Estreou mundialmente nesta segunda-feira (14), o documentário da cineasta brasileira, Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos. O filme começou a ser realizado durante a produção de seu aclamado documentário anterior, Democracia em Vertigem.
Apocalipse nos Trópicos aborda a influência das igrejas e pastores evangélicos na política brasileira e seu entrelaçamento com a extrema direita em nosso país.
“A redistribuição de renda [nos últimos anos no Brasil] não foi acompanhada por uma compreensão de que isso eram políticas de Estado para acabar com uma desigualdade secular, e quem acabou fazendo essa formação política, quem estava nas comunidades fazendo um processo de formação política, de coach profissional eram os pastores evangélicos em grande parte”, analisa a cineasta sobre o crescimento de 129% da população evangélica durante os primeiros governos do PT.
“A Igreja acabou levando parte, acredito, desse crédito para essa mudança social que o Brasil teve, pela falta dessa penetração, que a esquerda perdeu”, conclui Petra.
O filme também resgata as origens da religião no Brasil e o papel fundamental dos Estados Unidos nessa chegada, durante a ditadura militar (1964-1985).
Ela conta que uma das descobertas feitas na pesquisa para realizar o filme foi de que o grupo de lobby estadunidense chamado The Family enviou missionários ao Congresso Brasileiro “para evangelizar congressistas, desde os anos 60 até o fim da ditadura militar”.
“Diferente de outros países onde isso já veio a público (…) a gente sabe muito pouco no Brasil quais foram as ações da CIA durante essas décadas”, lamenta.
Petra concedeu entrevista ao Brasil de Fato na China em junho deste ano, quando a cineasta foi convidada pela primeira vez para ser jurada na categoria documentários do 27º Festival Internacional de Cinema de Xangai.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Como surge o documentário Apocalipse nos Trópicos?
Petra Costa: Esse novo filme que a gente fez chamado Apocalipse nos Trópicos, surge no processo do Democracia em Vertigem, que é o meu último documentário em que eu vou pra Brasília, em 2016, para entender o que está acontecendo com a democracia brasileira.
Eu entrei no Congresso Nacional na véspera do impeachment e fui surpreendida pelo Cabo Daciolo e várias fiéis que estavam com ele abençoando as cadeiras do Congresso, pedindo que Deus instaurasse um governo divino. E eu perguntei: “o que que vai acontecer com a democracia brasileira?” E ele falou: “os ímpios vão cair e os cristãos vão governar”.
Para mim aquilo foi muito surpreendente, isso acontecer na sede da nossa democracia. E não só isso, em seguida ele me evangelizou, assim como a toda equipe. Ele pediu pra aceitarmos Jesus, e me presenteou com uma Bíblia.
Foi como se um portal se abrisse naquele momento, movendo as placas tectônicas, que já estavam mudando embaixo dos nossos pés, e que a gente não estava percebendo.
O Brasil se tornou um país onde 30% da população é evangélica e 20% do Congresso já é ocupado por deputados evangélicos.
E muitos desses deputados – eu fui descobrir nessa investigação –, são de uma teologia que é a teologia do domínio. Abertamente ou não eles pregam que cristãos tomem o poder; o que, se executado até o fim, nos levaria a virar uma teocracia, a deixar de ser uma democracia.
Uma conversa que é muito iluminadora também no filme é um momento em que eu falo com o pastor Silas Malafaia e ele fala que a democracia é a vontade da maioria. E eu respondo: “mas a democracia no Brasil pressupõe também o direito das minorias”. E é isso justamente que está em jogo se a gente virar uma teocracia. Se a gente continuar nesse caminho, as minorias vão perder os seus direitos.
Outra descoberta também muito interessante foi que a separação entre Igreja e Estado foi inventada por cristãos para proteger os cristãos de perseguição religiosa.
E é isso que a gente está correndo risco de perder; e quem vai sofrer são os próprios cristãos ou outras minorias religiosas se esse processo for bem-sucedido.
Que peso têm os Estados Unidos nesse fenômeno de crescimento das igrejas evangélicas no Brasil?
Uma das descobertas que a gente fez no processo desse filme, graças ao nosso pesquisador Nicolás Iglesias, foi que o grupo de lobby americano chamado A Família (The Family) enviou missionários americanos pro Congresso Brasileiro pra evangelizar congressistas desde os anos 60 até o fim da ditadura militar.
Imagina, missionários americanos indo pro Congresso sob a máscara de que eles iam ensinar inglês, quando na verdade eles queriam converter congressistas brasileiros.
Eles faziam “cafés da manhã de oração nacional”, que duraram todo período da ditadura militar, além de um programa de envio de milhares de missionários americanos.
Por quê? Porque o [Henry] Kissinger, que era o secretário de Segurança americana, também de Relações Exteriores, e outras pessoas do governo americano tinham visto que a Igreja Católica, com a teologia da libertação, estava se alinhando muito com o movimento de esquerda que eram contrários aos interesses americanos.
E existiu uma ideia de que o Brasil se tornasse então um país evangélico para não ter essa influência subversiva que eles achavam que havia na Igreja Católica. E foi um plano que foi muito bem sucedido.
Quando a gente começou o documentário, se dizia que isso era uma teoria da conspiração, mas a gente encontrou documentos que provam que foi um esforço concertado que durou décadas.
Quando o Billy Graham – que é o “papa” protestante evangélico – foi pro Brasil em 1974, fez grandes cultos no Maracanã [RJ]. A ditadura, o regime militar, televisionou isso em todos os canais. Foi uma comoção. Isso gerou impactos em um nível que eu acho que a gente não começou a arranhar a superfície.
E em geral a gente sabe muito pouco no Brasil quais foram as ações da CIA durante essas décadas. Diferente de outros países onde isso já veio a público.
Acho que ainda vai se revelar, mas depende muito de mais ações de jornalistas investigativos brasileiros. A gente tentou achar outros documentos, mas muitos continuam classificados [como sigilosos], o que mostra que provavelmente existem ações em andamento.
A frente parlamentar evangélica foi criada em 2003, e hoje ela já conta com uns 200 legisladores. Você expõe no seu documentário a doutrina do dominionismo, que explica muito bem esse movimento de querer, por exemplo, colocar um juíz terrivelmente evangélico no Supremo. Como você passou a olhar pro Brasil a partir de entender e se aprofundar nessa teologia?
Eu brinco que o Malafaia é um homem com um plano, assim como grande parte das lideranças evangélicas que estão alinhadas com o bolsonarismo. E esse plano é o “domínio”, e isso já está muito bem executado.
Por exemplo, a Anajure [Associação Nacional de Juristas Evangélicos], que é um órgão de lobby dentro do Congresso está constantemente lutando por pautas cristãs, eles têm uma tecnologia muito sofisticada: assim que algo é discutido na Câmara dos Deputados, as palavras-chaves, “aborto”, “LGBT”, eles saltam na internet pra não deixar que aquilo passe.
E esse movimento – o Malafaia nos contou –, começa em 2011 quando o Supremo [Tribunal Federal] decide passar a lei que criminalizava a homofobia. Houve essa tentativa de passar essa lei que criminalizava a homofobia. Foi a primeira manifestação que Malafaia organizou na frente do Supremo que aparece no filme.
E isso se dá num nível de capilaridade imensa.
Os pastores fazem campanhas pros deputados, os conselhos tutelares… é uma capilaridade muito bem organizada. O Malafaia tem planos de criar universidades, tem desejos de ter uma presença em escolas, e isso tá alinhado com outro movimento que cresceu muito no Brasil nos últimos anos que é o movimento da extrema direita, expresso também em grupos como Brasil Paralelo.
Então, a capilaridade que o movimento progressista já teve muito forte nos anos setenta com a teologia da libertação deixou de existir, em grande parte. E essa nova força da religião fundamentalista da extrema direita é quem está tomando o seu lugar com uma rapidez vertiginosa.
No documentário você entrevista o presidente Lula, e ele argumenta que a solução dos neopentecostais para os problemas do povo é simples. Você acha que existe a possibilidade de que o neopentecostalismo tenha capitalizado a bonança econômica dos governos Lula e Dilma?
Durante os governos do PT, a população evangélica cresceu 129%. Acho que isso se deve a vários fatores, entre eles, o PT facilitou muito a aquisição de rádios, TVs. A Record News, por exemplo, o Lula inaugurou junto com Edir Macedo. Então, acho que o PT colaborou com esse crescimento, até mais do que o governo Bolsonaro de muitas formas.
E aconteceu um fenômeno, que você mencionou, de que a inclusão social de grande parte da população, a redistribuição de renda, não foi acompanhada por uma formação política, por uma compreensão de que isso eram políticas de Estado pra acabar com uma desigualdade secular. E quem acabou fazendo essa formação política, quem estava nas comunidades fazendo um processo de formação política, de coach profissional foram os pastores evangélicos em grande parte.
Então Deus e a Igreja acabaram levando parte, acredito sim, desse crédito para essa mudança social que o Brasil teve, pela falta dessa penetração, que a esquerda perdeu.
A jornalista Ana Virginia Balloussier, que trabalhou com você no documentário, recentemente entrevistou um demógrafo que teve que ajustar a previsão da ultrapassagem dos evangélicos sobre os católicos, pelos dados do Censo 2022. Após a imersão que você fez, você considera que essa desaceleração pode significar um futuro estancamento desse processo?
O Malafaia projetava que os evangélicos seriam 30% acho que até antes de 2030 e isso não se realizou. E esse fenômeno, o porquê dessa lentificação do crescimento acho que está por ser estudado.
Um fenômeno que a gente sabe que tem acontecido é um aumento do número de desigrejados. Acho que muitos deles se revoltam contra o excesso de politização da religião. Falam que tão indo pro culto, não pra ouvir sobre política, mas sim sobre Deus, sobre a fé. Mas eu não menosprezaria a força, porque a força tanto da extrema direita quanto do fundamentalismo religioso vêm da determinação também, do fervor da crença, e de sentir que você está carregado com um ímpeto revolucionário de consertar o que que está errado na sociedade.
Em 2022, 70% dos evangélicos votaram no [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Esse foi um número maior que qualquer outro segmento da população. Então [existe] essa força da união e da determinação, mesmo que os números não cresçam.
Nos Estados Unidos a gente vê: a força evangélica na política começou lá nos anos 70, com a ideia de criar uma maioria moral que não permitiria que políticas progressistas, primeiramente raciais – a grande revolta deles foi contra uma lei na Suprema Corte que proibia a segregação nas escolas. Como isso não seria uma pauta vendável, então eles decidiram criar a pauta do aborto – porque antes eles eram a favor do aborto.
E a partir de então eles elegeram o [presidente Ronald] Reagan. O Reagan foi o primeiro presidente a ser eleito graças ao voto evangélico e o [presidente Donald] Trump também. E lá são 30%, vêm diminuindo, mas mesmo assim eles têm a força pra eleger um presidente, pra fazer a diferença para a eleição de um presidente.
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