Cracolândia: o boato do ‘fim’, perguntas e certezas sobre um dos territórios mais cobiçados de SP

O que está acontecendo com a Cracolândia, no centro de São Paulo (SP)? Desde que o lugar onde o fluxo se concentrava — entre gradis e um muro na rua dos Protestantes — amanheceu vazio em 13 de maio, os únicos que parecem não se preocupar em responder essa pergunta são, provavelmente, os que mais saberiam respondê-la.

“Estamos fazendo o que ninguém teve coragem de fazer”, anunciou o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) um dia antes, em um post em que disse que “a Cracolândia vai acabar”. Cínico, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) declarou ter ficado surpreso com o sumiço da aglomeração, mas que, seja como for, era motivo de “comemoração”.

Por parte dos movimentos, o esforço é de reunir as denúncias de intensificação da violência policial, encontrar usuários que desapareceram, compreender a dispersão das pessoas e investigar a veracidade de notícias de que grupos estariam sendo levados para regiões distantes do centro. Infeliz e coincidentemente, é neste contexto que o Brasil de Fato lança, no YouTube, a série documental Território em Fluxo.

Em cinco episódios, resultado de nove meses de apuração e cerca de 30 entrevistas, a série tem como protagonistas os usuários e coletivos que ali atuam. Dividido nos temas fluxo, moradia, segurança, cuidado e cultura, o documentário retrata a história, a disputa e a complexidade de uma das regiões mais concorridas da capital paulista.

Entre as tantas questões não respondidas sobre o que está em curso neste momento, algumas certezas temos. Diferentemente do que tentam alegar os governantes em um discurso que busca, em uma tacada só, criminalizar os moradores do Moinho e legitimar a política higienista do Palácio dos Bandeirantes, a dispersão da Cracolândia não é consequência da remoção forçada da última favela do centro.

Outro fato que constatamos é a intensificação da violência de Estado, em especial pela Inspetoria de Operações Especiais (IOPE) da GCM. Jogador, como é conhecido José Maurício da Silva, um dos protagonistas da série que hoje participa do programa Teto, Trampo e Tratamento (TTT), relatou que as coisas estão mudando rápido. “Hoje em dia eles estão mirando o rosto, não miram mais no pé ou no tórax, igual miravam antigamente. Eles miram o olho. Entendeu?”

Renato Oliveira Júnior, usuário e dançarino que você também vai conhecer assistindo a Território em Fluxo, está, neste momento, com o joelho inchado. No dia em que a GCM expulsou na porrada as pessoas de onde o fluxo se concentrava, um guarda pisou no seu joelho quase fazendo a perna virar ao contrário. Disse que, da próxima vez, ele nunca mais dança. “Hoje não existe confronto de usuário com a polícia”, resumiu Jogador: “Existe a covardia da polícia com o usuário”.

Por último, outra certeza que temos é que, apesar de a guerra às drogas reger a forma como o Estado lida com essa população — desculpa usada para tirar as pessoas pobres e negras deste cobiçado território —, experiências incríveis acontecem neste lugar.A dança de Renatinho, o canto de Laurah Cruz, o pandeiro de Jurandir, os encontros no bar da Nice, as oficinas de letramento do TTT, o cinema no fluxo, o Pagode na Lata, as costuras do Tem Sentimento são só algumas. E todas estão ameaçadas. São iniciativas que a gente acompanhou e que se baseiam na redução de danos, na dignidade e no respeito com as pessoas, em formas de desenvolver as suas potências e sabedorias, em construir caminhos para organizar a vida sabendo que, mais que o crack, os problemas ali são decorrentes das desigualdades estruturais do nosso país. Uma perspectiva que, obviamente, as políticas institucionais em curso querem tirar do caminho. Uma semana antes do fluxo ser pulverizado, estes coletivos foram barrados pela GCM de se aproximarem.

Como justificativa, citaram um decreto municipal de 2023 que diz que atividades com “sons e ruídos” precisam de autorização da Subprefeitura da Sé, sob gestão de um PM. Tudo nesta história — GCM, decreto e subprefeito — responde às decisões de Ricardo Nunes. O mesmo que se “surpreendeu” com a nova dinâmica no centro. Como resumiu Escobar, do Pagode na Lata, o que defendemos é “o direito à felicidade, direito ao amor, direito ao abraço. O resto é disputa”. Está no ar, então, uma contribuição nossa para esta disputa, tão desigual quanto urgente.

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