Sumiço em área paradisíaca vira caso internacional após 4 anos sem pistas em MS


Sumiço em área paradisíaca vira caso internacional após 4 anos sem pistas em MS
O desaparecimento do trabalhador rural Antônio Martins Alves, conhecido como Antônio Bigode, completa quatro anos nesta quarta-feira (16). O idoso desapareceu em 2021 do sítio onde morava, no Assentamento Canaã, em Bodoquena, quando tinha 82 anos. Assista ao vídeo acima.
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O caso, que segue sem respostas, é acompanhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). A corte internacional cobra o Estado brasileiro por uma solução em relação ao paradeiro de Antônio Bigode. Segundo apurado pelo g1, o governo brasileiro estuda a federalização das investigações, que poderão ficar sob responsabilidade da Polícia Federal.
O silêncio e a incerteza sobre o paradeiro de Antônio são uma angústia para a família, que busca explicações sobre o desaparecimento. Ao g1, a única filha do idoso, Nilce Santana Alves, de 43 anos, relatou sentir “falta de atenção” das autoridades para que o pai seja encontrado.
“Um sentimento de tristeza, um sentimento de falta de atenção, porque se trata de um ser humano e, até agora, não tive nenhuma resposta. Fizeram buscas no começo, procuraram ele, aí não acharam nenhum vestígio, se não acharam o vestígio é porque ele não estava lá [no assentamento]. Se ele não estava lá, alguém tirou ele de lá”, analisa a filha.
Antônio Martins Alves desapareceu aos 82 anos, em 2021, em Bodoquena (MS).
Loraine França
Desaparecimento completa 4 anos
A interpretação de Nilce sobre o desaparecimento do pai decorre das características do idoso que, segundo a filha, possuía problemas na coluna e dificuldade de locomoção. Além disso, ela enfatiza que o pai tinha forte ligação afetiva com o local onde vivia.
“Ele conhecia ali, é uma pessoa que fundou o [assentamento] Canaã, que vivia ali, que sabia os lugares por onde andava. E ele era uma pessoa que cuidava, que preservava e não tinha nenhum motivo para sair dali, a não ser que alguém tenha tirado mesmo ele de lá, alguém que planejou, fez certinho. Não existe crime perfeito, para Deus tudo é possível”.
Às autoridades, Nilce pede uma resposta sobre o paradeiro do pai. “Eu quero só a solução desse caso do meu pai, eu preciso, enterrar ou saber se ele está em algum lugar, porque ainda tem uma esperança de que possam ter levado ele para um lugar e ele esteja vivo”.
O g1 entrou em contato com o Ministério dos Direitos Humanos, que acompanha o caso, e não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul (Sejusp) não se manifestou sobre o caso e disse ser competência da Polícia Civil.
A Polícia Civil disse que não se manifesta sobre casos que “já foram relatados”.
Conflitos por terra
A região onde Antônio Bigode desapareceu está localizada na Serra da Bodoquena – que fica entre os municípios de Bonito, Bodoquena, Jardim e Porto Murtinho. O local é destino turístico internacional e recebe visitantes do mundo todo, interessados no turismo de natureza e contemplação. A região é considerada paradisíaca pelos rios de águas cristalinas, cachoeiras e grutas.
A beleza cênica tem atraído interesses econômicos nas últimas décadas, principalmente do setor do turismo. O lugar que abriga biodiversidade e comunidades tradicionais é, também, palco de conflitos, segundo denúncia da CIDH.
No caso de Antônio Bigode, segundo a comissão, por ser ativo na defesa de terras e do meio ambiente, o trabalhador rural teve conflitos com “pessoas e grupos interessados na construção de estradas, desmatamento, exploração do turismo ou outros esforços com impacto ambiental relevante”, como destaca documento que o g1 teve acesso.
“Ali sempre teve conflito, tanto é que ele tinha porte de arma, porque ele se sentia ameaçado”, conta a filha Nilce.
Cinco dias antes de desaparecer, uma arma de Antônio Bigode foi furtada, segundo boletim de ocorrência. Para a filha, o crime pode ter relação com o sumiço do pai.
“Com certeza desarmaram antes, e por não ter vestígio, é o que eu penso, que ele pode ter sido tirado de lá e levado para outro lugar, aí não tem como achar mesmo, não está ali”, conclui.
Antônio Bigode é morador e fundador do Assentamento Canaã, em Bodoquena.
Arte/g1 MS
As buscas
As buscas por Antônio começaram em 16 de julho de 2021, por vizinhos que notaram a ausência do idoso, que havia saído de casa dois dias antes e não retornou. Contudo, ao não encontrarem Antônio, os vizinhos resolveram no mesmo dia acionar o Corpo de Bombeiros de Aquidauana. As buscas oficiais começaram no dia seguinte, em 17 de julho e se estenderam até o dia 22 do mesmo mês. Além dos militares, cães farejadores auxiliaram na procura pelo trabalhador rural.
Conforme relatório da corporação, testemunhas disseram que Antônio saiu no dia 14 de julho a procura de seu gado e não foi mais visto. Nas buscas, os bombeiros chegaram a encontrar vestígios como um resto de fogueira e marcas de facão em uma árvore que poderiam ser da vítima.
Dez brigadistas do Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Polícia Civil e moradores locais auxiliaram as equipes nas buscas. Segundo o relatório, vários caminhos diferentes foram feitos na região, que é de difícil acesso.
Além das buscas por terra, bombeiros também chegaram a mergulhar em um poço próximo à área onde Antônio desapareceu, mas não encontraram vestígios.
A polícia civil, que também investigava o caso, encerrou o inquérito em novembro de 2022, sob justificativa de que não teve “êxito em encontrar o cadáver ou pistas que pudessem levar a essa localização”.
Em 2023, a delegacia de Bodoquena justificou à Comissão Interamericana que não tinha estrutura para dar continuidade às investigações.
Repercussão internacional
O caso de Antônio Martins Alves chegou à corte internacional em outubro de 2021, três meses após o desaparecimento. O grupo é composto por sete membros independentes de países americanos e atua na promoção e proteção dos direitos humanos no continente.
No Brasil, casos como o do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, assassinados em junho de 2022, após desaparecerem quando faziam uma expedição na Amazônia, tiveram intervenção da Comissão Interamericana.
A corte internacional solicita ao Brasil que solucione o caso de Antônio Martins Alves, com base no artigo 9º da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas (Lei nº13.812 de 16 de março de 2019), que estabelece que “as investigações sobre o desaparecimento serão realizadas até efetiva localização da pessoa”.
O órgão, que faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), classifica que o desaparecimento do trabalhador rural é grave e coloca em risco sua integridade e sua vida, conforme consta em relatório obtido pelo g1.
Quem é Antônio Bigode
Antônio Martins Alves nasceu em Alagoas, em 10 de julho de 1939, e chegou ao assentamento Canaã em 1984. Com um grupo de trabalhadores, ajudou a fundar o local onde viveu boa parte da vida de forma solitária. Ele desapareceu no lote 42, penúltima chácara da Linha Córrego Azul, onde mantinha uma área de cerca de 25 hectares, segundo a filha.
O sítio fica às margens do rio Limoeiro, que se encontra com o rio Salobra, conhecido pelas águas verde-esmeralda. A casa onde Antônio morava sozinho está vazia desde o seu desaparecimento. A administração da propriedade passou a ser feita pela filha, que vive em Campo Grande.
“Meu pai sempre foi um homem honesto, justo, que não gostava que mexessem no ambiente dele, porque aquelas terras ele trabalhou e comprou. Ele cuidava da flora e da natureza ao redor. Ele era uma pessoa trabalhadora, eu via na mão dele, que era grossa”, relembra Nilce.
Antônio Bigode também é personagem de uma pesquisa socioambiental registrada em 2019 na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e acompanhada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), que estuda a história do assentamento Canaã e os povos tradicionais que vivem na região da Serra da Bodoquena.
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