O Projeto de Lei 2159/2021, que flexibiliza o licenciamento ambiental e ameaça direitos socioambientais, foi alvo de protestos em diversas cidades brasileiras neste fim de semana. Em Porto Alegre, o ato neste domingo (13) reuniu movimentos ambientalistas, parlamentares de diversos partidos, sindicatos, estudantes e representantes da sociedade civil em frente aos Arcos da Redenção, onde uma faixa contra o projeto foi instalada.
A manifestação fez parte de uma agenda nacional contra o chamado “PL da Devastação“, que pode abrir caminho para grandes empreendimentos em áreas protegidas, sem a devida análise técnica ou participação de órgãos ambientais. O ato contou com apresentação do grupo Umbúntu, de Alvorada.
A representante da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) Simone Azambuja destacou que o Rio Grande do Sul tem uma longa trajetória de mobilizações ambientais, iniciadas ainda nos anos 1930, com nomes como Balduíno Rambo, José Lutzenberger, Hilda Zimmermann e Magda Renner. Segundo ela, antes mesmo disso, povos indígenas e quilombolas já detinham saberes profundos sobre os ecossistemas: “Vamos aprender com eles pelo resto das nossas vidas”, afirmou.
Ela explicou que o licenciamento ambiental foi instituído pela Lei nº 6.938/1981, com três etapas preventivas (licença prévia, de instalação e de operação), e criticou duramente a aprovação do PL 2159/2021 no Senado. Para Azambuja, o projeto representa o maior retrocesso ambiental das últimas décadas ao permitir o autolicenciamento com base apenas na autodeclaração do empreendedor, inclusive para atividades de médio impacto, contrariando decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

A ambientalista alertou que a proposta fragiliza o controle ambiental, isenta de licenciamento diversas atividades agropecuárias, enfraquece o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), além de desvincular o processo da outorga de uso da água. Também criticou a Emenda 198, que cria uma Licença Ambiental Especial e transfere ao Conselho de Governo o poder de autorizar grandes obras em terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação, tornando simbólica a atuação de órgãos como Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ICMBio e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“É paradoxal que o Brasil sedie a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas 2025 (COP30) e, ao mesmo tempo, aprove uma legislação que compromete sua credibilidade ambiental. O legado será um imenso passivo que não será pago pelos proponentes do PL, mas pela população, especialmente pelas futuras gerações. Isso é o suprassumo do capitalismo predatório”, concluiu.

No dia 21 de maio o Senado aprovou o projeto de lei por 54 a 13. A relatora do projeto, senadora Tereza Cristina (PP-MT), ex-ministra de Agricultura do governo de Jair Bolsonaro (PL), defendeu o texto aprovado. “Dizer que a nova lei é um retrocesso é ignorar a realidade dos últimos 20 anos. Nesse período, na ausência da lei clara, o Brasil viveu tragédias ambientais, perdas humanas e degradações severas. Isso sim foi devastador. Deixar tudo como está é o verdadeiro retrocesso. O novo marco do licenciamento englobará todas as atividades e setores produtivos”, defendeu Azambuja.
Voz dos povos originários: “Eu nasci sendo ambientalista”
A cacica Gãh Té, conhecida como Iracema, fez um apelo por respeito à natureza, à Constituição e aos direitos dos povos originários. “Eu sou daquele povo originário desse país. Eu amo o meu povo, amo estar na floresta, amo tomar água limpa, amo estar na sombra”, declarou.
Ela denunciou a hipocrisia de políticos que dizem representar o povo, mas ignoram os direitos indígenas e não enfrentam a crise ambiental. “Quando vem uma enchente, um calor fora do tempo, a culpa é de quem? Da comunidade ou de quem destrói a natureza, tira as raízes, mata os matos?”, questionou.
Em tom de denúncia, apontou os efeitos do racismo ambiental e das mudanças climáticas. “Sofremos com o vento forte, com a chuva que afoga, com a destruição da Constituição. Isso também é uma tentativa de nos matar (…). Mesmo que tenham muito dinheiro, não vão ter a vida pra sempre. Amem a vida, as crianças. Amem seu próximo como se ama a humanidade.”

Resistência
Representante da Frente Popular de Enfrentamento da Emergência Climática Marcos Todte ressaltou a união de mais de 60 entidades em defesa do meio ambiente. “Sempre que defendemos o meio ambiente, estamos defendendo o bem comum e a nossa classe, que é a mais afetada pela crise climática. Quem tem mais condições se protege, enquanto nós precisamos fazer um enorme esforço de solidariedade, como nas enchentes do ano passado”, afirmou.
Ele citou desastres como o de Brumadinho e o colapso em Maceió causado pela Braskem, para ilustrar os efeitos da destruição ambiental em nome do lucro. “É hipocrisia que, em vez de fortalecer a legislação ambiental, estejamos avançando para desmontá-la.”
Para Todte, o PL 2159/2021 não representa um modelo alternativo de política ambiental, mas sim uma ofensiva contra qualquer proteção. “Isso não é desenvolvimento, é caminhar para o abismo. Em um estado com tradição ambientalista, como Porto Alegre, não podemos aceitar esse ataque. E mais: às vésperas da COP, é inadmissível que retrocedamos tanto. Precisamos levantar nossa voz e ser vanguarda na defesa ambiental no país.”
O PL simplifica as regras de licenciamento para obras de viadutos, pontes, hidrelétricas, barragens e postos de combustíveis. Além disso, dispensa o licenciamento para obras de melhoria, agricultura tradicional e pecuária de pequeno porte, e restringindo a necessidade de consulta prévia apenas a povos indígenas em terras já demarcadas e comunidades quilombolas tituladas.

O PL também transfere para os governos estaduais e municipais o poder de determinar o nível dos possíveis impactos de uma determinada obra. O projeto ainda amplia para empreendimentos de médio impacto a possibilidade de Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC).
Além de chamar atenção para os impactos da flexibilização ambiental, sobretudo para as comunidades mais vulneráveis, os manifestantes destacaram o processo de privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). Também recordaram da mobilização do Plebiscito Popular e da ofensiva do presidente Trump ao Brasil.
Crise climática e saúde: impactos visíveis
Médico de família e comunidade, Enrique Falceto de Barros explicou o trabalho do grupo de Saúde Planetária da Sociedade Brasileira de Medicina de Família, que busca inserir o tema nas escolas médicas. “Saúde planetária é entender como eventos do micro e do macrocosmo impactam diretamente a saúde humana. Um exemplo: a fumaça das queimadas da Amazônia chegou ao RS e causou centenas de mortes. Partículas microscópicas provocam infartos, Acidente Vascular Cerebral (AVCs), demência. E isso ainda é pouco quantificado.”
Ele também destacou o projeto do periódico The Lancet, do qual é coordenador no Brasil. “O objetivo é mapear os impactos da crise climática na saúde humana e apresentar dados concretos a tomadores de decisão. Defendemos que o licenciamento ambiental inclua a Avaliação de Impacto à Saúde Humana, para mensurar como grandes empreendimentos afetam as pessoas, assim como já fazemos para o meio ambiente.”
Alerta sobre retrocessos urbanos
A geógrafa Lucimar Fátima Siqueira, da Convergência Socioambiental do Fórum Social Mundial, lembrou que a mobilização nacional contra o PL 2159/2021 teve origem na 5ª Conferência Nacional de Meio Ambiente.
Siqueira chamou atenção para os impactos locais do projeto, citando a cidade de Porto Alegre como exemplo de onde os retrocessos já se manifestam. “O projeto tem raízes em todas as cidades. Porto Alegre não está fora disso. A cidade vem sendo construída com falta de amparo ambiental há anos. Basta olhar os vídeos do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). Há acolhimento de delegados defendendo autodeclaração e autolicenciamento. Isso está presente na nossa vida cotidiana aqui.”

Já o integrante do coletivo Umbuntu, de Alvorada Eduardo Fortes Santos ressaltou a importância da presença negra nos espaços de decisão sobre políticas ambientais. “Estamos aqui porque acreditamos que a presença de corpos negros nesses espaços é fundamental. Com a aprovação de um PL como esse, os primeiros territórios a serem devastados serão as áreas periféricas.”
Santos citou o caso da Floresta Negra, em Alvorada, município com os piores índices de desenvolvimento humano do estado, como exemplo da ameaça concreta ao patrimônio ambiental em territórios empobrecidos. “Temos em Alvorada uma área de mata virgem que a cidade decidiu colocar à venda para um loteamento, sem nenhum estudo de impacto ambiental. Estamos lutando para manter aquela floresta de pé. Mas só a nossa luta, como povo periférico, não será suficiente. Por isso pedimos o apoio de todos os ambientalistas.”

Próximos passos da mobilização
Um parecer divulgado nesta segunda-feira (14) reforça o que a fala de todos os manifestantes alertaram: “Além de não solucionar os problemas do licenciamento ambiental no país, traz riscos e problemas adicionais, representando, portanto, um caso claro de oportunidade perdida pelo Congresso Nacional.” O parecer é assinado pelos professores Luís Sánchez, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), e Alberto Fonseca, da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto, a pedido do Observatório do Clima.
O ato integrou uma agenda nacional de resistência ao PL 2159/2021, com manifestações em diversas cidades brasileiras. As organizações envolvidas seguem mobilizadas para acompanhar os desdobramentos da proposta no Congresso Nacional, pressionar parlamentares e ampliar o debate com a sociedade sobre os riscos socioambientais do projeto. Após passar no Senado, texto aguarda votação na Câmara previsto para essa semana.
“Infelizmente, mesmo depois de todas as mobilizações e críticas nacionais e internacionais, o Congresso, que é inimigo do povo, quer pautar esse PL nessa semana, na Câmara dos Deputados”, afirmou ao Brasil de Fato a deputada federal Fernanda Melchionna (Psol). Segundo ela, o texto “saiu ruim da Câmara, piorou no Senado e agora volta ainda mais grave”.
A parlamentar reforçou que segue lutando, junto a outros parlamentares, para barrar a votação, mas destacou a importância da mobilização popular: “É fundamental a pressão de fora para dentro, porque, se for a voto, a gente sabe o que significa a unidade da extrema direita com o centrão fisiológico, que é anti meio ambiente”. Por fim, defendeu que, caso aprovado, o projeto seja vetado pelo presidente Lula.

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