Neonazismo no Brasil e a defesa da democracia

Desde seu processo de redemocratização, iniciado em 1985, consolidado com a Constituição Federal em 1988 e deflagrado eleitoralmente em 1989, com eleições gerais e livres, podemos afirmar que na lógica do Estado de direito o país vem buscando a construção de uma identidade de nação que faça jus ao compromisso assumido na Carta política no Artigo 3º, III no que se refere à  dignidade da pessoa humana, como fundamento da República, assim como, com  o princípio da não discriminação, consagrado no mesmo dispositivo, no inciso IV, dando, por fim, o contorno  necessário nas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos, no artigo 4º, inciso II.

Esta pedra fundamental da democracia brasileira, ganhou impulso no campo normativo nacional e internacional. Primeiro quando verificamos na década de 1990 a edição de um conjunto de leis federais e também transbordando no pacto federativo no nível estadual e municipal, com a proteção legal das minorias étnico-raciais, idiomáticas e religiosas, assim como para os grupos em situação de vulnerabilidades, como crianças, mulheres, LGBTQIA+, pessoa com deficiência, entre outros.

Num outro giro, na esfera mundial, o Brasil assumiu dentro de sua política de relações internacionais uma posição de compromisso permanentes nos principais tratados internacionais de direitos humanos, assim como, se submetendo aos Sistemas Internacionais de Direitos Humanos, tanto da Organização da Nações Unidas (ONU), como da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Efetivamente, vivemos uma Era de Direitos professada por Noberto Bobbio, com as cores verde e amarelo no país.

Na lógica dos princípios e valores que regem a concepção de uma Nação, podemos afirmar que o dever de casa foi feito em termos institucionais e legais e nos posicionamos firmemente com os valores dos direitos humanos enquanto Estado.

A questão que queda é, qual a distância entre este conjunto de normas e a realidade? Especialmente nos desafios contemporâneos que estão colocados no tabuleiro da realidade e entre eles, o enfrentamento ao neonazismo e o discurso de ódio no Brasil.

Fato é que, hoje temos um enorme abismo entre a lei e o território aonde vai se consolidando um cenário complexo com grave risco de retrocesso, inclusive, ao período pré-redemocratização do país.

Importante registrar que nas asas da democracia, avançamos na concepção de modelos de participação social, e entre eles, os conselhos de direitos, integrados por poder público e sociedade civil organizada com a missão de exercer o controle social, indispensável para o sistema de freios, pesos e contrapesos numa democracia em favor dos direitos fundamentais e da cidadania.

E foi no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que se instaurou no ano de 2023 uma Relatoria Especial para investigar, na forma da competência deste órgão de Estado, criado pela lei federal 12.986/14, o crescimento das células neonazistas no Brasil.

Referida medida deu-se por provocação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), tomando como base dados da Universidade de Campinas (Unicamp), propriamente da professora doutora Adriana Dias que, frente ao seu lamentável falecimento, estacionou os números em 2021/2022, indicando, ilustrativamente entre outros dados, que no estado de São Paulo nos anos mencionados, tivemos 93 células/manifestações neonazistas enquanto que, na cidade de Blumenau (SC), registrou-se 63 células neonazistas.

No campo internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU), no âmbito do Conselho de Direitos Humanos, nos últimos dez anos, tem apresentado um relatório especial sobre o combate à glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas. Para este organismo multilateral, entende-se como neonazismo.

De acordo com a resolução aprovada na Assembleia Geral da ONU, em 15 de dezembro de 2022, o neonazismo é algo mais que a mera glorificação de um movimento passado, é um fenômeno contemporâneo com fortes interesses na desigualdade racial que está centrado nos esforços de obter um apoio amplo de suas falsas afirmações de superioridade racial.

Em sua visita ao Brasil, há cerca de um ano atrás, agosto de 2024, a Relatora Especial das Nações Unidas Ashwini K.P, alertou sobre o crescimento “perturbador” de células neonazistas em estados do Sul do Brasil, como Santa Catarina.

Neonazismo é algo mais que a mera glorificação de um movimento passado, é um fenômeno contemporâneo com fortes interesses na desigualdade racial | Foto: PCRS

O Conselho Nacional de Direitos Humanos, que vem dialogando continuamente com a ONU, segue com seus trabalhos e depois de quase dois anos realizando missões nos estados de Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e chegará no Nordeste do país, propriamente no estado de Pernambuco, nos dias 23, 24 e 25 de julho de 2025,  com o objetivo de desmistificar a ideia que este é um problema estreito e regionalizado numa parte do país e que se restringe aos ataques aos grupos minoritários e instalados na parte sul do país.

Instar autoridades a uma resposta sobre o que tem promovido de ações de enfrentamento neste tema, dialogando com as forças sociais do território e aprofundar o debate acadêmico local, são as bases de uma agenda do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que pede passagem, a bem da democracia e dos direitos humanos.

O que temos apurado, quanto ao indicativo de crescimento do neonazismo no Brasil, estimulado pelo discurso de ódio, é existência de uma subcategorização como problema social e político, sem tratamento legal, não possuindo sequer um tipo penal próprio, estando mencionado apenas na lei de crimes raciais, parágrafo 1º do Artigo 20   da lei nº 7.716/89.

Não há no país uma política nacional de enfrentamento ao neonazismo que seja capaz de ordenar no pacto federativo, ações integradas que sejam eficazes de afetar o tecido social no campo da cultura e da educação, além da repressão necessária.

As respostas dadas pelo Estado brasileiro na modernidade, em termos de políticas públicas para este tema, são tímidas, dispersas e desarticuladas. Deixando que os estados operem com suas limitações institucionais no campo da segurança pública o enfrentamento de um crime que deveria ser processado pela Justiça Federal com atribuição da Polícia Federal, pela evidente afetação do Artigo 109 da Constituição Federal de 1988, pois trata-se de um delito sem  fronteiras com aguda afetação aos tratados internacionais de direitos humanos e a democracia brasileira.

Assim, temos um problema que, mais do que uma agenda de um conselho de direitos, o enfrentamento ao neonazismo no Brasil constitui uma missão nossa, de brasileiros e brasileiras em defesa da democracia e dos direitos humanos.

O neonazismo não é simplesmente uma ameaça e um problema de ataques aos segmentos minoritários e aos grupos vulneráveis, especialmente aos negros, adeptos das religiões de matriz africana e comunidade LGBTQIA+, como equivocadamente entendido na atualidade.

Trata-se do mais grave movimento político internacional na modernidade, que cresce ancorado no discurso de ódio e num modelo autocrático de Estado, que despreza a democracia e viola o Estado de Direito e dos Direitos Humanos.

*Carlos Nicodemos é advogado e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e Coordenador da Relatoria Especial de Enfrentamento ao Neonazismo e o Discurso de Ódio.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

 
 

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