Sob o signo de Vulcano, uma lição de escultura

Esculturas que emergem do fogo e habitam o silêncio: a arte potente de José Carlos Vilar
Foto: Flávia Dalla Bernardina

Mais uma vez, numa dessas agradáveis tardes de maio, meus pés me levaram na direção do Palácio Anchieta: dessa vez para lá mesmo, onde visitei a exposição de José Carlos Vilar. Ao entrar no recinto da exposição, você se depara com a presença silenciosa das peças de Vilar.

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Sob o signo de Vulcano, o deus das forjas, habitante do subterrâneo, essas esculturas de aço emergem, esfriadas, a falar de sua história de embate com o fogo e da energia do escultor que se entrega, corpo a corpo, numa ligação muito estreita, física, vital, com a matéria e o processo que a transforma.

Como muito bem percebeu o curador Agnaldo Faria, Vilar se vale, neste confronto, do vigor de sua constituição de atleta, para sua deflagração.

Já no poema de João Cabral de Melo, epígrafe da exposição e do texto de apresentação – outro acerto curatorial, um belo achado – o poeta constrói a geometria de seus versos num diálogo com um forjador, que despreza o ferro fundido: Só trabalho em ferro forjado/que é quando se trabalha ferro/ então, corpo a corpo com ele/domo-o, dobro-o, até o onde quero.

Agora, esfriados, estes objetos misteriosos habitam em seu silêncio solene as salas do palácio.

Acertadamente dispostos sobre o piso, sem pedestal – claro, a escultura moderna está no mundo em sua concretude, em sua tridimensionalidade constitutiva, volume e forma, uma presença, um ente que compartilha o espaço conosco – em cada sala parecem erguer-se – ou, à vezes, deitar-se – estranhas e fascinantes coleções.

O mistério que ativa a imaginação

Coleções de quê? Em seu silêncio frio, misteriosas, essas peças ativam nossa imaginação. Aparecem talvez como dispositivos oriundos de antigas – e avançadíssimas – civilizações ancestrais que nos abandonaram, como os gigantes atormentados do belo início do romance Shikasta, de Doris Lessing.

Ou ainda estreitos portais, cujas fendas, concebidas pelo jogo entre superfícies côncavas e convexas, atraem hapticamente, eroticamente, os olhos para o toque, parecendo convidar as mãos, que anseiam deslizar por suas superfícies rugosas, a conhecê-las e acariciá-las (detalhe aqui, na melhor tradição do neoconcretismo, não é proibido tocar nos objetos); ou, ainda, outras peças que dialogam com a tradição construtiva brasileira, em especial, com Amílcar de Castro e Franz Weissmann, mas também remetem a Louise Bourgeois e sua aranha, aqui, como que atraída para a órbita do mangue capixaba, uma prima sua, meio que metamorfoseada em caranguejo gigante.

A opção de não classificar em espaços estanques a separar as diferenças se revela sofisticadamente correta: heterogêneos, os conjuntos respiram, num crescendo, em harmonia com a lógica das afinidades eletivas derivadas de suas dimensões.

Do monumento ao objeto: em outra sala, a alegria que senti ao reencontrar, num ambiente mais íntimo, só delas, as miniaturas que tinha conhecido num encontro feliz de amigos no ateliê de Vilar, há mais de dez anos.

Revejo e reconheço, uma a uma, com o sorriso insistente da lembrança, estas pequenas peças que aliam o vigor de suas irmãs maiores à leveza e à suavidade de sua existência de seres pequenos delicados.

E o mar de placas suspensas, ondulantes? Seriais e sugestivas, líquidas em sua solidez, vibrantes, sutilmente sonoras, inundam, como a homenageá-la, a sala dos grafites, relíquia da história capixaba.

Atmosfera silenciosa

Fui colega de Vilar no Departamento de Artes Visuais da UFES durante mais de dez anos até sua aposentadoria e posso testemunhar: há muito de sua personalidade estável, firme e consistente, do caráter sólido, positivo, de escultor essencial, na concretude sóbria da obra de Vilar.

Como afirma Agnaldo Faria no texto de apresentação, “José Carlos Vilar é um mestre da escultura brasileira. Sorte a nossa, especialmente dos habitantes de Vitória”.

E, Fabricio Noronha, nosso Secretário de Cultura, que lembra ter sido aluno dele – como foi também meu, em desenho – o tempo voa! – acrescenta: “esta exposição é um justo tributo que o Estado faz a ele”, “um artista tão inquieto na criatividade”.

Pretendo voltar: uma vez só é pouco para respirar a atmosfera silenciosa e telúrica destaLição de escultura: quero mais, quero outras. Não percam. Parabéns, Vilar! Parabéns, mestre!

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