O Dia Nacional do Funk é celebrado neste sábado (12). Em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, Thiago de Souza, conhecido como Thiagson, doutor em musicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em funk, analisa o preconceito das universidades com o gênero e ressalta a sua importância social. “Na verdade, estudar Beethoven não é por causa do Beethoven; é porque nós reproduzimos a cultura do colonizador, que valoriza o homem branco e despreza nossa cultura periférica”, afirma.
Autor do livro Tudo o que você sempre quis saber sobre o funk… mas tinha medo de perguntar, Thiagson também avalia a criminalização das letras de funk. Para ele, trata-se de uma leitura superficial e racista. “No fundo, a mensagem é: fique longe do crime porque ‘o bagulho é louco’. Ou seja, não é um incentivo ao crime. Se canta o que se vê e o que se vive numa perspectiva crítica”, diz.
Ao comentar a recente valorização institucional do funk, como a sanção da lei 14.940/2024 que oficializa o Dia Nacional do Funk, Thiagson observa que “a universidade acolhe a contradição na teoria, mas a prática ainda é muito conservadora”. Ele defende que a rebeldia das letras, inclusive as que falam sobre sexo ou ostentação, são formas legítimas de expressão política. “A arte faz política antes dos artistas”, declara, reproduzindo uma fala do filósofo francês Jacques Rancière.
Veja a entrevista completa:
Você tem um livro chamado Tudo o que você sempre quis saber sobre o funk, mas tinha medo de perguntar. Como o funk foi inserido na sua vida?
O funk entrou na minha vida tocando ao meu redor. Eu nasci no sertão da Bahia, fui criado em Santo André, uma região periférica, e o funk sempre fez parte da minha infância. Depois, fui estudar música clássica e isso foi ficando à margem do ensino. Inclusive, isso era motivo para eu ter vergonha. Ia introjetando o elitismo, achando que só a música de concerto europeia tinha importância. Até conseguir me livrar disso, adquirir repertório e bagagem para enfrentar esse tipo de ideia conservadora, demorou um pouco. Acho que o livro também é fruto dessa vivência.
Como você percebe o preconceito das instituições acadêmicas em relação ao funk e aos seus pesquisadores?
A universidade acolhe pesquisa sobre funk há bastante tempo, mas na área de música isso não acontece. A área de música ainda é muito eurocentrada. É curioso perceber que, desde o final dos anos 1980, temos estudos sobre funk nas ciências sociais, mas a música passou a considerá‑lo objeto de estudo só bem depois dos anos 2000. Por quê? Porque o ensino universitário de música é completamente branco e eurocentrado, voltado apenas para a Europa. Fala‑se pouco sobre questões sociais como racismo e machismo e, quando isso não é discutido, o resultado é um departamento que apenas reproduz essas ideias. Na verdade, estudar Beethoven não é por causa do Beethoven; é porque reproduzimos a cultura do colonizador, que valoriza o homem branco e despreza nossa cultura periférica, centro da vida social da juventude brasileira.
O que mudou, ou não, na visão das universidades sobre o funk desde o início dessas pesquisas acadêmicas?
Há uma abertura maior. O fato de um departamento de música ser extremamente conservador e, ainda assim, eu ter conseguido fazer doutorado sobre funk já significa muito. Por outro lado, a universidade acolhe a contradição na teoria, mas a prática continua conservadora. Ainda existe muito preconceito prático: a instituição problematiza, mas não permite a mudança. Essa é uma grande contradição, uma malandragem universitária. Quem analisou bem essa questão foi o sociólogo Pedro Demo: a universidade é o lugar que acolhe o questionamento, mas resiste à mudança e, pior, mente para a sociedade dizendo que é onde as mudanças acontecem.
O presidente Lula sancionou a lei 14.940/2024, que institui o Dia Nacional do Funk em 12 de julho, data do Baile da Pesada de 1970, marco do movimento no Rio. O passinho foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio, e os Bailes das Antigas também. Até pouco tempo, o funk era demonizado e visto como criminoso. Ainda há essa associação, porém agora ele conquista reconhecimento. Como você avalia essa mudança?
Esses movimentos políticos e institucionais de valorização são importantes porque o funk ainda sofre muita violência, especialmente policial. Mas usamos a palavra “funk” para diversos fenômenos musicais. Certas vertentes já são legitimadas há bastante tempo, porém o funk que toca no baile de favela continua demonizado. É fundamental olhar para essas manifestações contemporâneas para não repetir o erro histórico de legitimar apenas a arte do passado.
Um bom exemplo é o Rap da Felicidade: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci.” Essa música já é aceita: não contém palavrões, não desperta incômodo moral. Mas quando não incomoda socialmente, perde o potencial de rebeldia. Há uma história perversa por trás: a compositora foi assassinada e esquartejada, embora cantasse “eu só quero é ser feliz”. Não se conhece esse contexto. É preciso manter a rebeldia, pois ela revela a insatisfação de uma sociedade desigual e racista como a nossa.
O funk brasileiro tem vários subgêneros. Muitos MCs dizem que foram “salvos” pela música. A música, de fato, salva da criminalidade?
Com todo respeito aos MCs, meu trabalho mostra o contrário: não é a música que muda pessoas ou sociedade, mas o que se faz a partir dela. A música é uma porta de entrada que permite aprofundamento. Se a música, por si só, tivesse o poder que lhe atribuímos, o Brasil seria mais feliz e menos conservador. Afinal, todo mundo escuta funk e, ainda assim, persiste um conservadorismo político. O funk, resumidamente, cria um paraíso imaginário: o jovem negro periférico canta felicidade, consumo, autoestima… coisas que, na prática, lhe são negadas. Se a letra bastasse para mudar realidades, o Brasil já teria mudado; mas é o uso que se faz da música que transforma vidas.
O funk e o rap ainda são vistos como apologia ao crime. O que você responde a quem pensa assim?
Basta uma análise racional. Se definirmos “apologia” como letra que incentiva o crime, não há incentivo. O que se canta é uma realidade dura. Há, por exemplo, a letra do MC Smith que diz: “Hoje somos festa, amanhã seremos luto.” Ou seja, canta‑se a morte o tempo todo. No fundo, a mensagem é: fique longe do crime porque “o bagulho é louco”. Ou seja, não é um incentivo ao crime. Se canta o que se vê e o que se vive numa perspectiva crítica. Talvez seja agressivo porque o fato de viver uma realidade muito precarizada deixa qualquer um estressado, mas não é apologia.
Como incentivar a participação ativa das periferias nas discussões sobre funk?
Gostaria que a própria comunidade entendesse que o gozo presente nas letras sobre sexo é também manifestação política. Há uma frase de um pensador francês [Jacques Rancière]: “A arte faz política antes dos artistas.” É comum o desinteresse de MCs e das periferias por política, pois se confunde política com partido. Mas eles são políticos o tempo todo. Precisamos acompanhar a política que o funk já traz, com mente aberta: antes de julgar, tentar entender.
O funk brasileiro revolucionou não só a indústria fonográfica nacional, mas também a internacional. Os “gringos” piram no nosso som. Como você avalia isso?
Há muito tempo, os MCs Amilcka e Chocolate cantaram: “É som de preto, é som de favelado, mas quando toca ninguém fica parado.” A sociedade é racista: gosta da música, mas não de quem a faz. Mas ninguém resiste ao poder de sedução sonora do funk, arte empírica baseada no corpo. Não ouvimos funk só com os ouvidos; ouvimos com o corpo, dançando. É música que busca comover de forma ampla: ouvindo, dançando, rindo, curtindo o baile. Enquanto a música clássica pretende formar “gênios” que compõem para o ouvido e a mente, o funk preocupa‑se em comover. Nesse sentido, ele muitas vezes toca mais a mente do que uma peça composta na Alemanha do 19.
Quando falamos de funk, falamos de gênero musical, mas não só: há um movimento, um jeito de vestir e de falar. Estou errada?
Nenhuma cultura musical vive isolada. A música é uma rede social que traz todas as características da sociedade. Isso inclui vestimenta, modo de falar, modo de existir, a cosmovisão da periferia. A maneira como a periferia canta sobre sexo, consumo ou política difere da classe média. O funk é isso: visão de mundo, uma forma de fazer letra, uma poética. O funk é também uma forma de existir no mundo.
Que reação ou mudança você espera provocar com seus estudos em diferentes contextos sociais?
Vivemos numa sociedade preconceituosa que julga pela aparência. Quero uma sociedade que analise argumentos, a profundidade das coisas, e não se deixe levar pela superfície. O mesmo preconceito contra o funk se aplica à música clássica, vista como coisa de “gênios superiores”, e não é assim. O funk, hoje o gênero de maior sucesso, é também o que mais sampleia música clássica. Se ouvir música clássica elevasse o espírito, por que a periferia, que consome funk cheio de trechos clássicos, não está “espiritualmente elevada” e rica? Espero ver mais argumentos, menos racismo, preconceito e aversão. Queria uma sociedade de espírito aberto.
Para ouvir e assistir
O jornal Conexão BdF vai ao ar em duas edições, de segunda a sexta-feira, uma às 9h e outra às 17h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea também pelo YouTube do Brasil de Fato.
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