilitar ou apoiar um megaevento, ele faz escolhas. E, ao escolher, deixa de atender outras demandas legítimas, como pequenas iniciativas culturais, projetos comunitários, incentivo a novos talentos e acesso à cultura nas periferias urbanas e regiões afastadas dos grandes centros.

A distorção dos incentivos

Eventos com grande retorno de mídia e apelo internacional atraem o interesse de marcas, patrocinadores e veículos de imprensa. Eles não precisam, necessariamente, da força institucional do Estado para acontecer. Quando o poder público decide priorizá-los, interfere na lógica natural do mercado e, pior, distorce os incentivos.

O risco é criar um cenário em que grandes nomes e espetáculos midiáticos se tornam “prioridade cultural”, enquanto ações locais, oficinas de formação, manifestações populares e movimentos de base seguem invisíveis e desassistidos. É o inverso do que se espera de uma política cultural democrática e plural.

Papel do Estado versus papel das marcas

O setor privado tem todo o direito — e até interesse — de apoiar iniciativas culturais. Isso fortalece a imagem das empresas, aproxima marcas do público e gera valor intangível. 

Mas o Estado precisa agir com outro tipo de responsabilidade. Ele não pode se comportar como mais um patrocinador, escolhendo o que gera mais mídia ou agrada mais à opinião pública. Seu papel é corrigir distorções, ampliar acessos e garantir que a cultura não seja privilégio de grandes centros nem de grandes nomes.

Depois do espetáculo, a reflexão

O show foi um sucesso. Mas, passada a euforia, é hora de refletir sobre o que ele simboliza. Quantos projetos deixaram de acontecer para que esse pudesse brilhar? Quantas iniciativas relevantes ficaram sem apoio, sem palco, sem público? Qual a lógica de um Estado que se envolve com megaeventos e ignora as margens?

Essa discussão não é sobre Lady Gaga, nem sobre o direito de curtir um grande espetáculo. É sobre prioridades públicas, uso racional de recursos e a importância de critérios claros nas decisões institucionais.

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