Odete em Vale Tudo, Virgínia na Grande Rio e as armadilhas do racismo

Em maio, as redes sociais foram tomadas por publicações, memes e reflexões sobre o sucesso das personagens vilãs da novela Vale Tudo e da fatídica participação da influenciadora Virgínia Fonseca na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das bets no Senado Federal. Dois casos que, separados à primeira vista, se conectam quando se explicita o racismo e suas armadilhas.

Manuela Dias, autora da nova versão de Vale Tudo, tem conseguido criar uma empatia generalizada do público com três personagens da trama: Maria de Fátima, Odete Roitman e Marco Aurélio. Não à toa, a frase de um meme sintetiza o cenário “em Vale Tudo, não há vilão para mim”.

Odete Roitman, considerada umas das principais vilãs das tramas da Globo, é uma personagem bilionária que odeia o Brasil e todas as expressões da cultura nacional: não gosta do português, odeia as cidades brasileiras, o clima e os brasileiros. Trata-se de uma fiel representação da classe dominante e seu cariz anti popular, racista e anti nacional, como caracterizou Florestan Fernandes.

Na trama atual, Odete se alia à personagem Maria de Fátima, uma jovem negra do interior do Paraná, para emplacar o fim do relacionamento do seu filho herdeiro com uma jovem feminista e colocá-lo mais próximo da vilã de origem pobre. Afora as necessidades de reconstrução da dramaturgia de Vale Tudo para o século XXI, não parece estranho que uma fiel representante da burguesia — repito, antipopular, antinacional e racista — faça uma aliança com uma jovem negra e pobre?

Ao fazer uma justa escolha das atrizes negras para interpretar personagens centrais da trama que possuem origens populares, Raquel (Taís Araújo) e Maria de Fátima (Bella Campos), a autora não consegue emplacar uma Odete que efetivamente odeia o Brasil. Sem mimetizar raça e nação, quero aqui chamar a atenção para um aspecto fundamental da formação social e cultural brasileira: a força da cultura africana e afro-brasileira na construção do que hoje chamamos de identidade nacional: a maneira como falamos o português (interiorizado e disseminado pelos negros e negras escravizados, como enfatizou Darcy Ribeiro), a nossa música popular, as expressões religiosas, as festas populares (como o carnaval) etc.

Fica difícil não se conectar à personagem Odete Roitman, entre outros motivos, também porque sua postura de “ódio ao Brasil” parece não se sustentar na trama. Não acredito que os bilionários que compõem a fração da burguesia interna sejam tão condescendentes com a ascensão social das camadas populares, de maioria negra, em especial, fazendo isso no interior de seus lares. Sem colocar em demérito tantos outros aspectos que fazem com que as pessoas abracem a trama, o fato é que, pelo termômetro das redes sociais, está mais fácil se afeiçoar a Odete do que à mocinha Raquel.

Doutro lado, maio também ficou marcado pela cena vergonhosa do depoimento de Virgínia Fonseca, jovem branca e milionária, devota da “teologia da prosperidade”, que incrementou seu patrimônio às custas de publicidades para empresas de apostas online, se beneficiando do azar de seus seguidores. Além da personagem indefesa com garrafinha e canudo rosa, Virgínia ainda foi acolhida na CPI por senadores conservadores que a trataram como celebridade, evidenciando as concessões ilimitadas que a direita brasileira é capaz de fazer com brancos ricos, mesmo quando deveriam estar literalmente no banco dos réus.

Totalmente previsível, Virginia aproveitou o engajamento gerado para emplacar uma promoção no site da sua marca de cosméticos. A surpresa ficou por conta da divulgação da Escola de Samba Grande Rio, de Duque de Caxias/RJ, que divulgou que a influenciadora será a rainha de bateria do carnaval de 2026, substituindo Paolla Oliveira (atualmente interpretando Heleninha em Vale Tudo).

Entre tantos motivos que causaram estranhamento, vale destacar que em 2026 a Grande Rio vai homenagear o movimento Manguebeat. Originado em Recife e Olinda, cidades de Pernambuco, esse movimento revolucionou a cena musical brasileira dos anos 1990 em diante. Dos mangues e periferias, das alfaias de maracatu às guitarras típicas do rock, o Manguebeat explorou linguagens e expressou forte crítica às desigualdades sociais, inclusive influenciado pelas denúncias de Josué de Castro aos deletérios impactados pela pobreza e pela fome.

O apelo aos temas de crítica às desigualdades sociais e ao racismo sempre estiveram presentes nas escolas de samba do Rio de Janeiro. Assim como o Manguebeat, o samba também é expressão de resistência do povo negro, das culturas periféricas. A escolha da influenciadora Virgínia Fonseca, em especial após sua participação na CPI, escancara inúmeros mecanismos de apagamentos promovidos pelo racismo: de um lado, a dama das bets com a Grande Rio que não esconde a sua indiferença com o conjunto de valores que marcaram o movimento homenageado, de outro lado, evidencia a volatilidade do racismo religioso, pois Virgínia se declara cristã nos moldes do conservadorismo tão avesso às tradições da cultura popular afro brasileira.

O racismo, como trauma e chaga nacional, não foi devidamente enfrentado e os mecanismos atuais, especialmente por meio de políticas públicas, ainda são insuficientes. Vale Tudo perde a oportunidade de construir uma trama que escancare as desigualdades que envolvem o racismo como componente indispensável à classe dominante, e a Grande Rio retrocede ao escolher Virgínia Fonseca para ocupar um posto de visibilidade em uma escola marcada por explorar temas que criticam as desigualdades de raça e de classe no Brasil.

Tanto as dificuldades de emplacar a vilania de Odete Roitman quanto a indicação da influenciadora para o posto de rainha de bateria da Grande Rio revelam facetas contemporâneas do racismo, escancarando sua complexidade e sua capacidade de se escamotear.

*Leonardo Nogueira é doutor em Serviço Social, professor do Departamento de Serviço Social da UFOP e coordenador do Trem da História: grupo de pesquisa e extensão.

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