
A rigor, o título de “doutor” deve ser reservado àqueles que concluíram o doutorado, última etapa da pós-graduação stricto sensu. Trata-se de um grau acadêmico, obtido após anos de pesquisa e dedicação ao saber.
No entanto, por força do hábito e da tradição, no Brasil, é comum que médicos e advogados sejam chamados de “doutores” mesmo sem possuírem tal titulação.
Essa prática remonta ao Brasil Colônia, mais precisamente ao decreto de Dom Pedro I, de 1827, que conferia aos concluintes das Ciências Jurídicas e Sociais o direito de serem tratados como doutores.
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A partir daí, consolidou-se um entendimento mais amplo e popular do termo: “doutor” passou a ser sinônimo de “pessoa estudada”. Aliás, etimologicamente, a palavra “doctor” significa “aquele que ensina”.
Com o passar do tempo, o decreto perdeu sua validade formal, mas a prática permaneceu, transformando-se em uma tradição socialmente aceita — e pouco questionada. Hoje, ao concluírem a graduação, médicos e advogados recebem, tecnicamente, o título de bacharel.
Portanto, rigorosamente falando, só é “doutor” quem concluiu o doutorado. Ainda assim, é comum vermos a abreviação “Dr.” ou “Dra.” em cartões de visita, receitas, perfis de redes sociais e placas de consultórios.
Não seria o momento de refletirmos com mais responsabilidade sobre esse uso automático? Afinal, se um médico sem doutorado pode se autodenominar “doutor”, por que um psicólogo, nutricionista, economista, contador ou enfermeiro não poderia fazer o mesmo?
Qual o limite para a chamada “força do hábito”?
Não se trata, aqui, de rotular como “erro” o fato de algumas pessoas chamarem médicos ou advogados de “doutores” por respeito ou tradição.
O objetivo, na verdade, é problematizar as razões desse uso a partir de uma análise crítica. Há, sim, uma dimensão ética na decisão de se autointitular “doutor” em contextos formais ou em documentos, mesmo quando o título acadêmico correspondente não foi conquistado. Trata-se de uma escolha consciente, que pode representar um reforço simbólico de status — ou mesmo de classe social.
A Resolução nº 2.069/2014, do Conselho Federal de Medicina, estabelece o seguinte:
“Art. 2º – É facultado ao médico(a), em todo o território nacional, utilizar, antecedendo seu nome, a palavra DOUTOR(A) ou sua abreviatura, conforme consagrado pelo direito consuetudinário”.
Ora, mas cabe perguntar: a quem interessa o que resolve o Conselho Federal de Medicina? À sociedade ou aos próprios médicos?
Um olhar sociológico sobre o assunto
No texto “Características sociológicas da profissão médica”, a socióloga Maria Helena Machado afirma que nenhuma outra profissão no Brasil alcançou tamanho grau de autonomia quanto a medicina.
Trata-se de uma carreira fortemente autorregulada e cercada de privilégios institucionais — tanto no plano técnico quanto no econômico.
Segundo a autora, a medicina representa um projeto profissional bem-sucedido, fruto de uma aliança histórica com o Estado — que lhe concedeu prerrogativas legais exclusivas — e com as elites, a quem vende seus serviços no mercado.
Com isso, a imagem do médico como expert tornou-se praticamente incontestável. A prática liberal da medicina, sustentada por autonomia, prestígio e autoridade, foi se moldando, ao longo do tempo, em uma relação de poder baseada na legitimidade e na aceitação social da hierarquia simbólica.
Nesse contexto, questionar o uso indiscriminado do título de “doutor” é também questionar o status quo. Trata-se de um gesto político, no sentido weberiano: uma forma de desafiar a lógica liberal que perpetua desigualdades simbólicas entre as profissões.
Para Max Weber, a dominação só se efetiva plenamente quando há um alto grau de legitimidade reconhecido por ambas as partes — tanto por quem exerce o poder, quanto por quem o aceita. É preciso, segundo ele, que as pessoas admitam a autoridade, reconheçam o poder e, assim, aceitem a dominação.
Retomando…
É claro que essa crítica não desmerece a importância da medicina, tampouco ignora sua complexidade ou suas exigências técnicas.
O que se problematiza é a pretensa superioridade social da profissão, que se expressa, entre outros meios, na forma como os médicos são tratados — e como fazem questão de ser tratados — em comparação a outros profissionais igualmente formados, igualmente competentes, igualmente merecedores de respeito.
No campo do direito, o uso do termo “doutor” também é visto como símbolo de status. Não há determinação legal que obrigue o uso de “doutor” para advogados.
A Constituição Federal, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994) e o Código de Ética da Ordem não impõem essa exigência. Trata-se, novamente, de uma questão de tradição. O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu guia de redação, aponta que:
“’Doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico. Evite usá-lo indiscriminadamente. Como regra geral, empregue-o apenas em comunicações dirigidas a pessoas que tenham tal grau por terem concluído curso universitário de doutorado”.
Fato é que, não raro, juízes e advogados fazem questão de serem tratados com deferência exagerada. Há alguns anos, uma juíza do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, Kismara Brustolin, gritou com uma testemunha que se recusou a chamá-la de “Excelência”.
O homem apenas perguntou se havia obrigatoriedade formal para tal tratamento — e foi retirado da sala de audiência. O caso repercutiu amplamente e escancarou o autoritarismo ainda presente em certos ambientes.
Felizmente, percebo que estamos caminhando para um tempo de maior equilíbrio nessas questões. A sociedade brasileira começa a rejeitar a “carteirada”, o elitismo vocativo, os títulos como forma de segregação simbólica. Profissionalismo e respeito não dependem de adornos linguísticos.
No campo jurídico, inclusive, já se busca uma linguagem mais clara e acessível. O chamado “juridiquês” vem sendo desestimulado, e a própria redação dos atos judiciais está passando por mudanças significativas.
Quem domina a boa escrita reconhece: quanto mais floreado o texto, mais difícil é a comunicação verdadeira.
A língua, como se sabe, é viva e mutável — e também política. O próprio pronome “você” tem origem em formas cerimoniosas que se popularizaram e se simplificaram com o tempo.
Hoje, tratamos um juiz ou um médico com “você” sem, necessariamente, faltar com o respeito. O que configura desrespeito é a ofensa, é a grosseria — não a ausência de um vocativo pomposo.
Vivemos tempos de crise na figura da autoridade. Isso se manifesta, por um lado, na banalização do desrespeito; por outro, na vigilância contra abusos e arbitrariedades. A autoridade que se impõe apenas pelo título e pela imposição de linguagem está cada vez mais desgastada.
No fim das contas, o verdadeiro valor de um profissional está em sua ética e humanidade — e não nas denominações que carrega. Curiosamente, os verdadeiros doutores muitas vezes preferem ser apenas “professores”.
Talvez seja nessa simplicidade silenciosa que resida o caminho para o respeito verdadeiro.